Por Leonardo Davino*
"Assinado eu", de Tiê (Sweet jardim, 2009), desenha o drama de todo sujeito-compositor: a motivação e a feitura da composição em si.
Afinal, o que querem as canções? Por que e por quem cantar? O sujeito de "Assinado eu" revela não apenas o processo, mas também sugere os resultados.
Cantada em primeira pessoa, justificando o "eu" do título, o sujeito de "Assinado eu" não precisa dizer qual é seu nome, o destinatário da mensagem já lhe conhece. Para que a mensagem seja entregue à pessoa certa, o anonimato - a perda do "eu" nos vários eus indefinidos - auxilia o gesto cancional.
Cantar aqui é falar de alguém específico porque oculto. Denominar é perder o objeto. Ao manter o anonimato, ao assinar "eu", o sujeito se mantem só (apenas) do outro, do destinatário cantado e amado na canção. Assim, ambos se preservam: um do outro e vice-versa. "Tanta afinidade assim, eu sei que só pode ser bom", diz o sujeito.
"Assinado eu" é o canto do sujeito que correu para o violão (num lamento) e a manhã nasce azul. O sujeito declara como é bom poder tocar um instrumento e escrever um som de um tom já esquecido, mas ainda ressonante. O passado agora está no seu lugar - no passado -, portanto a canção que agora é composta pelo sujeito tem o distanciamento lúcido dos fatos.
Tendo sido ele - o sujeito fingidor - o despoletador do amor, "Assinado eu" é um canto de desculpas, um ritual de adeus de um sujeito que se arrasta - passo a passo - pelos tempos da finada relação.
Por fim, a sempre um lado que pesa e outro lado que flutua: é como diz o poema de Fernando Pessoa: "Quanto a mim o amor passou / Eu só lhe peço que não faça como gente vulgar / E não me volte a cara quando passa por si / Nem tenha de mim uma recordação em que entre o rancor / Fiquemos um perante o outro / Como dois conhecidos desde a infância / Que se amaram um pouco quando meninos / Embora na vida adulta sigam outras afeições / Conserva-nos, escaninho da alma, a memória de seu amor antigo e inútil".
***
Assinado eu
(Tiê)
Já faz um tempo
Que eu queria te escrever um som
Passado o passado,
Acho que eu mesma esqueci o tom
Mas sinto que
Eu te devo sempre alguma explicação
Parece inaceitável a minha decisão
Eu sei
Da primeira vez,
Quem sugeriu,
Eu sei, eu sei, fui eu
Da segunda
Quem fingiu que não estava ali,
Também fui eu
Mas em toda a história,
É nossa obrigação saber seguir em frente,
Seja lá qual direção
Eu sei
Tanta afinidade assim, eu sei que só pode ser bom
Mas se é contrário,
É ruim, pesado
E eu não acho bom
Eu fico esperando o dia que você
Me aceite como amiga,
Ainda vou te convencer
Eu sei
E te peço,
Me perdoa,
Me desculpa que eu não fui sua namorada,
Pois fiquei atordoada,
Faltou o ar,
Faltou o ar
Me despeço dessa história
E concluo: a gente segue a direção
Que o nosso próprio coração mandar,
E foi pra lá, e foi pra lá
* Pesquisador de canção, ensaísta, especialista e mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e doutor em Literatura Comparada, Leonardo também é autor do livro "Canção: a musa híbrida de Caetano Veloso" e está presente nos livros "Caetano e a filosofia", assim como também na coletânea "Muitos: outras leituras de Caetano Veloso". Além desses atributos é titular dos blogs "Lendo a canção", "Mirar e Ver", "365 Canções".
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