Por Leonardo Davino*
terça-feira, 5 de maio de 2015
LENDO A CANÇÃO
Em tese, concordamos que cada relação afetiva é única, ímpar e singular. As comparações entre elas são sempre da ordem de nossas inseguranças humanas. Cada relação (cada afeto) é parte do todo - sempre em progresso - que nos figura na existência. É por este viés que podemos entender o adjetivo "pura" no título da canção "Pura semente", de Arlindo Cruz e Acyr Marques.
Sendo diferente e nova, cada relação é pura semente: almejando o florescimento das sensações nos indivíduos envolvidos. Amar, portanto, entre tantas outras murmúrias mais, é zerar, é baixar a guarda, é ceder às vontades do desejo: é desfazer as mágoas e renovar as ilusões.
Na prática, porém, há sempre uma luta inglória entre o lado carente e a vida ordinária. Daí o tom algo ressentido do sujeito da canção "Pura semente": cobrando o tempo perdido, mesmo sendo "os melhores momentos" que movem o pensamento e o canto.
Antes "uma só canção" em uníssono, hoje vozes separadas. Gesto brilhantemente apresentado pelo diálogo entre Teresa Cristina e Seu Jorge (Melhor assim, 2010). A entoação individual de cada estrofe - com seus argumentos próprios -, feita por cada cantor, e a sobreposição final reitera o desejo de permanência do afeto para além do fim da relação.
Os sujeitos sabem que só restou a canção. Nunca mais ouvida, ela agora é cantada pelas personagens. Afinal, o tempo não pára enquanto a vida dói. Se a solidão é castigo e as personagens fizeram por merece-la, como o sujeito sugere autopunindo-se, cabe recordar na voz, no canto - naquilo que não se extingue quando o amor resolve parar de cantar - o começo: sempre puro e ingênuo.
Antes, parceiras na vida, hoje as personagens se confraternizam - numa roda de samba, numa mesa de bar - recordando e celebrando o (merecido) sofrimento que resultou do assassinato do amor. Certamente, se cantada por uma única voz, "Pura semente" proporcionaria outras inferências. Mas é daí que surge a beleza da interpretação da parceria entre Teresa Cristina e Seu Jorge: findadas as palavras, restam vocalizações, lamentos e ais de ambos: lúcidos do crime e do castigo.
Cantar a canção do fim, evocando a canção do começo, ou seja, desdobrando um canto dentro de outro canto, faz de "Pura semente" um canto singular, mas impuro, visto que contaminado por algo que poderia ter sido e não foi. Resta às personagens reouvir intimamente e cantar o cântico dos cânticos contemporâneo: triste e alegre - mais feliz.
***
Pura semente
(Arlindo Cruz / Acyr Marques)
Quando começou
Era diferente
Tinha o nosso amor
A pura semente
Que desfaz as mágoas
E traz a ilusão
Era o nosso amor
Numa só canção
Tanto tempo fez,
Mudar a nossa vida
E a nossa canção
Não foi mais ouvida
Ficou reduzida
Hoje é só refrão
Do nosso amor
Só recordação
E foram os melhores momentos
Que me fizeram pensar
Por que sem tentarmos de tudo
Deixamos o amor acabar
Se a solidão é castigo
Fizemos por merecer
Quem mata o amor na semente
Merece sofrer
* Pesquisador de canção, ensaísta, especialista e mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e doutor em Literatura Comparada, Leonardo também é autor do livro "Canção: a musa híbrida de Caetano Veloso" e está presente nos livros "Caetano e a filosofia", assim como também na coletânea "Muitos: outras leituras de Caetano Veloso". Além desses atributos é titular dos blogs "Lendo a canção", "Mirar e Ver", "365 Canções".
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