sábado, 11 de maio de 2019

VERDADE TROPICAL (CAETANO VELOSO)*

Verdade Tropical - Caetano Veloso


2002

Dedé e eu nos mudamos para um apartamento que Guilherme encontrara para alugar, na esquina da Ipiranga com a São Luís, no centro de São Paulo. Guilherme, que tinha morado em Roma, em Paris e em alguma cidade da Alemanha, tinha uma visão muito livre do que fosse morar bem. Talvez já a essa altura a ideia de morar no centro da cidade tivesse começado a se tornar o que é hoje: algo fora de moda e pouco seguro. Mas Guilherme via as vantagens de conforto e preço e ignorava os preconceitos. Não estou sequer seguro de que os
houvesse em relação ao endereço escolhido, tal a minha alienação dessas coisas práticas. Dedé foi ver com Guilherme, aprovou, e eu fui como que levado. O prédio, no qual ele também achara um apartamento para si mesmo, era um desses primeiros arranha-céus residenciais de São Paulo, de paredes sólidas, entrada com mármore nas paredes e no chão, e elevadores com largos frisos dourados. O aspecto era antes antiquado e digno do que ostentoso. E os apartamentos eram muito claros e amplos. Guilherme ocupou um no décimo
oitavo andar, e nós, um no vigésimo. Na esquina em frente via-se o Edifício Itália, um dos mais altos da cidade, e era gostoso viver no coração de uma cidade grande, entre grandes edifícios. Sobretudo porque o nosso apartamento tinha uma varanda aberta, com uma balaustrada robusta, onde eu podia me sentar para ver o céu, o tráfego lá embaixo, sentir o vento e encher Dedé de medo de que eu caísse.
O primeiro mês se passou sem que nós nos decidíssemos por uma mobília para as salas de visita e de jantar. Tínhamos comprado cama e móveis de quarto, geladeira e fogão - e, naturalmente, um "som", que ficava num quarto que ficou para sempre conhecido como o "quarto do som". O resto eram imensos espaços vazios onde era maravilhoso estar. O chão refletia a luz das janelas e a gente se sentava nele para conversar, cantar, ler. Eu já estava tão habituado a viver num apartamento sem móveis - e achava que isso resolvia tão bem a questão de estilo para decoração - que protestei intimamente quando alguém apareceu com umas sugestões e a arrumação das salas se iniciou.
Foi um cara chamado Piero. Era um italiano que morava em São Paulo, um moço inteligente, creio que era artista plástico. Ele começou dizendo que conhecia o dono de uma fábrica de acrílico e que poderia desenhar móveis originais para nós e tê-los fabricados e montados nessa fábrica em breve tempo e por relativamente pouco dinheiro. Eu e Dedé achamos a ideia de móveis de acrílico gozada, mas só aos poucos nos deixamos convencer. O resultado foi que Piero encheu nossas salas de móveis transparentes de cores variadas (mas todas "ácidas"). Ele comprou também duas imensas poltronas infláveis de plástico, também transparentes, e, no amplo pórtico que separava a sala de visitas da de jantar, colocou uma espécie de manequim de fibra de vidro, uma figura de mulher nua e careca, em tamanho natural. Não satisfeito, ele pendurou por sobre essa estátua uma porção de lâmpadas coloridas cujos fios de que pendiam em alturas diversas estavam ligados à vitrola lá no outro quarto, de modo que os sons graves acendiam as lâmpadas azuis os médios, as verdes e as amarelas, e os agudos, as vermelhas. Na parte de cima do pórtico, ele prendeu dois grandes ganchos de açougue. A mesa em que comíamos - e essa tinha sido a única ideia partida diretamente de mim e de Dedé - era uma mesa de pingue-pongue, sempre com a rede armada. Nós só pedimos - timidamente - que Piero parasse quando ele começou a pintar a vidraça da janela que ficava em frente a essa mesa, transformando-a numa espécie de vitral hippie demasiadamente enjoativo. Tudo isso descrito assim pode dar a impressão de que o apartamento estava se transformando numa monstruosidade cujo ridículo só é divertido hoje, visto de longe. Na verdade, nós não impedíamos Piero de continuar porque estávamos gostando do que víamos. E mesmo hoje, na lembrança, eu lhe entendo o encanto. 
