segunda-feira, 7 de abril de 2014

MÚSICA, ÍDOLOS E PODER (DO VINIL AO DOWNLOAD) - PARTE 41


CAPÍTULO 41 

Em 1985, Gil promoveu o espetáculo “Gil , 20 anos-luz”, para celebrar vinte anos de carreira. Os concertos se estenderam por seis dias, durante os quais Gil convidou o crème de la crème da MPB a subir com ele ao palco, que, curiosamente, era o mesmo da Phono 73: o do auditório do Palácio das Convenções do Anhembi, 12 anos depois. Liminha — diretor artístico da Warner e produtor da parte fonográfica do evento — logo de cara se confrontou com a falta de equipamentos de gravação de 16 canais portáteis, suficientemente sofisticados para registrar aquele mega evento. Por outro lado, não havia tempo suficiente para importar legalmente o equipamento. Decidimos que eu aproveitaria uma viagem para Nova York e traria uma mesa digital portátil de 16 canais escolhida por Ricardo Garcia, nosso quarto sócio no estúdio Nas Nuvens. 

Um fiscal da alfândega foi contratado para me esperar na volta e facilitar a saída do equipamento. Ao aterrissar no Galeão, eu estava bastante preocupado, pois a caixa que continha o equipamento era demasiadamente grande. Porém, o tal fiscal me tranquilizou: 

— Senhor Midani, não se preocupe. Está tudo conversado. Não tem problema, está tudo sob controle! 

As bagagens começaram a desfilar diante dos nossos olhos e, quando apontei para a minha bagagem, o fiscal me disse: 

— Espera aí um pouco que eu já volto... 

E, para minha desgraça, o homem nunca mais voltou, me deixando abandonado — minha bagagem impassível, nessa altura já rodando solitariamente nas esteiras. E os fiscais — os não-subornados — olhando, olhando, alternadamente para a bagagem e para mim. 

A cena durou das seis às dez da manhã, hora em que todos os vôos internacionais já haviam chegado. Eu, zanzando na sala de desembarque completamente vazia, esperando um milagre de Deus. Claro que nem Deus apareceu, nem o milagre aconteceu. Eu estava vestido com um jogging roxo, que aumentava o ridículo da minha situação. Enfim, não tinha mais jeito: tinha que enfrentar os fiscais. Deixei a caixa rodando na esteira e fui me aproximando dos homens: 

— Bom dia, senhores — disse com meu ar mais amável e mais sereno. 

— Dia... O senhor vem de onde? — perguntou um deles, com o ar autoritário. 

De NovaYork, senhor. 

E essa caixa, do que se trata? 

— É uma mesa de gravação, senhor. Parece grande por causa da embalagem, mas não é nada grande, é quase um brinquedo que comprei para o meu filho, que é guitarrista. 

O fiscal mandou um ajudante abrir a caixa, olhou e disse: 

— O seu filho deve ser um gênio da guitarra e o senhor deve ser um milionário. Como se chama esse seu filho? 

— Antoine Midani... 

— Pessoal, vocês conhecem um guitarrista que se chama Antônio...Toninho Midani? Não? Nunca ouviram falar?! Pois bem, esse equipamento não pode entrar. Está confiscado! 

Horas de conversas depois, os fiscais me liberaram com o pagamento de uma multa simbólica, após eu ter confessado que o equipamento era para o Gil. Eles gostavam muito do Gil e me encarregaram de mandar um abraço para ele... 

Nunca houve espetáculo igual ao “Gil , 20 anos-luz”. Gil , com sua banda, abria a primeira parte do show tocando os clássicos de seu repertório e, na segunda parte, entravam convidados diferentes a cada dia. Gil os recepcionava com palavras muito emocionantes, a partir de textos do genial Waly Salomão. Marcaram presença Chico Buarque, Paulinho da Viola, Caetano Veloso, Maria Bethânia, Gal Costa, Jorge Ben Jor, os Filhos de Gandhy, Raul Seixas, Lulu Santos, Jorge Mautner, Paralamas do Sucesso, Titãs, Roberto Carlos, Cazuza, Marina Lima, Arrigo Barnabé, entre muitos outros. Na maior parte das apresentações, Gil e seu convidado cantavam também em dueto. Às vezes, aparecia Caetano, de surpresa, convidando-se despudoradamente. Chorou-se muito no palco, sobretudo quando Gil chamou o Chico e disse, numa clara referência à música “Cálice”, que tinham composto em parceria 12 anos antes para a Phono 73: 
— Chico, lembre-se... Neste mesmo palco, anos atrás, “eles” não nos deixaram cantar. Agora vamos cantar! Vamos cantar!!! 

Para o Raul Seixas, aquele foi um dos últimos palcos em que pisou antes de morrer nos braços de Marcelo Nova, quatro anos mais tarde. Raul estava lá na coxia, passando muito mal, deitado no chão. Parecia que não teria a menor chance de se apresentar. Mas quando surgiu de repente no palco, era o Raul de sempre, feroz e irônico roqueiro cantando “Mamãe, eu não queria / Mamãe, eu não queria / Mamãe, eu não queria / Servir o Exército”

Foram celebrados naquela semana os vinte anos de carreira do Gil, com certeza. Mas, ao mesmo tempo, celebrava-se o fim da ditadura militar, celebrava-se a diversidade e a riqueza da MPB, celebrava-se a alma brasileira! 

Ao final daquela semana, para desapontamento do exausto Liminha, que já tinha separado uma música para lançamento imediato, o Gil disse: 

— Vamos guardar as gravações e daqui a uns dez anos a gente escuta e toma a decisão de lançar ou não. 

Uns oito anos depois, o Gil me pediu para dar uma olhada no material. Recebi umas quarenta fitas cassete de noventa minutos cada! 

Gilberto, eu não tenho tempo para revisar tudo isso. E você? 

Também não — respondeu Gil . 

No entanto, eu já estava morando em Nova York, e, devido ao meu trabalho, viajava para muitos cantos do mundo. Nessas longas viagens, em vez de ler, decidi escutar as fitas e fazer uma pré-seleção. Elas viajaram comigo para Melbourne, Tóquio, Londres, Cidade do México, Damasco, Paris e Rio. Seis meses depois, apresentei ao Gil cinco fitas cassete de noventa minutos cada, para a seleção final dele. O único comentário que fiz era que, na seleção final, não podiam faltar as interpretações de cinco ou seis artistas em particular. E que se por um motivo ou outro um deles não fosse incluído, talvez fosse melhor não lançar o “Gil , 20 anosluz”. Fiz a ressalva por considerar que o resultado final era mais uma fantástica reportagem jornalística musical do que uma gravação de qualidade impecável. 

Infelizmente, aconteceu o imprevisível. Ao final daquele ano, Caetano, Gil, Paulinho da Viola, Chico Buarque, Gal e Milton Nascimento foram contratados para um concerto na praia de Copacabana e o show deu origem a uma briga lastimável entre Paulinho, Gil e Caetano. Paulinho estava na minha lista dos artistas indispensáveis ao projeto “Gil , 20 anos-luz”. Àquela altura, o ambiente entre ele e Gil estava de tal maneira desgastado que provavelmente a mulher do Paulinho não daria consentimento para incluir sua participação no disco. É provável que Gil guarde as cinco fitas cassete em alguma gaveta até hoje...

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