sexta-feira, 24 de março de 2017

ARTISTAS LGBT CONQUISTAM ESPAÇOS E TRAZEM DEBATE SOBRE GÊNERO PARA A LINHA DE FRENTE DA PRODUÇÃO CULTURAL

Presente na música, no teatro e em outras linguagens, a diversidade chegou também ao horário nobre da televisão

Por Gustavo Foster



Cantora Valéria Houston, a primeira mulher trans a ganhar o Troféu Mulher Cidadã em Porto Alegre, em 2016Foto: Omar Freitas / Agencia RBS 


Enquanto nos Estados Unidos o presidente Donald Trump ceifa, uma a uma, medidas de defesa à comunidade LGBT implementadas por Barack Obama (sua última foi revogar a liberdade de crianças trans escolherem o banheiro que querem utilizar), no Brasil a questão de gênero é trazida à tona por artistas transexuais, transgêneros, travestis, drags, gays, lésbicas e queers. É uma cena que ganha cada vez mais notoriedade e exposição graças à temática que discute – e, claro, à qualidade dos trabalhos que esses artistas produzem. Do hip hop à novela das 21h, passando por teatro, artes plásticas, literatura, performances e diferentes ritmos musicais, surgem nomes que simbolizam a representatividade social e sua afirmação política.

— Está acontecendo uma revolução, e nós estamos na linha de frente! – decreta a rapper Gloria Groove, uma das maiores expoentes da cena. — Temos formas diferentes, mas fundamento parecido, de trazer o poder que vem de dentro, buscar o melhor das pessoas e sempre incentivar o amor e o respeito pelo que se é.

Dona do hit Império, que canta a ascensão da rapper com os versos "Olha só como o jogo virou / Do nada, cê liga a TV, nós tá na Globo/ E abre espaço pras donas sem torcer o nariz / Que elas já chegam no estilo imperatriz", Gloria é um homem cis homossexual que atua como drag queen. E tem o estilo de imperatriz: começa o videoclipe de cabelão loiro ofuscante, casaco de pele com detalhes em prata, piercing dourado no nariz e maquiagem de diva pop. Nesta quinta-feira, Gloria estará na Globo, integrando o grupo de convidados do programa Amor & Sexo, que vai discutir exatamente a questão de gênero. A escalação se completa com Liniker, As Bahias e a Cozinha Mineira, MC Linn da Quebrada, André Fischer e Cibelle, músicos que fazem parte da chamada MPBTrans, termo cunhado pelo deputado Jean Wyllys (ainda que nem todos os artistas envolvidos sejam, de fato, trans). 


Bons exemplos podem servir de inspiração

A Força do Querer, próxima novela do horário nobre da Globo, também deve turbinar a discussão a partir de abril, falando sobre a situação de transexuais e travestis no Brasil, com direito à atuação de Silvero Pereira, um dos artistas brasileiros que tratam do tema com mais afinco – é ator e criador do grupo de teatro As Travestidas e protagonista da peça BR-Trans – espetáculo dirigido por Jezebel De Carli fruto de uma pesquisa de campo envolvendo travestis, transexuais e transformistas do Rio Grande do Sul e do Ceará.

Pode parecer pouca coisa para quem não vive essa realidade na pele, mas o fato de o assunto chegar à TV aberta é considerado um avanço importantíssimo para a grande maioria dos envolvidos — a televisão está presente em 97,1% das casas do Brasil. Artistas LGBT destacam a importância de expor a questão para que pessoas semelhantes não se sintam, por assim dizer, "erradas".

— Quando eu era criança, não tinha referências. Era encorajada a não ser assim. Tive que criar minha própria identidade a partir de nada — diz a cantora Valéria Houston, a primeira mulher trans a ganhar o Troféu Mulher Cidadã em Porto Alegre, em 2016. — Existe uma gama de pessoas talentosas que precisam de maior visibilidade. Cada bom exemplo que aparece é algo maravilhoso, porque ainda somos relacionados à marginalidade.

Até por isso as palavras usadas são muito caras a quem vive diariamente a militância: ainda que estejam juntos na luta por igualdade e respeito, transexuais e travestis, por exemplo, têm suas batalhas específicas. Por isso, "opção" é uma palavra considerada fora de contexto, bem como generalizações nas terminologias.

— Ser drag king não foi uma opção; foi uma necessidade. Precisava expressar minhas inquietações e encontrei na arte drag uma forma linda de fazer isso — destaca Júlia Franz, que trabalha como drag king sob o nome de León Rojas. — Pude questionar os padrões de masculinidade, me assumir como mulher que foge ao padrão, permitir que meu corpo se transformasse sem nenhuma regra social que o influenciasse.

RuPaul's Drag Race, reality show de drag queens que estreou no final da década passada nos Estados Unidos, ancorado por RuPaul, um homem negro e drag, foi um divisor de águas para Júlia e para grande parte dos artistas da cena recente. A popularidade do programa talvez seja responsável por um dos maiores fenômenos de visibilidade LGBT dos últimos anos. Uma década depois, a situação parece ter mudado.

— Sou da geração em que o grande desafio era sair do armário — lembra Carlos Magno, presidente da Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais, divertindo-se com (e comemorando) a realidade atual. — Hoje, você vê o mundo hétero incorporando comportamentos, linguagem e gírias. Estão dando mais pinta do que nós!

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