Por Leonardo Dantas Silva
Naquele hoje distante Carnaval de 1957, uma marcha-de-bloco tomou conta das ruas e salões, cantada a plenos pulmões por crianças e velhos, mulheres e homens, a relembrar sem querer velhos carnavais dos anos vinte, onde reinavam as figuras de Felinto, Pedro Salgado, Guilherme e Fenelon, quando das saídas dos blocos carnavalescos mistos das Flores..., Andaluzas ...., Pirilampos ..., Apôis Fum....
Tratava-se de Evocação, um frevo-de-bloco composto por Nelson Ferreira, que se tornara o grande sucesso da Fábrica de Discos Rozenblit, fundada no Recife em 1952 e distribuidora do selo Mocambo para todo Brasil. Gravado em 1956 para o carnaval de 1957, em disco em 78 RPM nº 15142 B, matriz R 791, foi o primeiro grande sucesso daquela gravadora, produzido no Recife e cantado em todo o país. A marcha tornou-se execução obrigatória em qualquer festa carnavalesca e, mesmo nos dias atuais, é comum encontrar-se grupos de foliões entoando animadamente em uma só voz: Felinto..., Pedro Salgado, / Guilherme, Fenelon, / Cadê teus blocos famosos ?! / Blocos das Flores..., Andaluzas..., / Pirilampos..., Apôis Fum... / dos carnavais saudosos ?!..”
Declara o próprio Nelson Ferreira, em depoimento ao Museu da Imagem e do Som de Pernambuco e em texto inserido no álbum duplo Rozenblit – LPP 015/16 (1968), que Evocação nº 1 fora inspirado em figuras de blocos carnavalescos do Recife dos anos 20, então desaparecidas:
Felinto de Moraes e Fenelon Moreira [de Albuquerque] eram do Apôis Fum; Pedro Salgado era presidente do Bloco das Flores; Guilherme de Araújo era a figura de proa do Andaluzas em Folia e do Pirilampos de Tejipió; o velho Raul Moraes era compositor, pianista e ensaiador do Bloco das Flores, para o qual escreveu várias marchas, inclusive a Marcha Regresso. Dela usei os versos ‘Adeus, adeus minha gente / Que já cantamos bastante’. Fiz Evocação nº 1 numa noite, de uma vez só.
Dessas figuras citadas, notabilizava-se Felinto de Moraes (Recife, 1884 - Rio de Janeiro, 1927), fundador e principal dirigente do mais famoso bloco carnavalesco de todos os tempos, o Apôis Fum, surgido na povoação da Torre em 1925. Em depoimento ao Diario de Pernambuco, de 29 de janeiro de 1980, uma antiga simpatizante, Ana Uzeda Luna, afirma que “o bloco congregava os melhores músicos, inclusive os componentes do conjunto Turunas da Mauricéia, conjunto vocal composto pelos maiores violonistas de sua época, entre eles Manuel de Lima (violonista cego), Alfredinho de Medeiros e seu primo Felinto de Moraes; o bandolinista Luperce Miranda (1904-1977) e seu irmão, Romualdo Miranda (1897-1930), eram a nota alta dos bandolins, enquanto Augusto Calheiros (1891-1956), que viria receber o apelido de Patativa do Norte, chefiava o coro”.
A orquestra de pau-e-cordas, formada por dezesseis violões, dentre eles Alfredo de Medeiros e Felinto de Moraes, bandolins dedilhados por Luperce Miranda e seus irmãos , violinos, clarinetos e outros instrumentos, era dirigida por Zuzinha, apelido pelo qual ficou conhecido o mestre-de-banda José Lourenço da Silva (1889-1952), que por muito tempo foi o regente da Banda da Polícia Militar de Pernambuco. Os ensaios eram realizados na residência do diretor Francisco Sá Leitão, localizada em frente ao atual Sesi da Torre, na Rua José Bonifácio. No repertório composições do próprio Zuzinha, Sustenta a Nota; Miguel Barkokebas, Esse bloco é meu; Luperce Miranda, Quininha e Seu Raimundo no frevo; notabilizando-se a marcha-regresso, composta por Raul Moraes, conhecida pelo título de Saudade Eternal: “Saudade, eternal! / Deixamos no Carnaval / E o Bloco Apôis Fum / Portou-se como nenhum....”.
O “Príncipe das Marchas-de-Bloco”, como ficou sendo conhecido, nasceu em 2 de fevereiro de 1891, na Rua da Soledade nº 25, no bairro recifense da Boa Vista, tendo falecido na mesma cidade, em 6 de setembro de 1937, na Rua Cais Ligeiro, subúrbio da Torre, segundo noticia recolhida pelo pesquisador Evandro Rabello no Jornal Pequeno, edição do dia 8 do mesmo mês.
Juntamente com o irmão, Edgard Moraes (1904-1974), Raul participou, além do Bloco das Flores, de outros blocos carnavalescos do Recife, tocando bandolim e seu mano cavaquinho, segundo informa o Diario de Pernambuco de 5 de fevereiro de 1924. Para o Bloco Apôis Fum, compôs no ano seguinte uma das suas célebres marchas-regresso, Saudade Eternal, famosa pelo seu refrão:
A manhã já vem surgindo
Já se vê, já se vê
A luz do dia
E o Apôis Fum já vai sentindo
Vai sentindo
Saudades da folia
Saudade, eternal
Deixamos no carnaval
E o Bloco, Apôis Fum
Portou-se como nenhum.
