sĂĄbado, 4 de maio de 2019

VERDADE TROPICAL (CAETANO VELOSO)*

Verdade Tropical - Caetano Veloso


Glauber sentiu o constrangimento e riu. Tudo se diluiu num restinho de noite de que nada lembro. Pois bem, anos depois, ouvindo, em Londres, a fita de um disco que JoĂŁo Gilberto tinha feito no MĂŠxico, deparo-me com "O astronauta". NĂŁo digo que JoĂŁo tivesse transformado a canção numa obra-prima: ele tinha revelado que ela o era. O meu mestre supremo me dava assim, nesse lance, alĂŠm de uma linda canção para ouvir e reouvir atravĂŠs dos anos, uma lição sobre os limites do tropicalismo, sobre histĂłria, sobre mĂşsica e sobre a forma sutil como a vida mostra sua riqueza. Glauber e JoĂŁo, dĂ­spares, separados no tempo, enfrentam-se, para mim, nesse episĂłdio, dos dois lados de uma canção misteriosa.
Mas os dois, quando se encontraram, se comunicaram melhor do que eu conseguia me comunicar com Glauber. Pelo menos foi o que este me disse, tambĂŠm em Londres, anos depois. Todos os meus encontros com Glauber foram ilustrativos para mim, e tambĂŠm divertidos. Mas ele me dizia sentir-se pouco a vontade em minha presença. Sem dĂşvida havia, por parte dele, o desejo de orientar paternalmente - e de respeitar. Mas nĂŁo ao ponto de confirmar a critica jesuĂ­tica - que ele adivinhava em mim - aos seus aspectos de mistificador e charlatĂŁo. Eu, por meu turno, via-o, desde a Bahia, onde ele era um mito para
todos nĂłs, como uma força liberadora e estimulante, mas nĂŁo podia deixar de esfriar diante de certas falsidades, as quais, no entanto, eu sabia serem necessĂĄrias a composição de sua personalidade deflagradora. O reconhecimento, por parte dele, dessa espĂŠcie de perdĂŁo sĂł fazia nosso diĂĄlogo mais tenso. Uma dificuldade que entre mim e JoĂŁo nĂŁo existe. Embora minha reverĂŞncia por ele seja muito maior do que a que nutria por Glauber. NĂŁo posso dizer que JoĂŁo gostou de "TropicĂĄlia" ou de qualquer outra canção do meu disco. Mas nĂŁo tardei a saber que ele, que entĂŁo morava em Nova Iorque, aprovava vivamente o que eu vinha fazendo, e tinha do novo movimento uma visĂŁo profunda e isenta de preconceitos.
A idĂŠia de que se tratava de um movimento ganhou corpo, e a imprensa, naturalmente, necessitava de um rĂłtulo. O poder de pregnância da palavra tropicĂĄlia colocou-a nas manchetes e nas conversas. O inevitĂĄvel ismo se lhe ajuntou quase imediatamente. Nelson Motta, um letrista carioca da nossa geração, amigo querido nosso e de toda a turma da segunda geração da bossa nova no Rio, iniciando-se entĂŁo no jornalismo (e na TV), escreveu um texto em que batizava o movimento com esse nome de "tropicalismo" e, extraindo da prĂłpria palavra um repertĂłrio de atitudes e um guarda-roupa folclĂłrico - calcado no estereĂłtipo do homem brasileiro de antigamente, sempre de terno branco e chapĂŠu de palhinha, tomando xaropes de nomes esquisitos contra a tosse, languescendo sob uma palmeira -, inaugurou ingĂŞnua e despretensiosamente o que viria a ser uma longa sĂŠrie de interpretaçþes das caracterĂ­sticas do movimento.
