sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

AS BANDEIRAS DE DAVID NASSER - PARTE 02

Este ano completa-se 35 anos da morte do jornalista e compositor que partiu aos 63 anos na cidade do Rio de Janeiro

Por Letícia Nunes de Moraes*



Resumo – David Nasser foi um dos jornalistas mais famosos no Brasil dos anos 1940 e 1950. Não apenas famoso, mas controvertido. Sua carreira se confunde com a história da revista O Cruzeiro na qual ficou conhecido pela parceria com o fotógrafo francês Jean Manzon, ao lado de quem produziu jornalismo temperado com ilusão e polêmica. Letrista de canções memoráveis da música popular brasileira, Nasser foi também membro, como presidente de honra, de um grupo de extermínio ligado à polícia carioca, denominado Scuderie Le Coq.

Palavras-chave: imprensa, música, política, polícia, autoritarismo.



CRONISTA POLÍTICO

Em 1959, David Nasser tornou-se também um dos diretores de O Cruzeiro e passou a assinar o primeiro artigo da revista, em página dupla. Sobre a sua atuação como cronista político, escreveu:

Entenda-se, assim, que a orientação geral e política da Revista não é – Deus me livre! – traçada por mim. A única coisa que sou, graças a Deus, é chefe de mim mesmo. Destas duas páginas. Desta coluna independente. [...] Não podia ser doutra forma, havendo cento e tantas páginas para brincarem, opinarem, guerrearem, trucidarem, fazerem as pazes, deixando-me em paz em meu diálogo com o público. O meu DIP sou eu mesmo (NASSER, 1966, p. 9-13).

No mesmo ano, em 21 de setembro, Chateaubriand doou a 22 empregados 49% da propriedade do seu império de comunicação, dando origem ao Condomínio Acionário das Emissoras e Diários Associados. David Nasser não foi contemplado no primeiro momento, passando a ser condômino somente a partir de 1962. Na TV Tupi, suas crônicas foram lidas no programa “Diário de um repórter”, entre 1962 e 1970.

Não aparecia ao vivo – era fanhoso, tinha a dicção atrapalhada e, explicou, Chatô não gostara quando o vira uma vez. Seus textos eram lidos por Alberto Curi, e “assinados” por uma imagem em que aparecia datilografando (CARVALHO, 2001, p. 423).

Em 28 de fevereiro de 1960, Chateaubriand sofreu uma dupla trombose cerebral que o deixou tetraplégico. Apesar das limitações físicas, continuou escrevendo de sua residência em São Paulo, a Casa Amarela, transformada, inclusive, num dos centros de conspiração contra o governo do presidente João Goulart nos anos que precederam o golpe que o depôs.

David Nasser teve participação ativa na conspiração civil-militar que pôs fim ao governo Goulart. Seu principal inimigo político foi o ex-governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola. Eleito com 269 mil votos, o deputado federal mais votado da história do Congresso até aquela data, Brizola já havia mostrado sua força política e sua habilidade no trato com a imprensa em 1961 quando, para garantir a posse do cunhado e vice-presidente, João Goulart, após a crise que sucedeu a renúncia de Jânio Quadros, formou a chamada Cadeia da Legalidade, comandando 104 emissoras gaúchas, catarinenses e paranaenses e mobilizando a população em defesa da posse de Goulart. Denunciava a adoção do parlamentarismo como violação da Constituição.

Durante o governo Goulart, Leonel Brizola se tornou a principal liderança da esquerda e alvo de ataques, na imprensa, dos setores conservadores, envolvidos da Cadeia Democrática, coordenada pelo complexo formado pelo Instituto Brasileiro de Ação Democrática (Ibad), pelo Instituto de Pesquisa e Estudos Socais (Ipes) e pela Escola Superior de Guerra (ESG), que camuflavam suas intenções golpistas, apresentando-se como espaços de estudos e debates sobre a sociedade.

