Por Leonardo Davino*
terça-feira, 16 de junho de 2015
LENDO A CANÇÃO
O sujeito da canção "Alguém cantando", de Caetano Veloso, materializa a voz que emula (plagia, copia, imita e inventa) sons. O sujeito é conduzido ao canto pela imposição da presença de um personagem-sol: alguém cantando.
Aqui não importa muito o que é cantado, mas a voz: bússola e orientação do sujeito. Quantas vezes ao longo da vida, ouvintes e carentes de canção que somos, apropriamo-nos de canções ouvidas no rádio - "que canta como que pra ninguém" - e que juramos terem sido feitas para nós?
Na maioria das vezes não há uma explicação lógica para tal apropriação. Basta um verso, ou uma linha melódica, ou a voz de alguém cantando bem para que sejamos lançados noutra realidade: no tempo/espaço "onde não há pecado nem perdão", como diz o sujeito.
Ouvinte, o sujeito torna-se cantor da voz de alguém: devolve a este outro, com canção, a beleza de ser cantado, distinguido no mundo. O dueto entre Simone e Zélia Duncan (Amigo é casa, 2008) figurativiza isso: desenha, na sobreposição das duas vozes, um lugar sonoro complexo: transes, delírios, ficção e realidade se misturam.
Este lugar não é outro senão a mente de quem ouve "alguém cantando longe daqui". "Longe, longe", porém, de tão íntimo (amigo) que se torna do ouvinte, por dar sentido à vida deste ouvinte, aproxima-se e sensibiliza. O sujeito só se realiza quando é organizado internamente por este canto externo: ele precisa que o outro lhe esclareça o que desejar.
A canção se dá posterior à audição de alguém que guarda a natureza na voz. O antes perde sua importância. Tocado por esta voz que lhe abastece de palavra, melodia e voz, o sujeito não encontra outra saída a não ser cantar: pagar com a mesma moeda: canção - letra, música e gesto vocal: pureza.
A coerência da dúvida, ou seja, de não identificar o alguém por trás da voz que canta, sustenta o enigma do próprio sujeito e universaliza o canto: torna-o de ninguém e, portanto, suscetível a ser de todos. Por tudo isso, a canção "Alguém cantando" é metacanção: canção que se faz atravessada pelo canto, pela voz de alguém; canção que denuncia a si própria. O tema principal é a própria canção para além da canção.
Na verdade, o sujeito, embevecido na imensidão, por uma voz que vem dessa imensidão, não sabe onde começa e onde termina o próprio canto. A canção é muito mais canção do que o sujeito é sujeito. A canção trata o sujeito com extremos de mãe - "a voz de alguém quando vem do coração" - e insere o sujeito na vida.
Ouvintes de "Alguém cantando", não temos elementos para concluir nada: quem canta? quem é o alguém cantado? Resta-nos entra em uma das dobras da ficção cancional e se reinventar também no solapamento da ideia de subjetividade.
***
Alguém cantando
(Caetano Veloso)
Alguém cantando longe daqui
Alguém cantando longe, longe
Alguém cantando muito
Alguém cantando bem
Alguém cantando é bom de se ouvir
Alguém cantando alguma canção
A voz de alguém nessa imensidão
A voz de alguém que canta
A voz de um certo alguém
Que canta como que pra ninguém
A voz de alguém quando vem do coração
De quem mantém toda a pureza
Da natureza
Onde não há pecado nem perdão
* Pesquisador de canção, ensaísta, especialista e mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e doutor em Literatura Comparada, Leonardo também é autor do livro "Canção: a musa híbrida de Caetano Veloso" e está presente nos livros "Caetano e a filosofia", assim como também na coletânea "Muitos: outras leituras de Caetano Veloso". Além desses atributos é titular dos blogs "Lendo a canção", "Mirar e Ver", "365 Canções".
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