Por Leonardo Davino*
"Glória aos piratas, às mulatas, às sereias", canta o sujeito de "O mestre-sala dos mares", de Aldir Blanc e João Bosco. Inconscientemente, talvez, ele dá vivas a três elementos fundamentais, não apenas à cultura, mas, em especial, ao pensamento sobre a dita brasilidade.
O indivíduo que se forjou aqui, tradutor das diversas culturas transplantadas, migradas e pirateadas para cá, carrega a verve pirata: das marcas e dos produtos copiados e feitos para oferecer a ilusão de acesso aos "originais", aos comportamentos importados. Passando pela noção do errante (navegador) que, apropriando-se e transformando, rasga o bloqueio das metrópoles e suas culturas hegemônicas.
A mulata é a corporalidade da mistura, da mestiçagem, da hibridação. Sua presença indicia uma estética brasileira, um jeito de corpo tipicamente nosso: a torção necessária na narrativa do desenvolvimento - sempre conflituoso - dos contatos entre os povos. O corpo mulato é nosso instrumento de resistência e de sobrevivência.
Aqui as musas e as sereias são híbridas. Elas sabem que o local da cultura está descentralizado: não tem uma raiz, e sim muitas. Ao invés da sereia europeia que atraía para a morte, Iemanjá. No lugar dos longos cabelos dourados e dos olhos azuis, Iara.
E se cada um destes elementos, por si, oferece margem às variadas interpretações do brasileiro, o que diremos de quem reúne em si todos eles? É o que me pergunto quando ouço e vejo a sereia do Norte, a índio-negro-mestiça Gaby Amarantos cantar: "Eu vou samplear, eu vou te roubar". Vestida de saia vermelha e camisa preta: neo-pomba-gira em cirandas voltas.
Onde colocar Treme (2012)? Um disco em que a materialidade da tristeza é redimensionada para fazer a vida valer a pena? Uma materialidade que se confunde com as imagens que as canções trazem: "Eu canto mambo crioulo / Canto dentro do mambo, / Cabelo no grampo, / Saião de rodar". Tal e qual o Manguebeat, o Rap, o Funk carioca, o Tecnobrega (a festa das aparelhagens) é uma cena paralela à mídia tradicional: envolve comportamento, moda, costumes específicos de identidade.
O disco Treme é um daqueles acontecimentos que se assemelham aos lançamentos, entre outros, de Canção do amor demais (1958), Samba esquema novo (1963),Jovem guarda (1965), Tropicália ou Panis et circenses (1968), Fa-tal (1971), Clube da esquina (1972), Secos e molhados (1973), Amazonas (1973), Fruto proibido(1975), África Brasil (1976), Tamba-Tajá (1976), Canto das três raças (1976), Da lama ao caos (1994), Sobrevivendo no inferno (1998), Sujeito homem (2001), À Procura da batida perfeita (2003), Brasileirinho (2004), Calado (2011). Eventos redefinidores do pensar o Brasil pela canção.
Gaby Amarantos cria uma persona - Xirley - para mimetizar a si própria: independente porque da periferia, livre porque lúcida das suas raízes e da urgência de novidade. Ao estetizar sua trajetória, a garota da periferia mexe na geopolítica, causa pane no gosto de quem dá as cartas e as coordenadas da cultura, rompe o eixo sonoro RJ-SP. Como a guerreira em quem se monta na capa do disco. Aliás, a capa de Treme indicia o eletrônico fincado na floresta, desreprimindo a contraparte animal das técnicas e das próteses contemporâneas: aparelhagem e comigo-ninguém-pode, led e costela-de-adão, raio lazer e serpentes.
Um tanto diferente no flagra do gesto corporal, Gaby homenageia a capa do discoTamba Tajá (1976), de Fafá de Belém. Neste: uma guerreira doce, frágil e amalgamada com a paisagem. Naquele: uma guerreira fera radical de pelúcia. Ambas mestiças, românticas (cheias de esperança nacional) e passionais cantando o tempo e o espaço do povo de um lugar. Ambas, com seus corpos volumosos e vozes poderosas, interferindo na frequencia da sonoridade brasileira, afirmando: isso também é Brasil.
Cada uma com suas histórias e emergências, Gaby herda de Fafá o impulso e o compromisso de cantar sujeitos e temas historicamente esquecidos do mainstream. Sujeitos comuns, que estão na base da brasilidade e, por isso, são renegados. Elas dão vida a lemas do universo cotidiano desses sujeitos. Com o canto como missão, as duas sereias fazem este povo acontecer: imprime a energia do canto de um povo na voz. E eis que surge "Xirley", de Zé Cafofinho, Original DJ Copy, Chiquinho, Marcelo Machado e Hugo Gila.
Xirley é todos e ninguém, qualquer um. Indivíduo comum que ganha destaque, foco, movimenta a arte de sua comunidade. Ela é o Bartleby de Herman Melville. Mas, diferente deste, Xirley reage à pressão de existir dizendo: "preferiria sim". Xirley é uma cantora que prefere cantar com voz marcada pelas duras vivências corporais a sua potência de afirmação. Uma voz que não foi "educada" para cantar "Águas de março". E canta. Faz do clássico um raptupi. Por que não?
E engana-se quem pensa que Gaby (cavalo de Xirley) faz isso folclorizando as deficiências técnicas de sua localidade. Pelo contrário, Gaby chama atenção para sons que, vindos da periferia, com tecnologias próprias, entram nos fluxos de fluidos das possibilidades do fazer canção em tempos de vários modos de mobilidade técnica.