Antes de termos qualquer móvel em casa, a única ideia de decoração que me havia ocorrido, além da mesa de pingue-pongue, foi a de cobrir uma das paredes do apartamento com um vistoso anúncio de rua, desses que aqui no Brasil chamamos "outdoors", representando uma moça bonita jogando tênis contra um imenso fundo de céu azul. Era uma propaganda de açúcar - o texto dizia simplesmente (mas algo enigmaticamente) "Açúcar sacode" - e era uma visão da própria "saúde" de que tanto falávamos. Por causa das conversas com Rogério
e Agrippino, dos textos de Morin, e dos desenvolvimentos da sensibilidade que dispararam com a empreitada tropicalista, eu vinha, já havia algum tempo, observando a beleza dos anúncios, das revistas vulgares, dos produtos de consumo, e, apesar de ser um eterno e arraigado anticonsumista (detesto comprar), passei a entrar em supermercados só para olhar as latas e as caixas empilhadas, desbravar os corredores multicoloridos com seu clima de ficção científica e decoratividade mística. A "saúde" da vida anônima e comum, a "saúde" de ver a beleza total e única nas superfícies, a "saúde" do mercado, tudo isso eu via nas veredas dos supermercados - e tudo isso estava encarnado na beleza sexual da moça que jogava tênis no cartaz. O jogo de tênis, por outro lado, também lembrava Godard - para mim um verdadeiro poeta dessas coisas todas, como Agrippino, em sua radicalidade antilírica, não parecia poder ser - por causa das imagens iniciais de Pierrot le Fou, com as duas moças que jogam tênis e o texto sobre a luz em Velásquez. Nunca pude trazer o outdoor para dentro de casa, mas a mesa de pingue-pongue e a aceitação das invenções de Piero já denotavam que eu queria que minha primeira moradia paga com meu próprio dinheiro fosse ela mesma uma profissão de fé tropicalista. E não estava, portanto, preocupado em ser sóbrio ou discreto ao decorá-la. Mas uma coisa é não temer ser gritante, outra é ter que viver num lugar feio. O que Piero estava fazendo, embora não fosse a realização de um plano nosso nem a expressão acabada de nosso gosto, era divertido, diferente e delicado.
Misteriosamente tornava-se nosso, de um modo que escapava a nosso controle. A luz que vinha das janelas incidia nas poltronas de acrílico cujas arestas se tornavam cintilantes. As cores seriam estridentes se o material não fosse translúcido. Tal como era, fazia-as resultarem calmantes para os olhos e o espírito.
Os ganchos de prender carne, visíveis desde a porta de entrada, davam uma nota agressiva (hoje nos pareceria uma referência ao punk), cortando a doçura que a transparência emprestava às cores ácidas. A boneca de fibra de vidro, que era de cor neutra, ou incolor, e era translúcida sem ser transparente, ficava em boa proporção com as salas grandes, dando a tudo um ar espaçoso, como se se tratasse de uma exposição de esculturas planejada com humor mas sem desconforto visual.
E quanto às lâmpadas que meio a circundavam, elas estavam conectadas com o sistema de som, mas isso em nada se parecia com esses painéis ingênuos encontradiços em boates de dança a go-go (a palavra portuguesa discoteca era usada no seu significado próprio de coleção de discos ou loja de discos, a forma francesa discothèque, que os americanos elegeriam na década seguinte para designar clubes noturnos de dança, ainda não tinha entrado em voga). Eram lâmpadas comuns, do tamanho das que se punham no teto de uma sala, penduradas em seus próprios fios a partir do pórtico, pendendo em alturas diferentes, como que ao acaso. Como um cacho de frutas desfalcado, de cores variadas, elas se derramavam por sobre a cabeça e os ombros do manequim. Quando apagadas (e era como elas ficavam quase todo o tempo, mesmo à noite), pareciam um elemento a mais a compor a escultura de fibra, tinham mesmo a aparência moderna e despojada de uma composição artística que exibisse propositadamente suas instalações elétricas. E os usos que lhes descobrimos para a música estavam longe de ser os da primária pulsação rítmica de cores seguindo baixos e bumbos, rotineiros nas boates. O mais impressionante deles - e o que mais elucida o gosto com que curtíamos esse artefato - tendo sido o de observar o que produzia no cacho de lâmpadas a voz de Mahalia Jackson cantando "Summertime" ou "Sometimes I feel like a motherless child" a capela. 