David Nasser foi um dos jornalistas que o enfrentram. E o fez da forma mais dura entre todos os políticos sobre os quais escreveu. Durante todo o ano de 1963, Nasser escreveu vários artigos insultando o ex-governador: “A besta do Apocalipse”, “O bandoleiro da sintaxe”, “Os Brizolas passam, o Brasil fica” e “Resposta a um pulha”, nos quais disparou ofensas contra o ex-governador: “covarde”, “bestinha fácil de montar”, “inimigo da imprensa, da gramática e do alfabeto”. Quando Brizola entrou com processo por injúria e difamação contra o jornalista, a resposta veio em “O réu feliz”:

Talvez tenha a minha mão carregado no adjetivo [...]. Não recorrerei, por desnecessário, à adjetivação que coloriu de marrom – reconheço – a minha resposta. Mas reconheçam, também, que não se responde a uma bofetada com uma flor [...]. Senhor juiz, sou réu confesso, se é possível medir o adjetivo. Porém, todas as vezes, neste mesmo lugar, neste mesmo banco onde me traz a profissão, todas as vezes que a honra me trouxer aqui, eu serei um réu feliz (NASSER, 1963c, p. 6-7).

A desavença entre os dois chegou à agressão física, quando, em dezembro de 1963, num encontro casual no Aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro, foram ao chão, aos socos. Sobre o episódio escreveu “O coice do pangaré”:

Depois da agressão pelas costas – e do revide pela frente – bato o teclado desta máquina com a mão que esbofeteou um canalha pela segunda vez. A primeira, quando o retratou  moralmente. A segunda, quando respondeu ao ataque traiçoeiro. [...] Se Kennedy, que era Kennedy, não pode evitar a bala de um louco de Dallas – como poderia eu escapar ao coice de um pangaré de Carazinho? São acidentes do trabalho (NASSER, 1964).

Logo após o golpe civil-militar de abril de 1964, David Nasser publicou, em 2 de maio de 1964, uma coletânea de advertências sob o título “Caiu de burro” em referência ao presidente João Goulart: “Longos, longos meses, adverti a Nação da marcha batida do Sr. João Goulart para a deposição ou a renúncia. O Brasil não acreditava. O presidente sorria”. Ao final do texto de Nasser, foi reproduzido um telegrama: “Esta vitória teve em você um dos seus mais formidáveis generais. Foi o maravilhoso anjo vingador. Chateaubriand”. A mensagem evidencia a participação de David Nasser na conspiração que derrubou João Goulart. Um mês depois escreveu:

Pertenço àqueles que vêem na atitude firme dos militares, que planejaram e executaram esse movimento, com a ajuda de governadores e parlamentares democráticos, um propósito nobre: o de salvar o Brasil da ameaça comunista e da hemorragia inflacionária (NASSER, 1964b, p. 4-5).

Apoiou o regime militar em todas as suas etapas, mesmo nos períodos de maior violência repressiva, sempre fazendo coro com o discurso dos presidentes militares. Desde o primeiro (marechal Humberto de Alencar Castelo Branco – 1964-1967) até o último (general João Baptista de Oliveira Figueiredo – 1979-1985) dos presidentes militares, nos discursos para o grande público, notadamente aqueles nos quais tomam posse formalmente no exercício das funções presidenciais, fazem questão de reafirmar suas ações e comportamentos em nome da defesa e da democracia no país (AQUINO 1997).

O último presidente militar, o general João Baptista Figueiredo, chegou a afirmar em pronunciamento que defenderia a democracia, mesmo que para isso fosse preciso “prender e
arrebentar”. Contudo, de acordo com a historiadora Maria Aparecida de Aquino (1997, p. 273):

A democracia é, por sua origem, um regime que não usa da violência, não é imposto, respeita a escolha do cidadão e, em função de sua liberdade e integridade mental e física, é exercido. “Prender e arrebentar” não são atributos seus, e sim a garantia da manutenção de todos os direitos inalienáveis do cidadão, inclusive o de discordância pública com os governantes. Estes, na plena vigência do regime, devem demonstrar inequivocamente a capacidade de convivência com os mais variados antagonismos que são fruto da sociedade, entendida como conflituosa por natureza.