Era na verdade uma declaração de adesĂŁo por parte de Nelsinho a uma onda a que se opunham, entre indignados e desconfiados, todos os seus (e nossos) colegas do Rio. Eu, que me resignara a "TropicĂĄlia" por falta de opçþes que surgissem a tempo - e que julgara que a canção afinal nĂŁo seria tĂŁo afetada pelo tĂ­tulo -, engolia mal esse xarope tropicalista. As imagens passadistas e folclorizantes me desgostavam - o "astronauta" do titulo de Marcos Vasconcellos estaria mais prĂłximo da minha idĂŠia de roupa ligada Ă  nossa onda do que os ternos brancos, embora esses fossem bonitos e pudessem, mais tarde, ser incluĂ­dos -, mas sobretudo eu achava que, ao contrĂĄrio de tropicĂĄlia, uma palavra nova, tropicalismo, me soava conhecida e gasta, jĂĄ a tinha ouvido significando algo diferente, talvez ligado ao sociĂłlogo pernambucano Gilberto Frey re (o que mais tarde se comprovou), de todo modo algo que parecia excluir alguns dos elementos que mais nos interessava ressaltar, sobretudo aqueles internacionalizantes, antinacionalistas, de identificação necessĂĄria com toda a cultura urbana do Ocidente. Era um consolo que os populares - e os jornais mais vagabundos - nos chamassem de "hippies", ou de "pop", ou de novos "roqueiros; e que alguns intelectuais mais refinados nos identificassem com a vanguarda, de John Cage a Godard. Mas quem fez o comentĂĄrio definitivo sobre o rotulo de tropicalistas que acabĂĄvamos de ganhar foi dr. JosĂŠ Gil Moreira, pai de Gilberto Gil: "Tropicalista sou eu!", dizia ele rindo, "que exerço a profissĂŁo de especialista em doenças tropicais hĂĄ dĂŠcadas". De fato, o verbete Tropicalista do DicionĂĄrio AurĂŠlio da LĂ­ngua Portuguesa registra: "1. Tratadista de assuntos referentes Ă s regiĂľes tropicais. 2. MĂŠdico especialista em doenças dessas regiĂľes". "Alegria, alegria" era sucesso popular. Por causa de minhas declaraçþes a seu favor, Roberto Carlos me convidou para cantar no jovem Guarda. Fiz apariçþes espalhafatosas no programa do Chacrinha cantando "TropicĂĄlia" e "Superbacana", alĂŠm de "Alegria, alegria", mudei-me definitivamente para SĂŁo Paulo, e me casei com DedĂŠ. O casamento foi no dia 29 de novembro de 1967, em Salvador, e se tornou, malgrado nosso, um acontecimento pĂşblico. Íamos nos casar na Igreja de SĂŁo Pedro, DedĂŠ de vestido curto cor-de-rosa com um capuz da mesma cor (um arranjo de Ana, mulher de Torquato), e eu de terno e camisa de gola rulĂŞ laranja (na linha inventada por Guilherme para evitar os smokings que todos usavam nas apresentaçþes de TV). Eu levava uma grande flor amarela na mĂŁo. Mas a cerimĂ´nia era segredo. A famĂ­lia de DedĂŠ e a minha mantiveram tudo no mais absoluto sigilo.
No entanto, na manhĂŁ do dia 29, saĂ­mos no carro do pai de DedĂŠ e, ao entrarmos na avenida Sete de Setembro, empacamos num engarrafamento monstro. Chegamos Ă  igreja com grande atraso e descobrimos que o engarrafamento se devia Ă  multidĂŁo de colegiais que, fardadas da escola, matavam aula para me ver casar. AlguĂŠm (DedĂŠ sempre pensou que tivesse sido Guilherme AraĂşjo, mas ele sempre negou) tinha dito a um radialista, e este, desde o inicio da manhĂŁ, divulgava horĂĄrio e endereço. Foi dificĂ­limo chegar no interior da igreja. E mesmo depois de entrarmos, as coisas nĂŁo se mostraram mais fĂĄceis. Hordas de garotas de farda colegial lotavam o templo, distribuĂ­das por todos os assentos, os corredores, os pĂşlpitos, os altares. Parecia um pesadelo. Elas cantavam "Alegria, alegria" e tentavam chegar junto de mim. As que conseguiam, agarravam-se a cachos do meu cabelo e algumas agrediram DedĂŠ. Minha mĂŁe. sempre tĂŁo serena, desmaiou.
Bethânia levou uma pancada na cabeça. Eu queria ir-me embora. Mas nĂŁo dava para sair. O padre pediu silĂŞncio e respeito, em vĂŁo. Ele prĂłprio quis desistir da cerimĂ´nia, mas tambĂŠm nĂŁo viu como nĂłs poderĂ­amos sair antes que ele pudesse acalmar a garotada. Resolveu realizar o casamento assim mesmo. Eu me senti muito angustiado. DedĂŠ e eu sempre nos dissemos que nĂŁo Ă­amos nos casar. Mas ela acreditou quando sua mĂŁe lhe disse que "morreria" se ela fosse morar comigo em SĂŁo Paulo sem que nos casĂĄssemos. Como eu nĂŁo tinha nenhuma vontade de me separar de DedĂŠ, aceitei que o fizĂŠssemos, embora nĂŁo considerasse como ela dizia considerar, que tanto fazia casar como nĂŁo.
