segunda-feira, 15 de maio de 2017
MINHAS DUAS ESTRELAS (PERY RIBEIRO E ANA DUARTE)*
16 - Abandono
De abandono eu posso falar. Meu pai, em seu instável universo musical, considerava o máximo a carreira militar. Era tudo o que sonhava para os filhos: segurança, estabilidade, respeitabilidade. Assim, decidiu nos colocar num curso preparatório para o Colégio Militar do Rio. Procurou um colégio especializado, de preferência com internato. Não encontrou, mas soube de um professor famoso pela aprovação de seus alunos no Colégio Militar. O nome dele era professor Júlio e sua escola — um externato — funcionava em um casarão velho na rua Mariz e Barros. No prédio, havia salas de aula, carteiras, quadros-negros e nada mais. Em sua fixação, nosso pai conseguiu o in-imaginável: que o professor Júlio nos recebesse em regime de internato. Isto é: comprou duas camas de armar, dessas de madeirinha bem vagabunda, em que o colchão não conseguia segurar o lençol, e com o passar do tempo as molas iam espetando o corpo da gente. À noite, sozinhos, Bily e eu armávamos as camas com lençol e travesseiros e, de manhã cedo, tínhamos de acordar antes do início das aulas, correr para um banheiro no fim do corredor, nos preparar bem rápido, desar-mar as camas e guardar tudo. O café da manhã era um pingado, tomado com pressa na esquina, para nos apresentar a tempo no pá-tio do colégio para as aulas. Quando a gente embalava naquele sono gostoso de criança e passava da hora de acordar, era terrível. Os alunos já entrando na sala de aula e a gente ali, arrumando as camas, dobrando tudo, na frente de uma plateia nos gozando e humilhando. Acreditem se quiser! Lá estávamos, Bily e eu, vivendo totalmente sozinhos em um casarão, à mercê da simpatia ou do desprezo de estranhos. Éramos uma espécie rara de “menores abandonados”: tínhamos pais, mas não estavam nem um pouco preocupados com nossa cabecinha, com nossos sentimentos. E, para piorar a situação, eram figuras públicas e nossa vida estava nos jornais. O almoço e o jantar eram na casa do professor Júlio, perto do colégio. Lá ainda tínhamos de enfrentar os filhos dele: altamente grosseiros, nos tratavam muito mal, como o nosso escancarado abandono lhes permitia. Todos sabem da crueldade de que as crianças são capazes! Depois do jantar, voltávamos sozinhos para o colégio. Aquele casarão antigo, escuro, vazio, onde só havia salas de aula, a escuridão com feixes de luzes entrando pelas janelas, o barulho dos nossos pés no assoalho velho de madeira antiga e mal-tratada, o ranger das escadas para chegarmos ao “nosso quarto” no segundo andar, o barulho do bonde passando… são lembranças de um passado, de uma infância de que — eu juro! — não tenho a menor saudade. À noite, até a hora de dormir, a gente ligava um radinho e muitas vezes ouvíamos as músicas de nosso pai, a voz de nossa mãe entrando em maior evidência, já fazendo sucesso. Agarrados, Bily e eu rezávamos para Cosme e Damião, fazíamos promessa, implorando para eles não nos deixarem tão sozinhos, para nos levar de volta para casa. Chorando, desligávamos o rádio, apagávamos a luz e dormíamos na sala de aula. Minha mãe não gostava de nos ver naquela situação, mas jamais conseguimos entender por que não tomava uma atitude. Quanto ao exame do Colégio Militar, é claro que fomos reprovados! Para nós dois, a separação de nossos pais foi traumática. Não é difícil imaginar o es-trago na cabeça de duas crianças, no meio de tanta tensão, estresse e desrespeito. O país inteiro comentava e cantava a nossa vida. Estávamos em todos os jornais, todos os dias. As pessoas tomavam partido: havia quem fosse favorável a Dalva e quem fosse favorável a Herivelto. Não podíamos andar na rua, brincar, ir à praia, estudar — nada! — sem que um bando de pessoas nos viesse perguntar de que lado estávamos. E os famosos capítulos do Diário da Noite, relatados por meu pai, eram motivo de muitas perguntas: “Quem é que vocês acham que está certo: sua mãe ou seu pai?”