Defesa da democracia, combate ao comunismo e à corrupção: esses três pilares sustentaram o discurso conspiratório para a deposição de Goulart e a intervenção militar que perdurou 21 anos. O Poder Executivo apenas retornou aos civis após duas décadas de autoritarismo. David Nasser aplaudiu as ações das forças repressivas que lhe deram sustentação dizimando a oposição. Quando Carlos Lamarca, ex-capitão do Exército e principal líder da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) (MACIEL, 2006), foi morto, em setembro de 1971, durante emboscada no sertão da Bahia, David Nasser (1971b, p. 16) escreveu sobre o guerrilheiro: “de nada adianta insultar os mortos, mas apontar os seus erros”, entretanto:

Tumultuado, passional, fanático, nem ele mesmo sabia o que pregava nem o rumo que seguia. Primata ideológico, indigente político, misturava tudo, idéias, mapas, planos, granadas, sandálias, mágoas, sonhos, e saía por aí como cangaceiro do marxismo de tempero chinês, ora pregando a guerrilha urbana, ora defendendo a guerrilha rural – mas só, sempre só, sem agrupar em torno de si, de suas idéias, de sua loucura, mais do que um grupo ultraradical. [...] Delirante, paranóico, briga com a própria sombra.


Estabeleceu laços estreitos com membros do governo militar. Entre todos os ministros com os quais se relacionou, Mário David Andreazza, ministro dos Transportes nos governos de Costa e Silva e Médici e, posteriormente, do Interior, no governo Geisel, foi o mais próximo, “de maior confiança e intimidade”, segundo Carvalho (2001, p. 463-464), a quem “pediu e prestou serviços”:


David escrevia seus discursos, defendia-o das acusações, aconselhava-o nos problemas internos do ministério, tinha acesso a informações confidenciais sobre as crises no governo, levava-o a grandes festas na sua casa. Era o “seu” ministro, como gostava de dizer.


EMPREITEIROS DE JESUS

Paralelamente à perseguição política aos opositores do governo, durante a década de 1970, ganhava terreno a ação clandestina dos esquadrões da morte. Em diversas ocasiões, Nasser defendeu publicamente a atuação dos “empreiteiros de Jesus”. Em 30 de março de 1963, defendeu a lei do olho por olho ao escrever sobre o assassinato do filho do jornalista Odylo Costa Filho, seu colega em O Cruzeiro, por outros jovens menores de idade:

Morreu com a dignidade de um veterano, caiu sob armadura medieval, defendendo a sua dama contra bandidos. E eram talvez bandidos de sua idade. Hoje – seu pai, que retoma o trabalho e vê paginar o drama que lhe sai das entranhas – sabe que tem comigo, com todos os homens decentes dessa submerdência (e é submerdência mesmo), uma responsabilidade maior: poupar a vida de nossos filhos, encurtando a dos assassinos. Vamos almoçá-los antes que jantem os nossos meninos. A ordem é essa: um revólver na cintura e atirar para matar (NASSER, 1963b, p. 4).

Datam dessa época as amizades com investigadores da polícia civil. De acordo com Carvalho
(2001, p. 412-414), o que era uma relação informal “iria se tornar oficial entre o final de 63 e o golpe militar, quando Nasser levou os ‘empreiteiros de Jesus’, como os chamava, para dentro de casa”, onde lhe deram proteção contra uma eventual reação ao golpe, o que não ocorreu. No Rio de Janeiro, o nome Scuderie Le Cocq foi uma homenagem do grupo de extermínio carioca ao detetive Milton Le Cocq, morto em 27 de agosto de 1964. Sobre o amigo assassinado, Nasser (1964a, p. 14) escreveu:

O Detetive Le Cocq era um homem sério. Se não tivesse sido policial – um dos mais brilhantes e queridos que a corporação teve em sua história –, teria sido um lavrador tranquilo. [...] Realmente é preciso responder com um único argumento que eles entendem, à bala, levando o terror até onde esses bandidos vivem [...] que dêem aos policiais uma ordem: atirem para matar. Dez bandidos mortos por um policial tombado, como o inesquecível Le Cocq, no cumprimento de um dever mal pago pelo Estado e mal compreendido pelo povo. 