No meio daquele caos, tive medo. Muitos homens dizem sentir uma ansiedade de prisĂŁo no momento do casamento. Eu fiquei desesperado. As adolescentes pareciam se multiplicar como anjos lascivos numa igreja barroca baiana (nĂŁo era o caso daquela de SĂŁo Pedro, um templo comparativamente sĂłbrio, do sĂŠculo XIX) e eu entrava na vida adulta com um compromisso cujo peso era representado por um sacramento.
Eu prĂłprio, aos 24 anos, tinha o aspecto de um adolescente. E de fato me sentia mais adolescente do que parecia. AlguĂŠm jĂĄ disse que os homens que fixam seu espĂ­rito nos temas enfrentados na infância produzem obras profundas, enquanto os que repetem indefinidamente as questĂľes e ilusĂľes da adolescĂŞncia estĂŁo fadados a girar nessa zona perifĂŠrica em que se discute repressĂŁo, definição sexual e satisfação dos anseios de liberdade. Eu me situo no segundo grupo. Toda a onda dos anos 60 foi uma escalação de personalidades adolescentes, ou de personagens de estilo adolescente. Mas, profundamente influenciado por meu pai, desenvolvi uma verdadeira obsessĂŁo da integridade. Quando a conheci, DedĂŠ tinha dezesseis anos e eu 21. Uma das primeiras coisas que ela me perguntou foi se eu era "a favor do amor livre". Claro que eu era, mas nĂŁo foi o que lhe disse, pelo menos nĂŁo tĂŁo diretamente assim. Comoveu-me a ingenuidade com que ela fez a pergunta. Digo ingenuidade nĂŁo no sentido de ausĂŞncia de intençþes sexuais dela em relação a mim, que a atração entre nĂłs era claramente mĂştua, mas no sentido de desconhecimento da complexidade dos possĂ­veis argumentos em contrĂĄrio Ă  ideia de amor livre. E fiz o advogado do diabo. Foi um bom começo de namoro. Dez anos depois, quando ainda estĂĄvamos juntos, eu anotei que "amor e liberdade continuam sendo nosso tema". Éramos alegres na companhia um do outro. Minha considerĂĄvel feminilidade proporcionava um companheirismo permanente que fazia de nĂłs um casal de namorados e uma dupla inseparĂĄvel. Eu, que conhecera o tenebroso esplendor de uma grande paixĂŁo em Santo Amaro, uma paixĂŁo que nunca me abandonou de todo mas cuja grandiosidade parecia nutrir-se em grande parte de sua impossibilidade, encontrava finalmente um amor real, que se alimentava do que era vivido em nome dele e nĂŁo do que lhe era recusado. Era uma felicidade do corpo, vivaz e serena, e tambĂŠm uma alegria juvenil de adequação social (ter uma namorada!) e amadurecimento psicolĂłgico. DedĂŠ era a pessoa certa para esse encontro.
Muito bonita mas de uma beleza nĂŁo convencional, embora sem ser exĂłtica, ela era extremamente original como personalidade. Intrinsecamente moderna, muito franca e lĂşcida, era intelectualmente muito tĂ­mida, apesar (ou por isso mesmo) de se sentir atraĂ­da para a convivĂŞncia literĂĄria ou artĂ­stica. Ela prĂłpria estudava dança moderna na escola da universidade, mas sua indisciplina foi maior que seu talento e ela abandonou os estudos. Em 66 combinamos que ela viria para o Rio para estar perto de mim. Mas o casamento nĂŁo era parte dos planos. Para aceitar o que ela dizia ser apenas um modo de convencer a mĂŁe dela de a deixar mudar-se para SĂŁo Paulo (no Rio ela estava na casa da avĂł), precisei deixar claro que se eu aceitasse o ritual me sentiria com responsabilidades em relação a ele.
Qualquer outra coisa me pareceria cinismo. Ela, naturalmente, procurou aligeirar meus escrĂşpulos: as mulheres tĂŞm menos medo de casar do que os homens. Agora eu estava naquela igreja abarrotada como quem tivesse entrado numa alameda errada do labirinto da vida. NĂŁo sei como saĂ­mos dali. TĂ­nhamos combinado para depois uma festa, sĂł para a famĂ­lia e os amigos Ă­ntimos. Era para ser tĂŁo secreta quanto a solenidade, e eu jĂĄ estava certo de que nĂŁo seria possĂ­vel imaginĂĄ-la se realizando. O lugar escolhido era um restaurante Ă  beira-mar, escondido da rua por situar-se na parte de trĂĄs de um morro sem outras casas, no meio da vegetação, cercado de varandas e com uma escada que ia dar numa praia linda e sempre deserta. Pensei que, se as pessoas tinham conseguido descobrir o que se passaria na igreja, com maior facilidade encontrariam o restaurante e a praia.
