Por Leonardo Davino*
terça-feira, 21 de julho de 2020
LENDO A CANÇÃO
É doce morrer no mar
A versão de "É doce morrer no mar", de Dorival Caymmi e Jorge Amado, feita por Cesária Évora e Marisa Monte desenha a dor conformada da mulher que perde seu homem para os encantos das sereias. As vozes das duas cantoras se revezam para figurativizar os dois desejos (o bem de terra e o bem do mar) do pescador.
Guardada no disco Café Atlântico (1999), esta canção narra a tragédia diária da mulher que se consola diante do poder de sua concorrente desleal porque senhora das águas e da voz encantadora: Iemanjá.
Cesária e Marisa emprestam à canção o lamento contido de um sujeito que sabe o quanto deve ter sido doce para o amado morrer nos braços de Oguntê, Marabô, Caiala, Sobá, Oloxum, Ynaê, Janaína e Iemanjá: rainhas do mar.
Se na canção "O bem do mar", Caymmi canta que "o pescador tem dois amor, um bem na terra, um bem no mar" e que "o bem de terra é aquela que fica na beira da praia quando a gente sai, o bem de terra é aquela que chora mas faz que não chora quando a gente sai", em "É doce morrer no mar", podemos ouvir o pranto deste bem de terra - que chora sem demonstrar, dizer - diante da não-volta do outro.
Ele se entregou ao bem do mar, eternamente: sucumbio ao poder encantatório da sereia e morreu (fisicamente, para o "bem de terra") julgando viver. A resignação dolorida diante da escolha (ou destino?) do marinheiro é sentida no dueto das cantoras. Pode ser visto, no fundo das notas, a mulher que chora ao se comparar à imensidão do mar que agora abriga seu amor. Ela canta a certeza da perda.
Aqui, sons de cavaquinho, bandolim e surdo se misturam ao violão praieiro de Caymmi para consolar esta mulher que sabe que o "marinheiro bonito" está agora onde sempre quis estar: na cama de noivo, com o escolhido pela sereia do mar.
A ela, sereia da terra, cabe cantar o luto, guardar e sustentar (manter vivo) o amor na canção, na inflexão genuflexa da voz que não é nada diante da rainha do mar, mas que é tudo que lhe restou: o canto inútil, e por isso consolador, do amor morto; da tristeza de um saveiro que voltou sozinho.
***
É doce morrer no mar
(Dorival Caymmi / Jorge Amado)
É doce morrer no mar
Nas ondas verdes do mar
É doce morrer no mar
Nas ondas verdes do mar
A noite que ele não veio foi
Foi de tristeza pra mim
Saveiro voltou sozinho
Triste noite foi pra mim
É doce morrer no mar
Nas ondas verdes do mar
É doce morrer no mar
Nas ondas verdes do mar
Saveiro partiu de noite foi
Madrugada não voltou
O marinheiro bonito
Sereia do mar levou
É doce morrer no mar
Nas ondas verdes do mar
É doce morrer no mar
Nas ondas verdes do mar
Nas ondas verdes do mar meu bem
Ele se foi afogar
Fez sua cama de noivo
No colo de Iemanjá
É doce morrer no mar
Nas ondas verdes do mar
É doce morrer no mar
Nas ondas verdes do mar
* Pesquisador de canção, ensaísta, especialista e mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e doutor em Literatura Comparada, Leonardo também é autor do livro "Canção: a musa híbrida de Caetano Veloso" e está presente nos livros "Caetano e a filosofia", assim como também na coletânea "Muitos: outras leituras de Caetano Veloso". Além desses atributos é titular dos blogs "Lendo a canção", "Mirar e Ver", "365 Canções".
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