Quando a Scuderie Le Cocq foi legalizada, em 1971, Nasser foi oficialmente escolhido seu presidente de honra. No mesmo ano, escreveu artigo no qual contava que o cineasta francês Marcel Camus lhe teria procurado com a proposta de fazer um filme sobre o esquadrão da morte. Nasser (1971a, p. 20) rechaçou a ideia, argumentando:

Um filme como este seria contra o Brasil, muito mais de que contra todos os abomináveis esquadrões da morte. Contribuiria pra que lá fora imaginassem que a Revolução compactuaria ou ao menos não reprimiria esses processos sumários de combater o crime. [...] Sou contra todas as penas de morte – sejam ditadas pelos esquadrões dos terroristas, dos policiais ou as penas capitais inseridas nas leis brasileiras após quase um século.

Inconformado com a proporção adquirida pela atuação do esquadrão da morte, Hélio Bicudo (1976, p. 25), então procurador da Justiça do Estado de São Paulo, obteve, em 23 de julho de 1970, autorização do procurador-geral de Justiça, Dario de Abreu Pereira, para orientar e supervisionar o trabalho do Ministério Público no caso do esquadrão da morte:

Adepto, por formação caracteriológica e profissional, de uma atuação decidida do Ministério Público no combate ao crime, entendia e entendo que as coisas não poderiam ficar no ponto que se encontravam já. Se às escâncaras, com intensa cobertura jornalística, o escândalo já ultrapassava as nossas fronteiras e revistas de todo o mundo narravam as façanhas do “Esquadrão”, a Procuradoria da Justiça não podia descansar de braços cruzados.

As ações dos esquadrões da morte não ficaram restritas ao Estado da Guanabara. Em São Paulo, uma representação do grupo paulista funcionava no Palácio da Polícia Civil, onde
atuava o delegado Sérgio Paranhos Fleury, o homem forte da repressão política durante o regime militar. Segundo o jornalista Percival de Souza (2000, p. 17):

A fama lhe veio, entretanto, quando um grupo de policiais formou um órgão de extermínio autodenominado Esquadrão da Morte, para liquidar os que seriam os bandidos mais perigosos da cidade, num desafio aberto à Justiça e com apoio irrestrito dos mais altos escalões dos responsáveis pela segurança pública. Então Fleury passou a ser reverenciado como se seus homens – “a equipe do doutor Fleury”, conforme se dizia – tivessem licença especial para matar, sem nenhum questionamento.

A ausência de garantias individuais imposta pelo Ato Institucional nº 5 (AI-5), decretado em 13 de dezembro de 1968, abriu caminho para ações violentas da polícia sobre a população, misturando a repressão aos chamados crimes políticos (contra a segurança nacional) à perseguição aos criminosos “comuns” e esmoreceu a atuação dos órgãos de fiscalização do
Estado, reféns da estrutura de poder montada pelo regime militar. 


VELHO CAPITÃO

Em junho de 1967, David Nasser foi afastado de O Cruzeiro por causa do artigo “Burrice americana”, no qual criticava duramente a política comercial do governo brasileiro. No mesmo ano, embora mantivesse o nome no expediente da revista dos Diários Associados,
passou a escrever para a revista Manchete, fundada em 1952 para ser a principal concorrente de O Cruzeiro. No mesmo ano, recebeu da Academia de Ciências de Lisboa o Prêmio Camões pelo livro Portugal, meu avozinho, publicado em 1965, uma coletânea de artigos sobre a terra de Camões publicados em O Cruzeiro e escritos durante 1964, quando David Nasser esteve em Portugal. Sobre a premiação, o dono dos Diários Associados escreveu o artigo “Nem Camões escapou desta peste!”, no qual reafirma a ligação do jornalista com a revista que o tornou célebre:

O galardão é o maior concedido pela Academia. E se aqueles homens graves, que conservam a nobre e alta tradição do espírito português, resolveram-se a premiar o turco com tão alta comenda, é que o consideram, no melhor sentido da palavra, um brilhante homem de letras. Nós, aqui de O CRUZEIRO, e dos “Diários Associados”, estávamos habituados a ver nele o colunista que brotou do repórter, em uma evolução natural do escriba que amadureceu e que, de revelador de grandes temas e denunciador de grandes escândalos, passara a comentador de energia e coragem, dono de um estilo agressivo, e de uma coragem pessoal rara em nossa vida pública. [...] O prêmio é de David, mas a glória é também nossa, porque nosso, dos “Associados”, é o turco da peste que o conquistou (CHATEAUBRIAND, 1967, p. 6).

