Por Bruno Negromonte
A música popular brasileira, como todos devem saber, sempre foi constituída pelos mais variados elementos rítmicos. Isso se deu a partir da absorção e fusão das diversas influências culturais que sempre constituíram a nossa identidade ao longo de nossa história a partir da miscigenação a qual o povo brasileiro foi submetida ao longo de todos esses anos de formação. A junção desses elementos através das mais distintas culturas acabou por enriquecer nossa música de modo sem igual, fazendo-a uma das mais respeitadas ao redor do mundo por peculiaridades que são encontradas apenas a partir dessa coisa tão genuína e brasileira. Ao longo da formação dessa sonoridade tão particularmente nossa é preciso destacar alguns nomes que servem e serviram não apenas para fundamentação dessa matriz sonora, mas para a constituição de certo modo de nossa identidade cultural a partir do século XX. Por mais que tentemos pontuá-la a partir de alguns marcos, há nomes que de tão emblemáticos transpõe-se ao tempo como é o caso de Dorival Caymmi, que apesar de uma obra escassa em quantidade traz nestas canções uma imensurável qualidade que acabou tornando-se imprescindível para a constituição da música brasileira como hoje ela é. Pontuada em três momentos distintos, a obra de Dorival Caymmi traz em cada uma delas uma ótica singela e aparentemente óbvia, mas que no entanto só foi possível ser observada a partir da perspicácia do mestre baiano. Só Caymmi soube dar ritmo as peculiaridades de uma Bahia que hoje não existe mais através de sua gente e seu cotidiano; quando já morador do Rio de Janeiro, na década de 1950, foi capaz de compor diversos samba-canções fazendo, de certo modo, do seu violão o local onde o Rio fez-se mais baiano. Sem contar nas canções praieiras, fase insuperável deste cantor que fez-se Netuno em versos e canções impregnadas de mar.
E eu, de modo particular, tenho uma grande feição pelo mestre baiano, pois desses grandes nomes da música brasileira que hoje encontram-se no panteão da cultura nacional Dorival (juntamente com Jobim) foram os únicos que eu tive a oportunidade de conhecer quando os mesmos ainda encontravam-se vivos. O contato com a obra do Tom foi em uma dimensão menor, no entanto com os versos e melodias de Caymmi não... da grande festa em forma de show pela passagem dos 80 anos do mestre em diante fui ao pouco me habituando a ouvir "Oração a mãe menininha", "A vizinha do lado", as canções praieiras e tantas outras que fazem parte desse universo tão particular do mestre baiano. Em seguida tive a oportunidade de estar presente em um dos shows em comemoração aos 90 anos de Caymmi. Era uma grande celebração onde os três talentosíssimos filhos curvavam-se diante da obra do pai.
A obra de Caymmi nos encanta tal qual como a lenda do canto da sereia. A batida do violão, o modo simples de dizer tudo e tantas outras peculiaridades condicionam-nos de modo que torna-se impossível não admirá-lo e venerá-lo. Essa afirmação pode ser atestada a partir da opinião de alguns dos grandes nomes de nossa música a partir da segunda metade do século XX como Chico Buarque, Caetano Veloso entre tantos. João Gilberto tem uma sucinta, porém irretocável definição para o mestre baiano: "Caymmi é o verdadeiro gênio da raça". Se vivo estivesse (Caymmi faleceu em 2008, aos 94 anos de idade) este mês esse ícone da música completa um século de existência. Mas não importa a sua presença física, pois sua obra de tão imensurável que tornou-se hoje faz-se onipresente tal qual Gil escreveu para homenagear seu grande ídolo na década de 1990 a partir dos versos de Buda Nagô: "Dorival é terra... Dorival é mar... Dorival tá no céu... Dorival tá no chão"
Caymmi é isso. Simplicidade e sofisticação, tradição e modernidade, vanguardismo e saudades a partir da sonoridade de um violão que, segundo Paulo César Pinheiro, é composto por cordas de sargaço e pedaços de uma velha embarcação capaz de navegar as águas da canção de modo ímpar. Talvez por ter sido coroado por Yemanjá para tornar-se cavaleiro do oceano com a sua voz de arrebatação só ele tenha tido a capacidade de desvendar os mais recônditos segredos de todas as marés; talvez isso tenha se dado devido a sua condição de Deus do mar reencarnado, de canoeiro de São Pedro como tão bem definiu Pinheiro. Como criador abençoado foi capaz de criar personagens que hoje permeiam o imaginário popular como poucos. Quem não idealizou João Valentão, Dora, Marina, Rosa Morena, Doralice e tantas outras figuras do seu repertório. Parabéns Caymmi, obrigado não apenas pelo legado deixado, mas também pela prole de talentosíssimos cantores, compositores e músicos tais quais Dori, Danilo e Nana Caymmi que você nos presenteou. E obrigado sobretudo por ter deixado, de modo indelével, a sua assinatura dentre as principais influências que me levaram a essa arrebatadora paixão pela música brasileira. Que o seu nome ecoe ainda por muitos e muitos séculos e sempre sendo lembrado como um dos maiores.
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