Às vezes, a gente apagava todas as luzes da casa e ficava apenas com a voz de Mahalia, cujo timbre fazia as luminosidades amarelas e vermelhas sustentarem-se por algum tempo, entremeadas de relâmpagos azuis, para darem lugar a azuis e verdes que, crescendo e caindo em intensidade, bruxuleavam como fogosfátuos, até sumirem, junto com as últimas notas e palavras, no silêncio do escuro total.
O ano de 1968, em muitos pontos do mundo lembrado como violentamente significativo, teve, para nosso grupo, tudo o que caracterizou o folclore histórico criado a seu respeito. Na verdade, toda esta seção do livro só terminará quando ele terminar. Mas um episódio algo frívolo revela muito da autoconsciência exibida pelas pessoas atuantes no período. A Rhodia, fabricante de tecidos, nos convidou para participar de um show que, diziam, a companhia produzia anualmente com artistas importantes, como atração na grande feira nacional da indústria têxtil em São Paulo, a Fenit. O show se chamaria Momento 68. Havia alguma promessa de participação da empresa no patrocínio de um possível programa tropicalista na TV. Por outro lado, eles nos acenavam com um texto escrito por Millôr Fernandes, com um diretor de teatro respeitado e com dois grandes atores. Ficamos sabendo que o show incluiria, além de um balé dirigido por Lennie Dale, um desfile de moda. Quando se iniciaram os ensaios, Gil e eu vimos que o negócio era estranho. Não apenas os nossos números eram entreatos dos desfiles, como os textos eram de uma assintonia atroz com nosso estilo e com tudo o que nos interessava. Os figurinos que tínhamos que usar eram horrivelmente estilizados (sem que faltassem os ternos brancos "tropicalistas") e as piadas ditas pelos dois atores eram caretas. No entanto, tínhamos assinado os contratos e, embora achássemos tudo aquilo ridículo, contávamos com a camaradagem dos bailarinos, do coreógrafo, dos atores e, apesar das limitações impostas pelo produtor, das modelos. O diretor não tinha tempo para conversas, mas era gentil e flexível. Achávamos jeito de ir aguentando. Mas eu me assombrava com o absurdo da situação: os temas da "contracultura) eram abordados em tom de piada de clube social, e nós dois estávamos ali, sobre aquele palco. Era a visão jornalística superficial das marcas do período - um aspecto grotesco do que se poderia chamar de um "narcisismo de época". Não doía demais, apenas parecia irreal. Mas foi esse show que nos levou pela primeira vez para fora do Brasil. Depois da feira em São Paulo, o Momento 68 se apresentaria no Rio, em Lisboa, em Buenos Aires e em Montevidéu. Havia um tempo entre Portugal e a Argentina, e eu combinei com Dedé de nos encontrarmos em Paris. E assim fizemos. Dali fomos a Londres. Gil foi de Lisboa para Madri com parte do corpo de baile. Foi comovente conhecer Lisboa, agradável conhecer Paris e intrigante conhecer Londres. Na volta ao Brasil, não lembro mais o que foi que o produtor do show disse ou fez que me deixou à vontade para sair do projeto xingando-o. Gil me acompanhou na decisão. Não fornos a Buenos Aires nem a Montevidéu. Fiquei aliviado e rindo pelos cantos. Eles não nos processaram por termos deixado o show a meio caminho: acho que meu pretexto para sair tinha algo a ver com a não-confirmação dos compromissos assumidos por eles de patrocinar nosso programa de TV. Como esse show pretendia ser uma síntese do que vinha sendo o ano de 1968, e como ele tentava realizar essa pretensão de modo alheio e falso, a lembrança desse evento é débil em minha mente, mas parece um outro ano de 68, virtual e paralelo, fantasmagórico, uma realidade esquálida mas coerentemente fechada em si mesma.





* A presente obra é disponibilizada por nossa equipe, com o objetivo de oferecer conteúdo para uso parcial em pesquisas e estudos acadêmicos, bem como o simples teste da qualidade da obra, com o fim exclusivo de compra futura. É expressamente proibida e totalmente repudiável a venda, aluguel, ou quaisquer uso comercial do presente conteúdo.

0 comentários:

LinkWithin