Quando Chateaubriand faleceu, em abril de 1968, Nasser (1968, p. 15) despediu-se do Velho Capitão com um artigo publicado em Manchete: 

Chateaubriand não apenas respeitava, mas suportava as minhas divergências, meus descaminhos, minhas rebeldias. Nunca fui seu pau-mandado. Não quero tratar aqui, por uma questão de higiene literária, das tentativas que fizeram para transformar um desacordo político numa questão pessoal. Nunca o conseguiram.

O desacordo político mencionado no texto era o ex-presidente Juscelino Kubitschek, em cujo governo Chateaubriand fora embaixador do Brasil na Inglaterra, entre 1957 e 1960. Em 1963, Nasser escreveu: “Quantas, quantas brigas tivemos, eu e meu patrão, por você, Juscelino! [...] Não queria que eu o maltratasse”. No fundo, reivindicava para si a responsabilidade pelo assassinato político do ex-presidente:

Permita-me, Chefe, que não aceite de suas mãos de anatomista, o cadáver insepulto do homem que ajudei a assassinar politicamente. Permita-me dizer-lhe, companheiro da Casa Amarela, que o verdadeiro Juscelino é o seu Juscelino de ontem, o meu Juscelino de hoje. Somos um trio desafinado (NASSER, 1963a, p. 4).

Em 8 de setembro de 1970 retornou à revista O Cruzeiro ocupando novamente as primeiras páginas. Com grande alarde foi anunciada “A volta do turco”. Nessa fase, escreveu diversos artigos enaltecendo o governo Médici e minimizando a repressão política. Engrossou o discurso ufanista, alimentado, de um lado, pela prosperidade alcançada por meio do chamado milagre econômico e, de outro, pela conquista do tricampeonato na Copa de Mundo pela seleção brasileira de futebol, em junho de 1970:

Nenhum outro governo, nenhuma outra revolução, nenhum outro momento mais propício do que este – sem que seja preciso mudar, cassar ou prender. É o momento estelar de um povo que quer encurtar a distância entre a riqueza e a miséria. E é também o momento estelar de um Presidente que veio do desconhecido para a possível imortalidade (NASSER, 1972, p. 22).

Nesse momento, encontrou em Dom Helder Câmara o novo alvo para seu habitual apedrejamento verbal. A campanha desmoralizadora foi motivada pelas denúncias de tortura no Brasil feitas pelo arcebispo no exterior. Também escreveu em causa própria, pois, a essa altura, era proprietário de fazendas e produtor de café e gado. Apesar de não escrever mais para O Cruzeiro desde 1973, a sua saída definitiva foi formalizada em 20 de maio de 1975, em carta encaminhada a João Calmon, presidente do Condomínio Acionário das Emissoras e Diários Associados desde a morte de Chateaubriand, amplamente divulgada na imprensa, na qual declarava discordar “frontalmente do modo pelo qual está sendo administrado [...] traindo as nobres intenções do criador do instituto” (CARVALHO, 2001, p. 526). A revista saiu de circulação melancolicamente em 1975.

Em 1976, David Nasser retornou à revista Manchete, para onde levou as mágoas, as lembranças, a saudade da revista para a qual escrevera por três décadas: de 1943 a 1973. Para lá, levou também o ressentimento contra João Calmon, tema de vários artigos escritos em Manchete, o que causou desconforto junto a Adolph Bloch, fundador da revista, que encarregou Carlos Heitor Cony, então diretor de Manchete, a informá-lo de que um de seus artigos seria vetado e substituído por uma matéria, escrita pelo próprio Cony: “David Nasser, o repórter”. Em entrevista concedida a Luiz Maklouf Carvalho (2001, p. 537), Carlos Heitor Cony revelou a primeira impressão que teve ao conhecer Nasser pessoalmente, em junho de 1975, durante a crise dos Associados:

A sensação mais importante que eu tive foi a disparidade entre a imagem pública um boca-de-fogo, um repórter agressivo – e aquele caco que eu encontrei. Era uma pessoa
frágil, indefesa, precisando de apoio para descer uma escada, abotoar uma camisa. A fragilidade de chocou muito.