Mas Tom ZĂŠ, que se encarregou do segredo desse almoço, nos assegurou que tudo daria certo. E deu. Fomos para esse restaurante e descemos para a praia e nĂŁo apareceu ninguĂŠm que nĂŁo fosse muito intimo. O dia estava lindĂ­ssimo, tudo se acalmou e alegrou, e eu achei DedĂŠ linda e fiquei feliz de estar casado com ela. Uma felicidade que durou enquanto o casamento durou.
Aparecer no programa de Roberto Carlos era uma transposição de fronteira muito significativa. O antagonismo entre MPB e iĂŞ-iĂŞ-iĂŞ era tĂŁo evidenciado pela hostilidade daquela em relação a este, que um grande compositor-cantor como Jorge Ben, por ter se apresentado uma vez no Jovem GUarda, se vira posto no Ă­ndex do Fino da Bossa. Mas Jorge Ben, que tinha estourado em 63 com uma variedade muito prĂłpria de bossa nova, diferente dos fundadores e diferente da turma do Beco das Garrafas, simplificada e africanizada, jĂĄ estava a essa altura fazendo uma fusĂŁo de samba com rhy thm&blues inaceitĂĄvel na ĂĄrea da MPB. Na verdade, depois de ter sua mĂşsica "Mas que nada" estourada mundialmente via SĂŠrgio Mendes & Brazil 66, Jorge Ben caĂ­ra numa espĂŠcie de ostracismo entre as figuras de prestĂ­gio e sĂł Roberto Carlos lhe dava guarida. Uma canção sua dessa ĂŠpoca anuncia: "Eu sou da linha Jovem-Samba", tentando uma paz (e uma sĂ­ntese) entre a Jovem Guarda e a MPB que nĂŁo extrapolou os limites dia prĂłpria canção.
Gil era um apaixonado por Jorge Ben desde a Bahia. Uma noite, cumprindo uma apresentação numa boate de Salvador, ele declarou que tinha deixado de compor e nĂŁo cantaria mais nenhuma das suas composiçþes, pois surgira um cara chamado Jorge Ben que fazia tudo o que ele achava que deveria fazer - e fez um show todo de cançþes de Jorge Ben. Eu, que gostava de Jorge Ben por sua originalidade e energia, nĂŁo admitia que um talento musical como o de Gil silenciasse em reverĂŞncia a ele. Sobretudo me parecia quase chocante que Gil, muito mais capaz de ouvir harmonias do que eu, dissesse preferir abandonar tudo por causa de um mĂşsico infinitamente mais primĂĄrio do que ele. Embora eu achasse seu gesto radical tĂŁo apaixonadamente generoso, nĂŁo podia compartilhar de suas motivaçþes. AtribuĂ­-o em parte (e creio que nĂŁo de todo erradamente) a razĂľes raciais. Jorge Ben era nĂŁo apenas o primeiro grande autor negro desde a bossa nova (um papel que poderia ser de Gil), mas era principalmente tambĂŠm o primeiro a fazer desse fato uma determinante estilĂ­stica. SĂł em 67 ĂŠ que vim a perceber o quanto a intuição de Gil tinha sido mais profunda e abrangente do que isso. E justamente por causa do engajamento no tropicalismo, um roteiro de ação imaginado e encomendado pelo prĂłprio Gil.
Uma gravação de Jorge Ben capsulava todas as nossas ambiçþes. Era "Se manda", um hĂ­brido de baiĂŁo e marcha-funk, cantado e tocado com uma violĂŞncia saudĂĄvel e uma natural modernidade pop que nos enchiam de entusiasmo e inveja. NĂŁo ĂŠ que Jorge Ben criasse fusĂľes, tampouco pode-se dizer que ele tenha passado da bossa nova para o rhy thm&blues. Sua originalidade, quando apareceu com sua versĂŁo do samba moderno (Samba esquema novo), nascia justamente de ele tocar o violĂŁo como quem tivesse se adestrado ouvindo guitarras de rock e mĂşsica negra americana. E em parte havia sido de fato assim.
