Por Leonardo Davino*
"As cigarras são guitarras trágicas. plugam-se/se/se/se nas árvores em dós sustenidos. kipling recitam a plenos pulmões. gargarejam vidros moídos. o cristal dos verões", diz a poesia "As cigarras", de Sergio de Castro Pinto (Zoo imaginário).
A mitologia está cheia de seres vocais. Dentre eles, e para aprofundar as questões discutidas aqui, a cigarra e a formiga de Jean La Fontaine se destacam. A fábula é bastante conhecida. Resumidamente, enquanto a formiga passa o verão trabalhando e preparando-se para o tempo de estio gelado do inverno, a cigarra gargareja a plenos pulmões (um canto que é interpretado pela racional formiga como zombaria) e aproveita a luz e o calor do sol.
O fato é que vira-e-mexe as fabulosas personagens reaparecem, seja em peças artísticas, seja como mote filosófico, para nos lembrar certa dicotomia existencial: enquanto uma é "amor da cabeça aos pés", a outra é pura razão. Consequentemente, esta é melhor aceita, em um mundo onde o logos foi emudecido, do que aquela.
No poema de Alexandre O'Neill, por exemplo, diante da "minuciosa formiga", a cigarra canta: "Assim devera eu ser / e não esta cigarra / que se põe a cantar / e me deita a perder". Importa lembrar que, musicado por Alain Oulman e gravado por Amália Rodrigues (1969), o poema de O"Neill foi gravado por Adriana Partintim - heterônimo de Adriana Calcanhotto, em 2004: "Formiga bossa nova".
Há ainda que se citar "Esconjuro", canção de Guinga e Aldir Blanc, cujas primeiras estrofes dizem: "A zonza da cigarra no oco do cajueiro, erê / Bota o bemol na clave do verão / Quem diz uma palavra com sentido verdadeiro, erê / Que traga um som paisagem pra canção // Falei alarido palavra de vidro / Quebrada na voz / Palavra raiada mais estilhaçada / Que o caso entre nós".
A lógica dominante - o logos desvocalizado e emudecido a serviço do gesto capital de expulsar o cantor da República platônica - leva-nos a concluir que, caso trabalhasse, a cigarra não morreria. Caso não cantasse sua própria tragédia, ela (muda e obediente) viveria mais e feliz, porque segura, como a formiga. Tal ideologia, em um mundo plenamente mapeado, vigiado, assegurado parece fazer sentido. Mas a vida será mesmo assim: tão preto e branco?
Daí a importância desse poema de Sergio de Castro Pinto: focando na cigarra, apagando a sua antagonista, o poema opera a valorização da vocalidade - da percepção da vida pelos pulmões, para além do cérebro. Dito de outro modo: o poema "As cigarras" sugere uma (re)vocalização do logos.
Daí também a importância, dentro de uma economia estética das vozes, a canção "Cigarra", de Milton Nascimento e Ronaldo Bastos. Aqui se celebra a amizade entre o cantor e o trabalhador: "Porque a formiga é / A melhor amiga da cigarra / Raízes da mesma fábula", diz o sujeito.
Os versos da canção jogam com uma delicada permuta de vozes - ora tem-se a impressão de que quem fala é a formiga, ora é a cigarra - a fim de figurativizar a tal amizade. Amigas e não-antagonistas das mesmas luta e alegria que é viver. Afinal, o que seria da formiga trabalhadora sem seu duplo: a cigarra que lhe canta a vida: "enche de som o ar"? "Porque ainda é inverno / Em nosso coração /Essa canção é para cantar", diz a formiga revelando a importância do outro e tecendo uma metacanção.
Gravada algumas vezes pela cantora Simone, a canção ganha tons novos quando gravada por Milton Nascimento (a formiga: aquele que fez a canção) e Simone (a cigarra: aquela que canta - e também faz - a canção), no disco Simone ao vivo (2005).
Porque ela pediu a ele uma canção para cantar (a primeira gravação é de 1978), a formiga fez uma canção que servisse à natureza da cigarra: arrebentar-se de tanta luz - e aqui entra em ação um providencial eco dos vocalizes zi, zi, zi, zi (ou si, si, si, simone) fragmentando, duplicando e expandindo a festa sonora: uma personagem na outra - enchendo de som o ar.
E eis que surge o punctum da canção: a formiga precisa do canto da cigarra. Ele lhe anuncia a vida, serve de trilha sonora à uma existência destinada ao trabalho. Ouvinte e cantora se confraternizam na aceitação de suas funções complementares.
E como a voz mediatizada - mesmo plugada, manipulada, modificada, alterada pelos instrumentos e suportes técnicos - indicia (revela) a voz que sai de uma garganta, eis Simone e Milton celebrando a amizade através de uma canção amiga. Ou seja, a voz (metafísica) do sujeito da canção só existe porque há a voz de dois indivíduos de carne e osso dando-lhe vida. E "Essa canção é para cantar / Como a cigarra acende o verão / E ilumina o ar".
***
Cigarra
(Milton Nascimento / Ronaldo Bastos)
Porque você pediu
Uma canção para cantar
Como a cigarra
Arrebenta de tanta luz
E enche de som o ar
Porque a formiga é
A melhor amiga da cigarra
Raízes da mesma fábula
Que ela arranha, tece
E espalha no ar
Porque ainda é inverno
Em nosso coração
Essa canção é para cantar
Como a cigarra acende o verão
E ilumina o ar
Zi zi zi zi zi zi
* Pesquisador de canção, ensaísta, especialista e mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e doutor em Literatura Comparada, Leonardo também é autor do livro "Canção: a musa híbrida de Caetano Veloso" e está presente nos livros "Caetano e a filosofia", assim como também na coletânea "Muitos: outras leituras de Caetano Veloso". Além desses atributos é titular dos blogs "Lendo a canção", "Mirar e Ver", "365 Canções".
0 comentários:
Postar um comentário