Entre os muitos prejuízos causados ao Brasil pela ditadura militar, um deles foi a censura à música popular. Durante o regime que governou o País durante 21 anos - de 1964 a 1985 -, toda e qualquer ideia que fosse contrária aos interesses militares foi perseguida, combatida e eliminada. A censura não atingiu apenas a canção, mas também o cinema, o teatro, a literatura e o jornalismo. Foi a música, porém, seu alvo preferencial, dado seu poder de penetração no inconsciente coletivo. Compositores foram presos e banidos do território nacional; discos foram proibidos e retirados de circulação; canções morreram antes mesmo de nascer para os ouvidos do público.
No auge da fase mais criativa, a MPB foi amordaçada e tratada como inimiga do Estado. Tudo isso já era sabido. Mas há uma informação pouco conhecida e divulgada: a maior parte das músicas censuradas pelo regime não criticava diretamente - ou nem mesmo indiretamente - os militares; muitas foram proibidas porque "atentavam contra a moral e os bons costumes". Seria engraçado, se não fosse trágico.
O site Censura Musical (www.censuramusical.com), primeiro a disponibilizar o acesso aos documentos proibidos da censura oficial do Estado, está na web há pouco tempo e já pode ser considerado uma das mais importantes fontes de pesquisa sobre o período mais sombrio da história do Brasil.
O acervo que ele disponibiliza, compilado no Arquivo Nacional de Brasília e do Rio de Janeiro, revela a paranóia e a ignorância dos censores sobre a obra de artistas como Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Belchior, João Bosco, Aldir Blanc e até mesmo Odair José - cantor de evidente ingenuidade, mas precursor em temas que incomodavam os moralistas de plantão. Criado pelos jornalistas André Rocha, Gabriel Pelosi e Lucas Mota, então estudantes de Jornalismo da Universidade Mackenzie, em São Paulo, o site chegou a virar notícia até no diário espanhol El País.
Segundo André Rocha, o objetivo do site é trazer a discussão para o contexto atual a partir de atualizações mensais, além de se tornar uma importante fonte de consulta para pesquisadores e interessados no assunto. "A informação é ferramenta essencial para a democracia. Queremos mostrar também que não só os autores politizados foram perseguidos, mas que compositores mais populares, tidos como alienados, também sofreram nas mãos da ditadura", comenta.
A revelação não é inédita, mas a quantidade de documentos recolhidos pelos jornalistas mostra que a censura foi maior e mais dura do que se imaginava. E ressalta ainda a desinformação dos funcionários responsáveis pelo veto das letras: muitas canções eram proibidas porque os censores não entendiam o que elas estavam dizendo.
Critério
"O critério era não ter critério. Às vezes eles barravam determinada música por não entenderem o que estava escrito ali. Não estavam preparados para aquela atividade, foram remanejados de outros departamentos e caíram em uma função jamais imaginada por eles", conta João Carlos Muller, na época advogado da Phonogram e Odeon-EMI. Todos os documentos produzidos pela Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCPC) estão disponíveis desde 1996 no Arquivo Nacional, mas muitos ainda estão em processo de catalogação.
O site, em primeira mão, divulga alguns desses documentos em formato PDF. Eles levam à constatação de que a "ameaça" à tradição dos bons costumes, calcada em valores conservadores, tinha o mesmo peso que a crítica social e política, na visão do regime. A justificativa era de que a "obscenidade" e a "pornografia" eram contrárias aos "interesses nacionais".
Sob esse ponto de vista, Odair José viu sua música O Motel ser proibida só por ter esse nome. A intimidade de um casal, segundo os censores, não era assunto para ser comentado fora das quatro paredes. Para o pesquisador Alexandre Stephanou, em depoimento ao site, o ato de vetar determinada obra acabava se tornando uma questão pessoal: "A censura era uma decisão de foro íntimo, misturada com as necessidades sociais do momento", diz.
Os processos divulgados pelo site mostram, por exemplo, que o mesmo argumento serviu para barrar dos rádios a inofensiva Pare de Tomar a Pílula, também de Odair José. A canção brega, que se tornou um clássico do radinho de pilha, é colocada ao lado de outras com nítida conotação política, como Tanto Mar, de Chico Buarque, que cantava a Revolução dos Cravos em Portugal. Injustificável sob qualquer conceito, mas dotada de uma incoerência que beirava à esquizofrenia, a censura chegou a interrogar até mesmo a dupla queridinha da ditadura, Dom e Ravel - a mesma que ficou marcada pelo single Eu Te Amo, Meu Brasil, que virou uma espécie de hino do regime. Em A Árvore, os censores desconfiaram do trecho "...venha, vamos penetrar". E seguiram à risca a lei da truculência. Apesar de o fim do regime militar se dar em 1985, a censura persistiu até abril de 1987.
O que revelam os documentos :
Música: O Motel Autor: Odair José
O título da música de Odair José foi o bastante, por si só, para que a DCDP vetasse sua veiculação. O veto foi dado com base em um tema considerado inadequado pela censura: a intimidade de um casal.
Música: A Primeira Noite Autor: Odair José
Foi vetada por "tratar de assunto inconveniente". O parecer da DCDP afirma que a música poderia ser "consumida" pelo público jovem e por isso sua liberação seria "contra-indicada". A censura menciona a questão da moral como explicação ao veto. Em entrevista ao site, Odair afirmou que, tempos depois, trocou o título da canção para Noite de Desejos e assim a gravou.
Música: Tanto Mar Autor: Chico Buarque
A letra é vetada por supostamente trazer conteúdo de cunho político. Segundo a censura, o autor refere-se à Revolução Socialista de Portugal. Ao se referir às menções de Chico, a censora chega a classificar a obra como "ridícula".
Música: Os Doze Pares de França Autor: Belchior/ Toquinho
A música foi censurada sob a justificativa de que os autores vangloriam a França, colocando-a como um país melhor para se viver naquela época.
Música: Pequeno Mapa do Tempo Autor: Belchior
A canção faz crítica indireta ao regime. Começa com "eu tenho medo e medo está por fora" e segue com "eu tenho medo em que chegue a hora, em que eu precise entrar no avião", em alusão ao exílio. Os censores afirmam que a música traz mensagens de protesto político.
Música: Deus e o Diabo Autor: Caetano Veloso
A canção é vetada em virtude de seu último verso: "O carnaval é invenção do diabo que Deus abençoou". Os censores justificam que a letra de Caetano "...de modo algum se coaduna com as mais sagradas tradições do povo brasileiro, mas fere e desrespeita os sentimentos religiosos dos quais a Nação ainda se orgulha".
Música: Geléia Geral Autor: Gilberto Gil/ Torquato Neto
Segundo os censores, a música traria mensagem política e contestatória. Foi vetada porque faria um "retrato equivocado" da situação do País naquele momento. A canção fazia parte do lendário álbum Tropicália ou Panis et Circensis, de 1968.
Música: Herói do Medo Autor: Carlos Lyra
A música foi proibida pela censura, que se sentiu incomodada com as palavras "odeio a mãe por ter parido" e "o passatempo estéril dos covardes". Carlos Lyra se recusou a alterar o conteúdo da letra e saiu do País, preferindo o exílio. As canções do LP, liberadas em 1975, quase não tocaram nas rádios e acabaram esquecidas.
Música: Quem Eu Devo é Que Deve Morrer Autor: Luiz Ayrão
A música trata de uma dívida pessoal que só será paga se Deus quiser. Em versos como "quem eu devo é que deve morrer", o sambista é provocativo, o que causa o veto da canção. O técnico de censura argumenta que a letra é um incentivo ao homicídio, apresentando
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