(Ele mais ou menos participara da turma de amantes do rock que reunia Erasmo Carlos, Roberto Carlos e Tim Maia, nos bairros cariocas da Tijuca e do MĂŠier). A imediata tematização da negritude - que, em Salvador, impressionou Gil tĂŁo mais fortemente porque este sempre evitara faze-lo em qualquer nĂ­vel - se traduzia na batida do violĂŁo e no fraseado meio afro, meio blues, miais do que em eventuais vocĂĄbulos africanos ou pseudo-africanos e referĂŞncias explĂ­citas Ă  experiĂŞncia negra nas letras. O que ele fazia agora era um uso da guitarra elĂŠtrica que ao mesmo tempo o aproximava dos blues e do rock e revelava melhor a essĂŞncia do samba tal como ela podia manifestar-se nele. O que estivera latente na fase inicial se explicitava e aprofundava nessa fase de degredo na Jovem Guarda.
Sendo carioca, e dos mais arraigadamente caracterĂ­sticos, Jorge Ben exilara-se em SĂŁo Paulo por vĂĄrios anos. O noivado com a bela paulistana Domingas poderia explicar parte dessa decisĂŁo, mas nitidamente havia a motivação do desprestĂ­gio em que caĂ­ra, no Rio e, portanto, no Brasil em geral. SĂŁo Paulo era um campo vasto e neutro onde sucessos parciais e setorizados, que nĂŁo dependiam da adesĂŁo nacional, eram possĂ­veis. Mas o que nos atraia eram menos as misturas estilĂ­sticas que ocorriam nele do que a atmosfera de alegria fĂ­sica genuĂ­na que sua presença no panorama da mĂşsica brasileira instaurava. 
SaĂşde era a palavra que mais nos vinha aos lĂĄbios quando falĂĄvamos nele. Essa jĂĄ se tornara e permaneceria uma palavra-chave para nĂłs em julgamentos e apreciaçþes. JosĂŠ Agrippino e RogĂŠrio jĂĄ a tinham usado para falar atĂŠ de literatura (na verdade, RogĂŠrio se referira a PanamĂŠrica como um livro demasiadamente saudĂĄvel para ser boa literatura: "VocĂŞ tem muita saĂşde", dissera ele a Agrippino, "talvez a literatura precise de um pouquinho mais de neurose"), dando-lhe uma conotação que eu captei e incorporei imediatamente.
SaĂşde era o que exalava da figura, do timbre, das idĂŠias de Jorge Ben. A prĂłpria atração pela cena pop norte-americana era jĂĄ para nĂłs a essa altura um sinal de "saĂşde" . A cena pop norte-americana (e o culto que lhe renderam ingleses criadores do neo-rock dos anos 60) era apenas um dos elementos que, nessa viragem tropicalista, tĂ­nhamos deixado de desprezar como "vulgares" para cultuarmos como "saudĂĄveis. "Se manda", com sua agressividade alegre (ĂŠ uma letra de mandar embora a mulher que "vacilou", sumariamente e sem culpa) e sua musicalidade deixando Ă  mostra traços crus de samba de morro e blues numa composição de exterioridades nordestinas, era a encarnação dos nossos sonhos. Parecia-me que minha "TropicĂĄlia" era mera teoria, em comparação. Uma tentativa de tratado sobre aquilo de que "Se manda" era um exemplo feliz.
Jorge Ben, sem criar uma "fusĂŁo" artificiosa e homogeneizante, apresentava um som de marca forte, original, pegando o corpo de questĂľes que nos interessava atacar, pelo outro extremo, o do tratamento final, enquanto nĂłs chegĂĄvamos a soluçþes variadas e tateantemente incompletas nesse campo. Gil e eu elegemos a faixa "Se manda" por ser, nesse sentido, extraordinariamente bem-sucedida, tambĂŠm porque as caracterĂ­sticas nordestinas a aproximavam de nĂłs, baianos, mas o que foi dito aqui sobre essa gravação se aplica a todo o LP O bidu, em que ela se encontra, e a todo o trabalho de Jorge Ben do final dos anos 60. Jorge se tornou um sĂ­mbolo, um mito e um mestre para nĂłs. Gil, que o amara irrestritamente desde o inĂ­cio, tomou seus procedimentos musicais de entĂŁo como uma das fontes principais de inspiração para suas buscas no violĂŁo e nos arranjos; e eu, que desde aquela ĂŠpoca repetidas vezes imitei alguma coisa do seu jeito de fazer poesia e de cantar (tendo gravado um bom nĂşmero de suas cançþes), uma vez escrevi que, se nĂłs, tropicalistas, tĂ­nhamos, em nosso afĂŁ de pĂ´r as entranhas do Brasil para fora, efetuado "uma descida aos infernos", "o artista Jorge Benjor ĂŠ o homem que habita o paĂ­s utĂłpico transhistĂłrico que temos o dever de construir e que vive em nĂłs".




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