Por Leonardo Davino*
terça-feira, 22 de dezembro de 2020
LENDO A CANÇÃO
A namorada
"A namorada", de Carlinhos Brown, figurou no primeiro disco de Brown Alfagamabetizado (1996). A canção, feita para balançar o corpo, foi uma das canções mais executadas nas rádios de vários países naquele ano.
Em “A namorada”, o sujeito faz um alerta - passa um papo reto - sobre a tendência bissexual da garota objeto de desejo de seu amigo. E revela: “a namorada tem namorada”, em refrão dançante que dispersa qualquer julgamento moral.
A ironia bem humorada da letra fica por conta do uso de termos como “gavião”, por exemplo. No senso comum, “gavião” é aquele indivíduo cheio de conquistas erótico-afetivas. Mas aqui, “o broto” não vai querer compromisso com o tal "gavião": de nada vai adiantar afiar as garras, pois o desejo dela está noutro lugar.
Apesar da vigilância do irmão e do pai juiz (sinônimo de autoridade moral, com o poder de definir o certo e o errado), a namorada realiza seu desejo homoerótico indo ao cinema, “com mais cinco morenas”.
Podemos pensar porque o sujeito duvida do “gavião” que “se diz gato malhado”. Ora, “malhado” é gíria usada para designar o indivíduo frequentador de academias de ginástica e praticante de exercícios físicos. Daí o “gavião” ser um homem de uma beleza sensual – “gato” – e com o corpo dentro dos padrões – “malhado”. Ao duvidar disso, o sujeito coloca em xeque (também) a masculinidade do próprio “gavião”.
Aliás, parece ter sido este o mote para que Caetano Veloso (no disco Eu não peço desculpa, de 2002) compusesse a paródica canção "O namorado", cujo refrão aponta que "o namorado tem namorado". Mas esta é outra história, ou melhor, outra canção.
Em Verdade tropical, Caetano afirmou que Brown “reúne em si os elementos de reafricanização e neopopização da cidade”. De fato, Carlinhos condensa a força da tradição, aliada a elementos atuais de penetração popular.
"A namorada", com melodia festiva e letra fácil de decorar (repetição e reiteração), celebra a festa das sexualidades possíveis ao infiltrar uma ética da liberdade no ouvinte que ouve, canta e dança a canção.
***
A namorada
(Carlinhos Brown)
Ei bicho
O broto do seu lado
Já teve
Namorado
E teme um compromisso
Gavião
Há sempre um do seu lado
Se diz gato malhado
Mas não é nada disso
A namorada tem namorada
A namorada tem namorada
Tem irmão
Grudado em sua cola
Na porta da escola
Mas não tem chance não
Pai juiz
A leva pro cinema
Com mais cinco morena
O que mais sempre quis
A namorada tem namorada
A namorada tem namorada
* Pesquisador de canção, ensaísta, especialista e mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e doutor em Literatura Comparada, Leonardo também é autor do livro "Canção: a musa híbrida de Caetano Veloso" e está presente nos livros "Caetano e a filosofia", assim como também na coletânea "Muitos: outras leituras de Caetano Veloso". Além desses atributos é titular dos blogs "Lendo a canção", "Mirar e Ver", "365 Canções".
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