. “É verdade que ela dormiu com fulano ou sicrano?” “De quem vocês gostam mais?” E a gente no meio daquela loucura, sem saber como lidar com aquele assédio neurótico. Bily e eu passamos a nos agarrar um ao outro. Se já éramos unidos, ficamos mais ainda. Numa esperança infantil, sonhávamos com um milagre que desse um fim àquele drama. Como nossos pais eram obrigados a cumprir um despacho do juiz da Vara de Família determinando que Dalva não poder-ia nos dar a necessária atenção devido à sua carreira de sucesso, nossa vida teria de ser em colégio interno. Após a reprovação do Colégio Militar, fomos colocados no Liceu São Luís, no Engenho Novo. Lá o regime de internato realmente existia, não éramos os únicos nesse esquema. Ficamos pouco tempo, pois o professor Lyra, dono do colégio, logo transferiu o internato para Itaguaí, cidade próxima ao Rio. Era um lugar pacato, gostoso e com uma arquitetura colonial linda. Casas do tempo dos escravos, lugar onde dom Pedro trocava de cavalos a caminho de São Paulo. O progresso destruiu tudo, quase nada foi preservado. Não pensem que era um colégio com - patível com a posição alcançada por meus pais, ao contrário. Nunca senti muita pre-ocupação neles com uma qualidade maior em nossa educação, em nos oferecer um bom ambiente para alicerçarmos nossa vida. Talvez por desconhecerem a importância disso, apenas se ligavam em nos dar “estudo”. Não sei se isso acontecia também pela mentalidade da época, que tornava tudo pior. Porque sei que nossos pais fizeram uma tentativa de nos colocar em um colégio de nível melhor, o Anglo Americano, mas a matrícula foi terminantemente negada. Não aceitavam filhos de pais separados. Ainda mais de artistas. Em Itaguaí era tudo muito simples, quase precário. Estudávamos num prédio no alto de uma ladeira. Em outro prédio, no pé dessa ladeira, havia o refeitório com o pátio do recreio e a sala onde fazíamos as lições. Na rua ao lado, numa casa antiga feita por escravos, era o dormitório. Tinha um telhado colonial lindo, mas atraía morcegos, nos deixando apavorados à noite. Em frente ao refeitório havia uma padaria com um pãozinho maravilhoso. Quando sentíamos, na madrugada, o cheirinho da primeira fornada de pães, a gente escorregava da cama e ia até os fundos da padaria comer um pão quentinho com uma caneca de café oferecidos pelo padeiro. Enquanto isso… o bedel dormia profundamente. Não havia muito controle. Eu tinha uma namoradinha, a Marilu, estudante do externato do colégio, que segurou muito a nossa barra. Estava sempre nos convidando para sua casa. Ela e a família e mais alguns colegas, como a Shirley, outra grande amiga, nos ofereciam um grande conforto. Marilu era uma menina sensível e se tornou uma mulher inteligente e muito especial; somos amigos até hoje. A esses amigos de Itaguaí dedico minha gratidão pelo carinho que tiveram por nós. Sábado era o dia de os alunos serem apanhados pelos pais. Numa semana minha mãe ia nos buscar; na outra, meu pai. Mas eles nunca chegavam logo cedo, como os outros pais. Costumavam chegar só depois que anoitecia. E, durante todo o tempo da es-pera, a agonia tomava conta de nós dois. No auge das reportagens do Diário da Noite, o professor Lyra e sua esposa, dona Glorinha, eram obrigados a nos esconder em uma sala, até que todos fossem embora. A curiosidade dos pais era tão grande que se esqueciam dos próprios filhos — apenas se preocupavam em nos olhar ou nos fazer aquelas perguntas horríveis. Sentíamo-nos verdadeiros “bichos raros”. Nossa privacidade já não era mais invadida, era o ponto ex-ato onde todos queriam ficar. Acredito que a vida dos meus pais real-mente não lhes permitia serem muito pontuais. Por várias vezes, chegaram quando a gente já estava dormindo. Estavam muito preocupados em viver o seu grande drama ou em como sair dele. Nunca deram muita bola para o nosso drama. Bily e eu íamos para um cantinho, fazíamos promessa para Cosme e Damião, pedindo para que nossos pais não nos deixassem presos no colégio no fim de semana. E a gente via o tempo passar, a noite avançar, sem que nossos pais chegassem . Era um sofrimento! Até hoje, o começo da noite me faz ficar nervoso. Penso até que o habitual “soninho” que sinto nesse horário, me obrigando a uma soneca, deve ser um resquício inconsciente desses tempos de colégio. Uma espécie de fuga arraigada em meu ser. Essa situação de ter de viver no colégio in-terno, longe de nossa mãe, era horrível para nós. Aliás, para todas as crianças que estavam lá. A criança de internato se sente abandonada pela família, como se não fosse amada de verdade. Em nossa cabecinha, era como se fôssemos culpados de algo e tivéssemos de ser castigados por isso. E, para pior-ar, ainda sofríamos um preconceito às avessas. Como filhos de artistas famosos, causava muita estranheza nossa presença nesse tipo de colégio, bem modesto, pois todos imaginavam que nossa família tinha posses para nos colocar em colégios melhores. Passamos a ser discriminados pelos colegas porque tínhamos pais importantes. Éramos chamados de “riquinhos” e cruel-mente ignorados nas brincadeiras de grupo. Tentávamos nos enturmar dizendo: “É mentira, não sou rico, não. Juro que sou pobre também!”