segunda-feira, 30 de maio de 2016

NOITES TROPICAIS - SOLOS, IMPROVISOS E MEMÓRIAS MUSICAIS (NELSON MOTTA)*



Os musicais haviam saído de moda na televisão, começava a era das novelas. E as tardes de domingo tinham novos donos: Silvio Santos e suas “companheiras de trabalho”, com seus calouros e variedades, no auditório da TV Globo. No final de 67, depois de quase quatro anos de exílio em Paris, Samuel Wainer, o fundador da Última Hora, voltou ao Brasil para reassumir o jornal e fazer a oposição possível dentro do quadro político, que acreditava favorável. Veio da Europa animado e cheio de idéias novas, para uma completa reformulação do jornal. Uma delas era lançar uma coluna sobre o “poder jovem”, escrita por um jovem, em linguagem jovem e irreverente, que não existia na imprensa brasileira. Seria diferente da coluna social “Jovem guarda” que ele tinha lançado anos atrás com Ricardo Amaral em São Paulo; seria cultural e política, rebelde, o alto-falante das novas gerações, a voz da juventude. Por indicação de Cacá Diégues, casado com sua ex-cunhada Nara Leão, Samuel me convidou para uma conversa na sua cobertura na Praia de Ipanema e no fim do papo me ofereceu uma coluna diária de meia página na nova UH. Não consegui dormir. 

Com 23 anos era um sonho ter uma coluna diária assinada num grande jornal de oposição e um privilégio trabalhar com uma legenda jornalística como Samuel, especialmente num momento de grande efervescência e vitalidade da juventude, da política e da cultura no Brasil. Além de tudo, adorei Samuel, seu carisma, seu charme, seu entusiasmo: tinha encontrado um novo guru. Pedi demissão a Alberto Dines e Carlos Lemos no JB e escolhi o nome para a coluna: “Rodaviva”, homenageando Chico. Seria o porta-voz do Cinema Novo de Glauber Rocha, do novo teatro de José Celso Martinez Correia e do Grupo Oficina, do som universal de Gil e Caetano, da arte pop de Antonio Dias e Hélio Oiticica, de tudo que fosse novo e jovem no mundo, informando sobre o que faziam, diziam, vestiam e ouviam os jovens de Londres e Paris, de Nova York e da Califórnia.

Só semanas depois do início da coluna, Samuel soube que eu fazia parte do júri de Flávio Cavalcanti em “Um instante maestro” e “A grande chance”. Samuel detestava Flávio, que era acusado de ter incentivado o empastelamento da Última Hora na revolução de 1964, mas não se incomodou, esculhambou Flávio com nonchalance, disse que eu era uma voz jovem no meio do passado e foi pragmático: a popularidade dos programas de TV ajudava a promoção da coluna. O convívio com Samuel era tão rico e fascinante, ele era de tal modo sedutor e entusiasmado que, muitas vezes, Tarso de Castro, Luiz Carlos Maciel e eu fechávamos nossas colunas no jornal, no Centro da cidade, e íamos para o apartamento dele ou para alguma boate ou restaurante jantar e continuar a conversa e de lá, no meio da madrugada, voltávamos com Samuel à Praça da Bandeira, para ver o jornal sendo impresso, para ler ainda cheirando a tinta. Quando Françoise Sagan esteve visitando o Rio, Samuel fez uma festa para ela na sua cobertura e depois levou-a, junto com vários convidados, para ver rodar o jornal.

“Roda-viva”, tanto quanto a música de Chico, era uma referência à sua peça que José Celso Martinez Correia encenou no Teatro Princesa Isabel e que provocou grandes polêmicas. Chico escrevera Roda-viva em menos de um mês e 50 páginas, contando em texto e músicas a trajetória de um ídolo popular — Ben Silver, nascido Benedito Silva — que é devorado pela máquina do sucesso. Zé Celso usou o texto como pretexto para uma versão pessoal e extremamente agressiva de espetáculo em que o personagem de Chico se misturava com o autor e explodia a sua imagem de unanimidade nacional, de cantor das moças nas janelas, de bom moço e poeta benquisto. Dessa vez nenhuma senhora de respeito, nenhum general-presidente gostaria de ver a overdose de sexo, palavrões e violência que Zé Celso encenou no palco, com um imenso São Jorge e uma garrafa de Coca-Cola gigante como cenário, com jovens atores se esfregando lubricamente e sacudindo espectadores na plateia, arrancando-os de suas cadeiras, exigindo “participação” e respingando-os com sangue do fígado cru “arrancado” do herói em cena e comido por seus fãs. Em São Paulo, o elenco da peça foi espancado pelo Comando de Caça aos Comunistas.

Zé Celso era um dos meus ídolos desde que o conheci no Teatro João Caetano, durante a temporada carioca de O rei da vela. Eu não gostava de teatro, achava chato, limitado, antigo: estava interessado em cinema, em artes de massa, industriais, modernas. Mas era tal a expectativa em torno da revolucionária montagem de O rei da vela e das polêmicas que provocou em São Paulo que era impossível faltar à estreia carioca. Naquela noite descobri um novo mundo, uma maneira exuberante de interpretar e criticar o Brasil, me fascinei com a grossura e cafajestice dos atores, a sexualidade debochada, a cenografia kitsch, a música que misturava ópera e marchinhas de carnaval. Tudo formava um conjunto de elementos de mau gosto que criavam intensa e arrebatadora beleza, em tudo oposta à arte apolínea de Tom Jobim e João Gilberto. Fiquei louco.
 
O festival dionisíaco de Zé Celso era uma nova maneira de fazer oposição, pela arte libertária, era um aprofundamento crítico, uma ambição de transformar não o Estado mas o indivíduo. Passei a ir quase todas as noites: em algumas assistia ao espetáculo inteiro, em outras só ao primeiro ato (meu favorito), ficava conversando com Zé Celso nos camarins, às vezes assistia ao segundo e ao terceiro, fui ao João Caetano mais de vinte vezes, fiquei amigo de Renato Borghi, Ítala Nandi, Fernando Peixoto e do elenco inteiro. Para quem não gostava de teatro, era uma revolução pessoal: depois de O rei da vela para mim era impossível ouvir a música brasileira da mesma maneira.



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