Eduardo Nadruz, artisticamente conhecido por Edu, nasceu na cidade gaúcha de Jaguarão em 13 de outubro de 1916, filho de imigrantes árabes. Seu primeiro contato com a harmônica de boca cercou-se do mesmo sentido casual e despreocupado com que todo menino procurava as melodias conhecidas no despretensioso instrumento.
No ano de 1926 chegava à cidade de Pelotas um certo professor Charles, representante da fábrica de gaitas Hohner, que promoveu um concurso do qual tomaram parte cerca de 300 alunos dos colégios Gonzaga e Pelotense. Charles fez uma eliminatória oferecendo um prêmio de 200 mil réis ao primeiro colocado. Foram selecionados 15 finalistas que participariam do espetáculo a ser realizado no Teatro Guarani – Edu era um deles.
No dia da decisão o teatro estava lotado. Pela ordem de apresentação Edu seria o último a tocar. Um garoto de Dom Pedrito, Simplício Garcia, arrancou aplausos frenéticos da platéia ao executar o tango argentino "El Panuelito Blanco" e era o franco favorito. O público foi se tornando cada vez mais irreverente com os outros candidatos que eram freqüentemente interrompidos por apupos e gritos de " Simplício já ganhou!" e foi nesse clima que chegou a vez de Edu. A platéia continuava gritando mas, indiferente, Edu iniciou sua apresentação com uma seleção de trechos de óperas que começava com a Tosca emendando com Fausto, Rigoleto, Madame Butterfly, La Traviata, Cavalaria Rusticana e para finalizar, a protofonia de O Guarani, sendo que essa última surpresa levou o público ao delírio. Aclamado como vencedor, foi carregado em triunfo pelas ruas da cidade e arrematou o prêmio de 200 mil réis.
Em janeiro de 1933, o pai de Edu atravessava uma fase bastante negativa em seus negócios e resolveu enviar o filho mais velho a São Paulo com o objetivo de conseguir um emprego e ajudar nas despesas da família: "Tens aqui 300 mil réis. Foi o máximo que pude arranjar. Vai tentar a tua vida. Não quero saber como, mas tenho absoluta confiança em ti".
Compenetrado da empreitada que estava assumindo e ciente do clima de hostilidade para com os gaúchos em São Paulo no após revolução de 32, Edu foi primeiramente para Santos, seguindo logo após para a capital.
Munido de algumas cartas de apresentação dadas pelo amigo Nassif Miguel, dirigiu-se à famosa rua 25 de março, tradicional reduto da colônia árabe em São Paulo. Apesar disso, a resposta era sempre a mesma: "Eu sei que você é filho de patrícios mas esse problema de ser gaúcho é que atrapalha tudo. Nós não podemos nos comprometer".O ambiente de frieza era total. O dinheiro dado pelo pai havia acabado e a dona da pensão deu-lhe um prazo de quinze dias para pagar o aluguel ou ir embora. Em pânico, Edu arrumou sua mala e deixou a pensão descendo a rua Quintino Bocaiúva em direção à rua direita. Atingiu a avenida São João entrando pela rua São Bento e, ao descer a ladeira do Martinelli, parou subitamente. Na esquina de Líbero Badaró com avenida São João um homem soprava uma gaita enquanto um outro recolhia uns trocados. A lembrança de sua infância imediatamente veio à tona mas era preciso arrumar uma gaita. Onde? De mala em punho, dirigiu-se à tradicional casa Manon que distava cerca de cem metros de onde se encontrava e perguntou ao vendedor: "O senhor tem gaitas para vender?" O balconista o olhou de alto a baixo e desconfiado chamou o gerente. Edu insistiu na pergunta e o gerente respondeu: "Esse instrumento não vende... ninguém toca... tenho um estoque antigo aí". Imediatamente Edu fez uma proposta perguntando-lhe que comissão poderia receber caso vendesse as gaitas do estoque. Combinaram trinta por cento.
Eram duas dúzias de gaitas e após escolher uma delas, Edu começou a tocar na porta da loja. Em menos de duas horas todas estavam vendidas. Vitorioso, o menino com então 17 anos, iniciou sua vida como músico ambulante. Seu primeiro repertório era composto da fantasia lírica, nome que passou a dar à seleção de trechos de óperas com a qual havia ganho o concurso, além de alguns tangos e rancheiras.
Em 1934, um grupo de amigos o convidou para acompanhá-los numa viagem de carro ao Rio de Janeiro, aonde chegou em pleno sábado de Carnaval desembarcando na porta da Galeria Cruzeiro, atual edifício avenida central.
O clima do Rio de Janeiro era bem mais acolhedor e o ambiente cultural fervilhava. No famoso Café Nice, rapidamente se integrou com os famosos nomes da época. Mário Lago, Luiz Barbosa, Frazão, Nássara, Carlos Galhardo, Francisco Alves, Custódio Mesquita, Lamartine Babo, Braguinha, Jorge Murad e Nônô foram os primeiros que conheceu.
