Por Leonardo Davino*
O que é canção? Déa Trancoso
Déa Trancoso
- O que é canção para você?
A canção é uma espécie de milagre permitido pelo som. uma equação delicada e sofisticadíssima entre o som e a palavra (que também tem som). nessa equação, o som, cavalheiro elegante, passa o comando para a palavra. para mim, quem conduz a canção é a palavra. a palavra pulsa a canção. é o seu coração. o som na canção é água de rio: corre por entre, por sobre e dos lados da palavra.
- De onde vem a canção?
Vem pela nuca. vem da vontade intrínseca do homem em compreender o Caminho. a poesia é uma estrada privilegiada diante da nossa condição humana: somos desconhecidos de nós mesmos. não sabemos aonde isso vai dar e se vai dar em algo. a poesia nos salva. a canção é talvez o mais rico exercício poético. junta a linguagem, que nos especifica, com a música, que nos transcende. então, a canção é um dos mais poderosos combustíveis para o grande veículo da encarnação que é para mim a Consciência.
- Para que cantar?
Cantar melhora tudo. o canto é um mestre. mostra que eu não sou aquilo que penso que sou. quando canto toco aquilo que não tem nome. cantar me salva de mim mesma.
- Cite 3 artistas que são referências para o seu trabalho. Por que estes?
Cássia Eller. Ná Ozzetti. Clementina de Jesus. Cássia Eller tinha um canto poderoso, homogêneo, que lançava ondas sonoras que se tivessem sido medidas a gente veria que a frase saía de sua boca com uma força e chegava no nosso ouvido com a mesma força. não perdia nada no meio do caminho. era uma qualidade de seu canto, de sua natureza de cantora e da plataforma que ela escolheu para se expressar que foi o rock. o seu canto tinha uma "certeza" que desafiava paradoxalmente o seu ser. sempre achei que quando ela cantava entrava em contato com sua estrela e quando não estava cantando era puro conflito. eu a observei muito durante sua estadia no planeta e a vi ao vivo uma vez num show em Belo Horizonte. para mim, uma das mais verdadeiras artistas do Brasil. Ná Ozzetti tem um dos cantos mais inteligentes que já ouvi. a liberdade absoluta na emissão e na pronúncia das palavras dentro da musicalidade da canção é invejável e se esse pioneirismo ainda não foi devidamente creditado a ela em vida, um dia será. isso sem falar nos mistérios de seu timbre. ela usa com uma consciência absurda esses mistérios e o resto de seus atributos artísticos. ouço desde sempre. Clementina de Jesus é um espelho. eu olho para mim e a vejo. a rusticidade do timbre, a irregularidade da emissão e uma doçura extrema criam um conjunto intrigante e singularíssimo. é como se o canto fosse a arena escolhida para a serenidade. uma natureza guerreira que se suaviza no canto. assim me sinto. assim foi Clementina.
* Pesquisador de canção, ensaísta, especialista e mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e doutor em Literatura Comparada, Leonardo também é autor do livro "Canção: a musa híbrida de Caetano Veloso" e está presente nos livros "Caetano e a filosofia", assim como também na coletânea "Muitos: outras leituras de Caetano Veloso". Além desses atributos é titular dos blogs "Lendo a canção", "Mirar e Ver", "365 Canções".
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