. Era uma barra! Um dia, ao chegarmos ao internato com uma bola de futebol (linda!) que havíamos ganho de meu pai no fim de semana, fomos convidados no recreio para o jogo. Assim, sem querer, acabamos aprendendo a primeira lição sobre os chamados “jogos de poder” que regem o mundo — a melhor maneira de garantir nossa participação nos jogos e brincadeiras era sendo os donos da bola. A partir daí, não deixávamos meu pai e minha mãe sossegados quando nossa bola estragava. Minha mãe continuava a ser carinhosa como sempre, quando estávamos juntos. Só que, na verdade, não íamos para a rua Alba-no, 42, com tanta frequência quanto gostaríamos. Havia fins de semana em que tanto minha mãe quanto meu pai estavam trabalhando fora do Rio e não podíamos ficar com nenhum dos dois. Acabávamos passando a folga com a avó Alice. E, assim, continuavam a fazer parte de nossa vida aqueles pardieiros horríveis, pois sua casa muito humilde ficava no centro da cidade, onde convivíamos com uma grande pobreza. Nesse novo tipo de vida — visita para meu pai, visita para minha mãe — fomos nos sentindo parte de um grande jogo. Muito cobrados, muito divididos, tendo de aprender na marra a sobreviver no meio da guerra pessoal deles. No Natal, tínhamos de revezar: dia 24 com um, dia 25 com o outro. No réveillon e dia 1o de janeiro, a mesma coisa. Para quem me lê agora, tudo isso deve soar muito natural, já que hoje é corriqueiro para um número muito grande de filhos de pais descasados. Só quero lembrá-los de que, no fim dos anos 40 e início dos 50, os desquites eram considerados uma grande vergonha para os familiares envolvidos. Ainda mais um desquite como o dos nossos pais, coberto por escândalos e contado em capítulos nos jornais. Sofríamos muito, pois, além da tristeza em ver a família desfeita, tínhamos de conviver com o vexame da situação. O comportamento de meus pais era terrível. Minha mãe passou a nos chantagear. Quando acabava o Natal e tínhamos de ir no dia seguinte para a casa de meu pai, ela desmaiava na despedida. Ficava deitada no chão até ser acudida e então dizia: “Estão vendo o que vocês fazem comigo? Podem ir, podem ir pro seu pai. Eu fico aqui sozinha, podem ir! ”. No início, a gente se assustava com aqueles ataques. Mas fomos percebendo o seu joguinho, a sua chantagem . Apenas a beijávamos e saíamos. Com o coração apertado, é claro, posando de durões. Embora não conseguisse atingir tanto meu pai com palavras (passou a se referir a ele como “o Falecido”), sua bronca maior era voltada para Lurdes. Quando soube que ela não sabia fazer nem café, muito menos cozinhar, e não cuidava para que meu pai não saísse sem um botão na camisa ou com a calça amarrotada, aí então minha mãe se deliciava! Como já disse antes, ela era uma ótima cozinheira e uma dona de casa cuida-dosa, especialmente com meu pai. Cuidava pessoalmente das roupas dele e, mesmo quando o dinheiro começou a entrar, fazia questão de supervisionar e inspecionar tudo. Já na casa de meu pai, nos fins de semana, a “artilharia” era bem mais pesada. E era eu, o mais velho, quem escutava com mais frequência: “Sua mãe não presta. Ela ainda está dando pra fulano? Ela é uma puta!”. Isso me causava uma dor enorme e diminuía cada vez mais a minha autoestima. Algumas dessas vezes, a gente tinha acabado de estar contente e feliz na companhia de minha mãe ou estava saindo do colégio, e eu ficava com uma sensação de que tudo o que acontecia fora do julgamento do meu pai era pecaminoso, era sujo, era uma merda. Nossa adolescência (ou o que restou dela) não deixou recordações maravilhosas, a não ser o amor por nossos pais, sempre muito forte. Talvez porque esse amor já continha em si uma enorme dose de perdão e entendi-mento do que eles foram para o mundo. Mas não deixa de ser um legado muito pesado, porque a nossa formação intelectual, senti-mental, profissional sofreu muito por não ter um chão mais sólido