No mesmo ano, foi levado à rádio Mayrink Veiga onde conheceu César Ladeira que o contratou para fazer o prefixo de um novo programa, sendo escolhido o tema de "O gordo e o magro". Há no entanto um problema – disse César. Eduardo Nadruz é anti-radiofônico... Após pensar um pouco, sugeriu: "Que tal Edu e sua gaita? Edu é apelido de Eduardo, nome curto e incisivo! " - arrematou. A partir daquele momento, como num passe de mágica, Eduardo foi transformado em Edu da gaita pelo mesmo homem que deu o nome de "pequena notável" à Carmem Miranda.
Seu novo emprego não duraria no entanto mais do que dois meses, pois uma limitação técnica do antigo instrumento não lhe permitia grande variação do repertório. As antigas gaitas de boca não possuíam a chave de meio tom. Era como tocar num piano só com as teclas brancas. Apesar de demitido, insistiu se apresentando em circos, na porta de cinemas, teatros e restaurantes.
Entre 1935 e 1939, tudo o que um homem pudesse imaginar no sentido de garantir o seu sustento pessoal aconteceu a Edu: camelô, pianista de bordel, secretário de bookmaker, cantor de tangos, datilógrafo e vendedor de livros didáticos, isso entremeado com apresentações esporádicas com sua gaita.
Em princípios de 1937, foi convidado a participar do espetáculo no cassino Copacabana, porém era necessário apresentar a carteira profissional. Dirigiu-se ao ministério do trabalho onde ocorreu um diálogo que deu lugar à concessão de um dos documentos mais surrealistas da história da música profissional do Brasil: "Impossível! O homem não tem profissão definida, diz que é tocador de gaita... isso não existe em nenhuma categoria musical ou artística!" Chega um outro e comenta – Seu Furtado, se o homem faz música é músico... seja em que instrumento for. Quem toca piano é pianista, violino é violinista, gaita só pode ser gaitista... Furtado mais uma vez argumentou que a classificação tinha que ser como músico e não como instrumentista e, após uma calorosa discussão, entregou a Eduardo Nadruz a carteira profissional número 70.748, série 27, determinando sua condição de "músico excêntrico" (em 1948, já famoso e reconhecido, foi emitida a segunda via, ratificando a primeira...).
Mais uma vez o novo emprego não duraria muito e pela mesma razão: a limitação técnica da harmônica de boca e por isso, no início de 1939, Edu resolveu deixar de vez o instrumento que lhe atormentava. Entretanto, não tinha coragem de dizer que o abandonara.
Certo dia, ao chegar no Café Nice foi surpreendido por uma pergunta de Nônô – Edu, você não toca mais aquela gaitinha? Edu respondeu que o problema era a falta de recursos técnicos do instrumento. Na mesa ao lado, o guitarrista da famosa orquestra de Romeu Silva – Fernando – ouvia o diálogo e interviu: "Acabei de chegar da feira mundial de Nova Iorque e lá, por uma questão de curiosidade, comprei uma gaita que tem uma chave ao lado que, quando acionada sobe meio tom na afinação original". Edu segurou as mãos de Fernando e começou a gritar – Ela existe, nunca me enganei! Estou salvo!
Às nove horas da noite, Fernando retornou trazendo um estojo com uma gaita cromática de 64 vozes. Trêmulo, Edu quase não consegui abri-lo. Pegou a gaita, olhou o instrumento, acionou a chave e soprou levemente. Em sua volta, em plena rua do Rio de Janeiro, compositores, músicos, cantores, garçons e fregueses no Nice aguardavam ansiosos a demonstração. Edu começou a tocar e um fato surpreendente ocorreu: tudo o que estava armazenado no seu subconsciente foi sendo executado o que arrancou aplausos da platéia improvisada.
Ainda em 1939, Sílvio Caldas o leva para a rádio Mayrink Veiga, agora em definitivo, onde trabalharia durante onze anos.
Apresentado ao dono do cassino da Urca - Joaquim Rolla - foi contratado porém começaria com uma experiência no cassino Icaraí, onde no entanto não permaneceria por mais de três meses devido a um sério desentendimento motivado pela falta de apoio às suas pretensões como solista. Jaime Redondo, o diretor artístico, entendia que suas apresentações eram apenas uma questão de curiosidade e nunca de uma arte definida. Enfim, uma excentricidade de pouca duração. Ao retornar para o Rio na barca da Cantareira, o artista estava plenamente convencido de que o desentendimento com Jaime Redondo era apenas o início de uma luta que perduraria por toda a sua vida.
Na rádio Mayrink Veiga, as coisas não eram muito diferentes e então Edu procurou o superintendente da emissora, Edmar Machado, e o fez ver que sua carreira estava ameaçada, pois necessitava de orquestrações para poder se desenvolver mais seriamente. Era preciso de uma vez por todas quebrar aquele "tabu". Edmar concordou, mas não sabia como resolver o problema.