Dono de uma personalidade autoritária, David Nasser adotou o estilo de seu “Velho Capitão”
de fazer jornalismo, ou seja, usar a informação como moeda de troca para obtenção de benefícios pessoais. Deixou uma fortuna em imóveis e fazendas à esposa, Isabel, quando faleceu em 10 de dezembro de 1980, vítima de câncer de fígado. Seu corpo foi velado do prédio da Manchete. Atendendo a um desejo seu, a bandeira da Scuderie Le Cocq guarneceu o caixão. 


REFERÊNCIAS
ALVES, M. H. M. Estado e oposição no Brasil (1964-1984). Bauru: Edusc, 2005.
ACCIOLY NETTO, A. O império de papel: os bastidores de O Cruzeiro. Porto Alegre: Sulina, 1998.
AQUINO, M. A. de. A especificidade do regime militar brasileiro: abordagem teórica e exercí-
cio empírico. In: REIS FILHO, D. A. (Org.). Intelectuais, história e política: séculos XIX e XX. Rio
de Janeiro: 7letras, 1997. p. 271-289.
BICUDO, H. P. Meu depoimento sobre o esquadrão da morte. 2. ed. São Paulo: Pontifícia Comissão
de Justiça e Paz de São Paulo, 1976.
CARVALHO, L. M. Cobras criadas: David Nasser e O Cruzeiro. 2. ed. São Paulo: Senac, 2001.
CHATEAUBRIAND, F. de A. Nem Camões escapou deste peste! O Cruzeiro, Rio de Janeiro,
1967.
DREIFUSS, R. A. 1964 – a conquista do Estado: ação política, poder e golpe de classe. 6. ed.
Petrópolis: Vozes, 2006.
HAMBURGUER, E. Diluindo fronteiras: a televisão e as novelas no cotidiano. In: SCHWARCZ,
L. M. História da vida privada no Brasil: contrastes da intimidade contemporânea. São Paulo:
Companhia das Letras, 2000. p. 439-487.
MACIEL, W. A. O capitão Lamarca e a VPR. São Paulo: Alameda Editorial, 2006.
NASSER, D. Um trio desafinado. O Cruzeiro, Rio de Janeiro, p. 4-5, 2 fev. 1963a.
_______. Só mesmo à bala. O Cruzeiro, Rio de Janeiro, p. 4-5, 30 mar. 1963b.
_______. O réu feliz. O Cruzeiro, Rio de Janeiro, p. 6-7, 28 set. 1963c.
_______. O coice do pangaré. O Cruzeiro, Rio de Janeiro, p. 6-7, 18 jan. 1964a.
_______. Caiu do burro. O Cruzeiro, Rio de Janeiro, p. 4-5, maio 1964b.
_______. A revolução que se perdeu a si mesma. Rio de Janeiro: O Cruzeiro, 1965a.
_______. O Rei David. Manchete, Rio de Janeiro, 1965b.

_______. Jânio: a face cruel. Rio de Janeiro: O Cruzeiro, 1966.
_______. Meu último encontro com Chateaubriand. Manchete, Rio de Janeiro, 7 abr. 1968.
_______. Le Cocq foi o antiesquadrão. O Cruzeiro, Rio de Janeiro, p. 20, 23 jun. 1971a.
_______. O último diálogo. O Cruzeiro, Rio de janeiro, p. 16, 6 out. 1971b.
_______. A revolução do homem. O Cruzeiro, Rio de Janeiro, p. 22, 19 jan. 1972.
NUNES, A. Já não se faz imprensa assim. Ainda bem. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 15 dez.
2001. Disponível em: <http://www.observatoriodaimprensa.com.br/artigos/asp19122001998.
htm>. Acesso em: 12 maio 2011.

SOUZA, P. de. Autópsia do medo. São Paulo: Globo, 2000.



* Mestra e doutora em História Social pela Universidade de São Paulo (USP). Autora do livro Leituras da revista Realidade (1966-1968), publicado pela Alameda Editorial.

0 comentários:

LinkWithin