Foi um sonho que passou
Belo sonho, belo sonho sem igual
E o Apôis Fum só demonstrou
Só demonstrou
O fulgor do Carnaval
Saudade, eternal
Deixamos no Carnaval
E o Bloco, Apôs Fum
Portou-se como nenhum
Segundo depoimento de Apolônio Gonçalves de Melo, in Antologia do Carnaval do Recife , o “Bloco Apôis Fum, de Guilherme Araújo e Fenelon de Albuquerque, foi considerado um dos mais finos da cidade. Na sua primeira exibição vestiram-se de palhaços brancos com botões pretos e usavam nas cabeças bonitos funis. Com boa orquestra e uma mocidade de primeira linha. Puxava o bloco um carro alegórico representando a bola do mundo com uma linda garota sobre a bola que era admirada por todos”.
Em sua primeira exibição, o Apôis Fum logo conquistou a simpatias da cidade, com os seus componentes fantasiados de pierrôs e pierretes, em cetim branco, botões negros, pompons prateados, chapéu em cone do mesmo tecido, trazendo um belo carro alegórico com uma linda jovem, portando o rico flabelo do bloco, e “uma mocidade de primeira linha”. Ao chegar em frente ao Jornal do Commercio, na Rua do Imperador, encontrou-se com o Bloco das Flores, de Pedro Salgado e Raul Moraes, que passou a executar a sua famosa Marcha da Folia.
O Apôis Fum não se deu por perdido e, ao som de Sustenta a Nota, marcha composta por Zuzinha, abafou o seu rival e assim conquistou os prêmios de “Melhor Orquestra”, “Melhor Fantasia”, “Maior Conjunto” e “Mais Bela Marcha”, fazendo jus ao seu Regresso, “... e o Bloco Apôis Fum, portou-se como nenhum”.
Em 1927, os Turunas da Maricéia viajaram para o Rio de Janeiro, tendo uma memorável estréia no Teatro Lírico, em festa patrocinada pelo Correio da Manhã. Vestindo à moda dos sertanejos, com chapéus de abas largas e alpargatas de rabicho, os violonistas Romualdo Miranda, Manuel de Lima, Piriquito e Felinto de Moraes, juntamente com o bandolim de Riachão, acompanharam Augusto Calheiros na apresentação de cocos, emboladas, toadas e outros ritmos pouco conhecidos na Capital Federal. É desta época as gravações de Helena (Luperce Miranda) e Pinião (Luperce Miranda e Augusto Calheiros), este último grande sucesso no Carnaval de 1928.
Felinto, porém, já se encontrava bem doente.... Naquele mesmo ano de 1927, no Rio de Janeiro, ao pressentir a chegada da indesejada das gentes, o boêmio Felinto de Moraes, falou para os seus familiares que “não ia morrer não! Ia fazer a sua última serenata...”. A cena dos seus últimos momentos é descrita por Austro Costa, em um dos seus antológicos poemas, Felinto:
O Boêmio sentiu que ia morrer
Então,
vendo chegar a grande hora
de entregar a alma a Deus
(o bom Deus dos que amara e honraram a Boemia,
dos que souberam romantizar a paisagem impassível da Vida
humanizando a alma da Noite,
enchendo as ruas de canções errantes,
– fascinados do Luar, do Vinho e das Mulheres –)
não quis tristeza, não quis pranto.
Não ia morrer, ai, não! Ia fazer a última serenata...
Assim falou, no leito de moribundo,
Aos que foram ver, assistir-lhe à agonia:
seus amigos,
seus irmãos de inefáveis, românticas vagabundagens,
velhos e amados companheiros de vida alegre,
de vida boa cheia de luares e de violões...
E eles choravam. Todos choravam no quarto triste,
onde a intrusa com pés de lã já penetrava.
Só não chorava o que ia morrer.
(Niágara dos olhos – mortos de vigília – da esposa alanceada!
Fontes confusas e pasmadas de infantis olhos – coitadinhos! ...)
E, no silêncio cheio de lágrimas,
O Boêmio falou de novo.
Não ia morrer, ai, não! Ia, apenas, fazer a última serenata...
– “Frazão! Romualdo! Manuel de Lima! Pernambuco!
toca a tocar! ...
Eh! lá, Calheiros! vamos cantar! ...
Nada de choro! O choro que eu quero
é de violão, pandeiro, flauta, banjo,
saxofone e reco reco (Apôis Fum !...)
Vamos, Frazão! Aquele solo maravilhoso
que você dedicou a minha filha...
Calheiros, você canta uma das suas ....
Eu acompanho ao violão...”.
Mas no quarto da Morte tudo era um soluço.
Ninguém queria tocar, cantar.
E o Boêmio, triste, pôs-se a chorar.
Pois, seus amigos, seus companheiros tão queridos,
seus irmãos de suaves, divinas loucuras
não lhe satisfaziam o último desejo?!
– “Rapazes,
vocês não parecem os Turunas da Mauricéia!
Vamos! Eu quero morrer alegre, morrer ouvindo
a alma boêmia da minha terra,
a voz, o canto do meu povo
na voz, na música de vocês!
Quero lembrar tudo o que fui na vida louca,
quero evocar tudo o que amei!
Não me façam sofrer! Quem morre é um boêmio ...
Meu coração só quer cantar ...
Meu violão ...”
Então, no quarto triste,
onde a Intrusa, impassível, fiava, fiava,
violões acordaram na noite serena um luar de agonia,
e uma voz trêmula e bárbara, comovida,
estrangulando, num canto convulso, a alma de um soluço imenso,
redimiu, para sempre, a saudade boêmia da terra maurícia.
O silêncio que veio depois, com mão suave
cerrou do Boêmio, para sempre, os olhos doces.
(Não ia morrer, ai, não! Ia fazer, apenas, sua última serenata...)
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