Por Leonardo Davino*
terça-feira, 10 de novembro de 2015
LENDO A CANÇÃO
Em A pele que habito, filme de Pedro Almodóvar, a jovem Norma (Ana Mena), brincando distraidamente no jardim, cantando os versos de "Pelo amor de amar", de José Toledo e Jean Manzon, desperta a mãe marcada por um incêndio que lhe desfigurou o corpo.
Em uma torção mítica feliz, a filha é a sereia da mãe. A voz de Norma - suas inflexões infantis, seu esforço para cantar em português uma canção de ninar desnaturada - dá o sopro de vida que Gal (a mãe) necessita. "O coração do mundo canta no meu coração / Meus pés seguem sozinhos a dançar / Eu não conheço em mim a grande dor da solidão / Se em tudo eu encontro o dom de amar", canta.
E ao mesmo tempo, é essa a voz que também direciona a personagem à luz, a ver-se refletida em sua aparência aterradora, ao fim trágico e irrefutável. Desse modo, a voz do coração da criança é o veneno-remédio de Gal. "Só a morte apazigua esse nada-mais-tem-sentido que a decrepitude nos sussurra a todo instante. Canto de sereia às avessas convencendo Ulisses de que o mar secou", anotaria o narrador do livro Minha mãe se matou sem dizer adeus, de Evandro Affonso Ferreira.
As consequências do gesto de furtar da mãe o papel de sereia definirá a existência da filha. E a trama de Almodóvar. Mais tarde, a audição da mesma canção, agora em espanhol e na voz de Buika (uma cantora profissional), arrastará a filha ao destino.
"Pelo amor de amar / Quero ser a luz que sorrir na flor / Pelo dom de amar / Quero ser a flor que se deu de amor", encerra a canção gravada por Ellen de Lima em 1960 para o filme Os bandeirantes, de Marcel Camus.
Tenho dito, e repito, que somos alguma coisa feita para ser cantada. E cantante. Sustentamo-nos na voz. Mas não é qualquer canção. E, principalmente, não é qualquer voz. A voz que (me) canta é a voz que governa (meus) mundos.
Em geral, pela nossa trajetória histórica e genética, pensamo-nos (nós: latino-americanos) com o corpo todo (homo ludens pulsando), e a voz tem presença decisiva nesse processo, como uma resposta intuitiva ao raciocínio colonizador, posto que a voz convida ao movimento: à dança.
"Nunca fomos catequizados, fizemos foi carnaval", diria Oswald de Andrade. A palavra escrita nunca foi suficiente para nós. O empenho da palavra falada sempre teve mais valor do que o da palavra escrita. Muito embora, em um gesto típico de cópia mal sucedida e subalterna, tenhamos burocratizado em excesso nossos pensamentos e palavras, atos e omissões.
Mais do que qualquer outros povos, estamos melhor preparados, porque fundamo-nos sobre os atos de criar e conectar-se, para viver o mundo contemporâneo. O jeitinho é nosso veneno-remédio, nossa sereia a nos arrastar à vida (empurrar para frente) e à morte.
Digo tudo isso para destacar a beleza da voz de Jussara Silveira cantando "A voz do coração", de Celso Fonseca e Ronaldo Bastos, no disco Ame ou se mande (2011). Há nas inflexões vocais de Jussara - nas nuances sutis nas alturas melódicas - um descompromisso (natural e espontâneo) com aquilo que é dito. Voz que luta eroticamente com uma melodia em soluços, compassada.
Já tendo sido gravada por Celso Fonseca, com Jussara Silveira "A voz do coração" ganha contornos sirênicos sedutores. Jussara e sua voz nos arrastam para um campo onde somos amor da cabeça aos pés: desperta em nós a nostalgia da pura interioridade. Semelhante à criança que desperta a mãe.
"Quem poderá em vão calar / a voz do coração?". A pergunta inicial do sujeito parece querer refletir a nossa dúvida humana. Entre a razão (o logos desvocalizado) e a emoção (a vocalização do saber) o coração canta como contrapartida estética ao abandono - "Se o amor quiser partir num dia de manhã sem avisar".
É esta voz que dita o rumo a ser seguido pelo sujeito cantor da canção. Fazer do limão uma limonada, da solidão um amor em paz, equilibrar dor e alegria no estético - na criação - são ensinamentos vindos do coração. A voz de alguém cantando anuncia que há um ser único e de carne e osso vibrando-lhe no ar.
Ao contrário da outra "canção de fossa", porque ao invés de pensar em causas e efeitos, criou, transcriou tudo em canto, o sujeito decreta: "Meu mundo não caiu preciso lhe falar / eu gosto de voce demais // Preciso lhe dizer de todo o coração / a falta que você me faz". Precisa e diz.
Sem o outro que lhe abandonou, o sujeito não cantaria. É nisso que ele foca, cantando para mandar a tristeza embora, ou melhor, para hibridizá-la à alegria e uni-las no canto necessário à vida, em um exercício de criatividade desprendido da carga pesada que é viver. Aqui, a voz poética (da memória, do coração, em certa medida) é o estabilizador - sem ela o ser humano não suportaria estar vivo.
Dando vida a este sujeito cantante, Jussara Silveira, tal e qual a personagem Norma de Pedro Almodóvar, coloca-nos diante do espelho: é a sereia que promove o movimento, convida-nos à criação. E ao final, como diria o sujeito de "Ilusão à toa", de Johnny Alf: "Meus olhos sentem / Minhas mãos transpiram / É um amor que eu guardo há muito / Dentro em mim / E é a voz do coração que canta assim / Assim". E "quem poderá em vão calar seu coração?".
***
A voz do coração
(Celso Fonseca / Ronaldo Bastos)
Quem poderá em vão calar
a voz do coração?
Se o amor quiser partir num dia de manhã
sem avisar
A voz me dita o que fazer
tingir de outra cor a cor da solidão
Fazer dessa manhã amor em paz
Meu mundo não caiu preciso lhe falar
eu gosto de voce demais
Preciso lhe dizer de todo o coração
a falta que voce me faz
Quem poderá em vão calar meu coração?
* Pesquisador de canção, ensaísta, especialista e mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e doutor em Literatura Comparada, Leonardo também é autor do livro "Canção: a musa híbrida de Caetano Veloso" e está presente nos livros "Caetano e a filosofia", assim como também na coletânea "Muitos: outras leituras de Caetano Veloso". Além desses atributos é titular dos blogs "Lendo a canção", "Mirar e Ver", "365 Canções".
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