Aqui, a floresta se expande pela produção de tecnologia. Produção engendrada na pressão da pobreza. Gaby assume a urgência da voz da floresta mimetizada à voz da periferia. Comparativamente, Gaby se insere no ambiente dos manos. Rompe a estética da "música brasileira para inglesinho ver, em um som de estar e de festinhas felizes, e de cantoras malemolentes de vozes bonitinhas", turvamente identificada por Tales Ab'Saber no ensaio "A voz de Lula" (revista Serrote, n. 10).
Em Gaby, nada está às mil maravilhas. Sua voz não domesticada e seu corpo exuberante, vindos do centro da tensão entre a "ascensão de massas" e a permanência da miserabilidade em vários aspectos no Brasil, exigem uma mudança de postura do ouvinte, pedem um novo olhar para histórias postas na periferia, dentro do também histórico processo de "limpeza", entenda-se norte-americanização e eurocentrismo da cultura brasileira.
Porém, o mais radical em Gaby Amarantos é que ela não está preocupada com contradições e seus (talvez) datados valores dialéticos. Performatizando aquilo que o Brasil pós-centralizado não alcançou, índia-Iara canibal que é, Gaby engole Beyonce para cuspi-la depois. Devora as vicissitudes contemporâneas e radicaliza, pois nega - no corpo e no canto - o paternalismo interesseiro do mercado de consumo que quer atender à chamada "nova classe média".
Aliás, Gaby Amarantos põe em crise as relações de cordialidade até então fincadas entre essa "nova classe média" e a "velha classe média". Sendo esta a "mesma" voz que um dia disse lutar por democracia e hoje se ressente quando vê domésticas como protagonistas de novela no horário nobre da TV. A mesma voz conservadora que, ao final do clipe da canção, diz: "A pirataria é crime e pecado. Não transgrida a lei de Deus".
Voltando a Treme, como transpor uma festa de aparelhagem para um disco, para um mp3 sem perder a essência do acontecimento? "São toneladas de som / Muita iluminação / Nuvem, red e fumaça / Sacudindo a multidão / Tem telão de led / Onde o povão se vê / É melhor ao vivo / Do que 'eu vi na tv'". A tarefa não é fácil. Mas, entre algumas perdas, a produção de Treme faz o melhor.
Seja como for, ancorados em teorias em que o logos é desvocalizado - autoritário e excludente - e, consequentemente, sem corporalidades, já que a voz é o indício de que alguém de carne e osso existe, o que alguns críticos não conseguem entender quando se deparam com um fenômeno popular como Gaby Amarantos é que não dá para enquadrá-la em pre-conceitos europeizantes de cultura.
Gaby é índice do indivíduo que pensa com o corpo todo, latino-americano, eco das florestas plugadas nas tecnologias criadas para felicitar o povo. Ela caminha sobre o tênue fio que separa o exótico e o óbvio. E o óbvio, como sabemos, só é exótico visto de fora, por quem não o faz.
E aqui cabe lembrar que as aparelhagens - incorporadas até nas comemorações do Círio de Nazaré - chegam ao Pará nos anos 1950, vindas da Jamaica, popularizando o reggae, por exemplo, para com o tempo ganhar o apelo visual apoteótico presente nas festas de hoje. Pensar este processo - da radiola até as imensas caixas de som - requer um novo olhar, com outros instrumentos de análise.
Com a cabine (nave espacial a la Xuxa) do DJ virada para a plateia, Gaby e seu DJ são os mestres de cerimônia da festa de contato com um Brasil nada oculto. Tremer é uma resposta física do corpo às distorções sonoras das festas feitas por músicas de rápido consumo.
Com uma vertente mais melodiosa (Tecnomelody), feita para dançar junto, Treme é um convite para o "ao vivo" de um Brasil que sobrevive à margem e, cantando, geme e ri. Atento e forte às indiferenças dos centros de poder, à ditadura do gosto, à patrulha ideológica, o Brasil cantado por Gaby Amarantos não é ingênuo, como querem os paternalistas e/ou preconceituosos com tudo quem vem da periferia. Aliás, o que é periferia aqui? Este Brasil pensa quando se diverte, e se diverte quando pensa: quer ser lugar. E é - na voz forte e rasgante, que racha o conservadorismo, e no corpo cheio de curvas generosas de Xirley. Digo, de Gaby.
***
Xirley
(Zé Cafofinho / Original DJ Copy / Chiquinho / Marcelo Machado / Hugo Gila)
Saia vermelha, camisa preta
Chegou pra abalar
Quando tu for na casa dela, lhe buscar, ela vai preparar
Café coado na calcinha, só pra te enfeitiçar
E se tu for na aparelhagem
Tu vai ver só o que ela vai aprontar
Eu vou samplear, eu vou te roubar
Eu vou samplear, eu vou te roubar
Eu vou samplear, eu vou te roubar
* Pesquisador de canção, ensaísta, especialista e mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e doutor em Literatura Comparada, Leonardo também é autor do livro "Canção: a musa híbrida de Caetano Veloso" e está presente nos livros "Caetano e a filosofia", assim como também na coletânea "Muitos: outras leituras de Caetano Veloso". Além desses atributos é titular dos blogs "Lendo a canção", "Mirar e Ver", "365 Canções".
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