Ao sair do escritório, um músico que entrava na sala de Edmar para pedir um "vale" e tinha ouvido a conversa disse-lhe: "Quero conversar com você. Me espere".Esse músico chamava-se Printeas Passos, na época um dos maiores trombonistas do Brasil. Atuava na orquestra da rádio Mayrink Veiga e era uma das atrações do conjunto do célebre Fon-Fon – " jamais escrevi uma orquestração para ninguém, mas tenho certeza que não terei dificuldade. Quer tentar comigo? ".
Foram para o estúdio e Edu executou uma seleção de melodias espanholas que incluía la leyenda del beso, Lady of Spain, La Violetera e El Relicário. Passos pediu um prazo de duas semanas e ao fim desse período, concluiu o trabalho que foi coroado de pleno êxito, conquistando inclusive a aprovação dos músicos da orquestra.
Inaugurava-se a partir daquele momento, uma nova fase da carreira de Edu. A fantasia espanhola abriu o caminho para uma série de outras orquestrações que o fariam retornar ao cassino da Urca, agora como atração principal, onde permaneceu até o fechamento do jogo em 1946.
No período compreendido entre outubro e dezembro de 1945, um fato ocorrido no estúdio A da rádio da Mayrink Veiga mudaria em definitivo o destino artístico de Edu que se deparou com um violinista – João Corrêa de Mesquita – ensaiando o "Moto perpétuo" de Paganini...
O que é isso Mesquita, vai tocar o Moto perpétuo? - perguntou. Mesquita respondeu que não. Somente tinha o hábito de ensaiar aquela peça para melhorar sua técnica. Edu se interessou... Será que eu conseguiria tocar pelo menos alguns compassos em meu instrumento? Bem, alguns você poderá executar, mas se você conseguisse tocar todo o "Moto perpétuo" seria uma proeza, pois você se tornaria o primeiro músico no mundo a soprá-lo...
Naquela época, Edu já havia se tornado famoso ao apresentar em sua modesta harmônica aquilo que dela não se esperava. Tendo evoluído em seus estudos e pesquisas, considerou que poderia figurar dentro de âmbito mais responsável e, motivado pelo entusiasmo e pelo futuro que vislumbrava para justificativa da presença de sua harmônica no cenário artístico mundial, resolveu empreender a suprema escalada de sua carreira profissional.
Onze anos de estudos foram precisos para a conquista da peça na qual se esbarra com as tremendas dificuldades representadas por 2400 notas, executadas sem pausa de espécie alguma, num tempo máximo de 4 minutos.
Em junho de 1956, Edu gravou na íntegra o célebre "Moto perpétuo" de Paganini no tempo recorde de 3 minutos e 21 segundos, tornando-se o primeiroem toda a história da música instrumental de sopro a alcançar essa façanha, demonstrando indiscutivelmente as possibilidades técnicas de seu instrumento. Mais do que a conquista pessoal, o seu grande objetivo era demonstrar que a harmônica de boca é um instrumento completo que deveria figurar no mesmo nível dos outros.
Infelizmente, ainda hoje a gaita de boca é um instrumento "sem cátedra" ou seja, não é estudado e ensinado nas escolas de música.
Sua luta não foi totalmente em vão: em 22 de novembro de 1958, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, acompanhado pela Orquestra Sinfônica Brasileira e em primeira audição mundial, Edu executou o concerto para harmônica de boca e orquestra de Radamés Gnattali, sob a regência do autor, ganhando o prêmio de música erudita conferido pela Prefeitura do Rio de Janeiro naquele mesmo ano. Isso significa que uma literatura musical da mais alta relevância já foi iniciada, abrindo caminho para que a modestíssima harmônica se transforme num instrumento definido e respeitado. Edu ainda trabalharia durante longos anos na Rádio Nacional e se apresentaria também em excursões pelo exterior.
A partir do final da década de 60, o país que tanto amou e ao qual dedicou a conquista do Moto perpétuo e todo o restante de sua obra, começou a esquece-lo. Edu no entanto nunca quis deixar sua pátria, apesar dos conselhos dos amigos e, na solidão de sua casa, mesmo abandonado, continuou se dedicando com afinco à arte que jamais aviltou ou vendeu. Morreu pobre e nobre.
"A música foi a razão da minha vida". Essas foram, literalmente suas últimas palavras, ditas na manhã de 22 de agosto de 1982, após uma homenagem proporcionada por seu filho, esposa e alguns poucos amigos, que reproduziram num pequeno gravador o "Moto perpétuo" de Paganini, aplaudindo artista que ainda teve forças para agradecer. Em 23 de agosto, falecia Eduardo Nadruz, um dos maiores músicos que o Brasil já teve.
O resgate de sua obra tem importância não apenas para a preservação da cultura nacional, mas também para divulgar de uma forma mais ampla, inclusive em outros países - onde seu trabalho ainda é praticamente inédito - o nível técnico que é possível atingir com a harmônica de boca, permitindo que outros no futuro possam sucedê-lo e até mesmo superá-lo.
Fonte: Site oficial do artista
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