para caminhar. Eu não sabia como construir melhor minha personalidade. Passei anos e anos achando que as pessoas à minha volta poderiam estar sabendo o que eu estava pensando, o que queria ou o que não queria. Era uma sensação de nudez interior e de devastação interna. Parecia que qualquer coisa que fizesse ou pensasse imediatamente seria descoberta pelas pessoas em volta de mim. Não tinha uma voz que traduzisse o meu interior. Ele já era devassado. Isso expressa bem a insegurança que sempre tive em re-lação ao sucesso. Talvez seja por isso que me sinta tão alijado do processo de ganhar dinheiro ou de uma projeção artística que me proporcione mais satisfação como profissional da música. Sigo meu caminho tentando me autoconsertar. Espero que consiga receber da vida, ou de mim mesmo, aquilo com que sonho: uma real integração com o meu Eu interior, com o mundo onde vivo, com as pessoas com quem quero conviver e com o amor e a paz que, eu pretendo, não saiam jamais do meu caminho. O preço por sermos, Bily e eu, filhos de quem somos foi bastante alto. Nessa difícil tarefa de contar a minha vida com meus pais, busco uma imparcialidade total. Procuro ser o filho que apenas narra o que viu, o que viveu, o que absorveu, sem nenhum julgamento. Fui treinado para isso desde muito cedo. Ao sermos indagados pelo país inteiro, nos tempos de colégio, de quem a gente mais gostava ou quem poderia ter mais razão naquela briga, Bily e eu tivemos de trabalhar muito nossa forma de amar nossos pais, para que não houvesse nenhuma preferência, ainda que nossas dores e mágoas fossem enormes. Sei que tanto meu pai quanto minha mãe tinham seus claros e escuros, bonitos e feios. Mas como eram Dalva de Oliveira e Herivelto Martins, quaisquer atitudes deles se tornavam o assunto do dia nos jornais, crivando nossa trajetória com tristezas e belezas difíceis de serem carregadas, principalmente por duas crianças. Nessa conjuntura, nossa vida foi transcorrendo e tivemos de enfrentar uma triste realidade: desde os últimos tempos na Urca, em 1949-50, nunca mais, em tempo algum, conseguimos viver juntos. Fosse na casa da minha mãe, fosse na do meu pai. Em relação a mim e a Bily, fico pensando como um homem tão inteligente e brilhante como meu pai pudesse descuidar tanto dos que amava. Por que entupia a geladeira de comida e os armários de bebida, oferecia far-tura a todos, enquanto nos dava uma formação escolar tão pobre e desguarnecida? Nunca entenderemos essa pouca preocupação com nossa educação. Acho que Deus nos muniu de uma força extra e de um instinto especial de sobre-vivência. Apesar do tipo de criação que tivemos, hoje nos preocupamos muito com a qualidade de nossa vida e com o que oferecemos aos nossos filhos. Cuidamos da qual-idade de seus colégios e do ambiente em que desenvolvem as suas personalidades e potencialidades. Tenho a preocupação de viver bem, curto e tenho sempre uma casa bonita, com decoração agradável, alguns quadros e objetos de arte, o vinho em minha mesa é sempre de qualidade. A casa, o meu ninho, tem para mim uma grande importância. Sei que para meu irmão Bily também é as-sim . A casa para nós é o refúgio, o porto se-guro. Herança de um tempo em que participávamos do refúgio dos outros. Tempo em que éramos jogados da casa de amigos ao esquecimento total nos colégios internos. Isso era abandono, a grande solidão a que tínhamos sido condenados, numa idade em que nossa cabeça tinha mais é que estar sendo preservada e estimulada a produzir para o nosso futuro.Mas não me cabe agora descobrir qual foi o mais culpado. Fui vendo, através dos anos, que na vida não existe culpado. Existe a vida. Existe o “grande palco”, onde cada um tem seu personagem a desempenhar, da melhor maneira que conseguir. Não importa a sinceridade de sua conduta para conquistar o aplauso ou a vaia. O que importa é no que a plateia quer acreditar. Já vi que as mentiras são mais aplaudidas do que a verdade, e muitas vezes não é a verdade que querem ouvir. O grande compositor Bily Blanco expressa isso com categoria na música “O tempo e a hora” , da obra Paulistana, uma sinfonia dedicada a São Paulo, terra natal de Ruth, sua esposa (e amiga querida), da qual participei com muita honra: O que vale é a versão Pouco interessa o fato Porque a sensação maior É a do boato
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