CHICO
Augusto escreveu alguns artigos sobre nosso trabalho e os foi publicando em jornais de São Paulo, no calor da hora. Depois ele os reuniu no livro Balanço da bossa, ao lado de ensaios dos seus amigos músicos eruditos sobre a bossa nova. Eu me orgulhava da atenção que tínhamos despertado neles. Mas, se por um lado eu entendia e admirava a parcialidade de Augusto, por outro, as sutis diferenças que havia entre nós não me permitiam aderir sem reservas a todas as suas posições. Ou melhor: me resguardaram de tomar suas discriminações como dogmas. Sua versão da oposição inevitável entre o que fazíamos e o que Chico vinha fazendo, por exemplo, embora me parecesse basicamente correta e fosse exposta sempre em termos conscienciosos e equilibrados, nunca abalou meu amor especial pelo estilo, pela pessoa ou pela importância histórica de Chico Buarque. E Augusto sempre respeitou essa obstinação que muitas vezes chegou a ser explicitada em conversas.
De todos os tropicalistas, Gil era o que mais firmemente mantinha a clareza exigida em relação a isso. E muitas vezes conversávamos os dois a respeito. Nós sabíamos que grande parte da MPB reagira mal ao que estávamos fazendo: Edu Lobo, Francis Hime, Wanda Sá, Dori, Sérgio Ricardo e, mais que todos, Gerado Vandré, mostravam-se meio irritados, meio decepcionados conosco. Não esperávamos que Chico tivesse uma posição substancialmente diferente. Mas ele era diferente para nós. Por um lado, as opiniões dos outros não tinham tanto peso para nos quanto as de Chico; por outro, eles não estavam sendo confrontados conosco – sobretudo comigo - como Chico estava. Este, portanto, se encontrava mais perto de nós.
Minha primeira lição sobre as armadilhas da imprensa se deu exatamente por causa disso. Uma moça simpática, entrevistando-me para a revista InTerValo (o T e o V maiúsculos indicavam ser uma publicação especializada em televisão), perguntou-me como eu via a diferença entre mim e Chico. Eu, estimulado pela oportunidade – e crendo que minha "aula" ia ser publicada -, expliquei-lhe que o que eu fazia era expor o aspecto de mercadoria do cantor de TV. Que tanto eu quanto Chico estávamos dizendo muitas coisas com nossas canções, mas que, do ponto de vista da televisão, eu era um cara de cabelo grande e Chico um rapaz bonito de olhos verdes: e que quanto mais desmascarado estivesse esse jogo, mais nossas canções e nossas pessoas estariam livres. Poucos dias depois saiu a reportagem com minha declaração sumaria de que "Chico Buarque não passa de um belo rapaz de olhos verdes". Tom Zé, que nunca fora um bossanovista (eu o convidara a vir de Salvador exatamente por perceber que seu talento satírico e seu adestramento teórico musical lhe assegurariam um lugar no programa tropicalista), não tinha esses cuidados com Chico Buarque. Perguntado num programa de televisão sobre o confronto tropicalistas versus Chico, respondeu que, de sua parte, respeitava muito Chico Buarque "pois ele é nosso avô". Lembro de, ao ser informado dessa história (pois eu não tinha TV em casa), rir às gargalhadas com Guilherme, comentando o fato de eu ser dois anos mais velho do que Chico - e Tom Zé seis anos mais velho do que eu. Eu não achava que devia procurar Chico para explicar a matéria da InTerValo (antes do tropicalismo já não nos estávamos vendo quase nunca), por outro lado, não queria policiar as falas públicas dos meus colegas. Tive algumas discussões com Torquato por causa disso (ele estava se tornando um tropicalista sectário), mas, na verdade. eu não me preocupava demasiadamente: minha confiança em que nossa intervenção resultaria bem para todos era total: mais cedo ou mais tarde, Chico (e todos os outros) saberiam que não havia nem hostilidade contra eles nem ambições comercialescas no nosso projeto. Eu estava mais certo disso então do que estou hoje. Além do mais, Chico fora, como já contei, convidado por Gil para reuniões esclarecedoras dos nossos novos propósitos, e não lhe dera ouvidos.
Um episódio, no entanto, me pareceu inaceitável. Já no final de 68, Gil estava com Sandra, a irmã de Dedé com quem ele começava um namoro, numa frisa do Teatro Paramount, onde se realizava uma eliminatória do festival da Record daquele ano. Um grupo de pessoas na platéia recebeu a entrada de Chico no palco aos gritos superado!, superado!". Gil comentou com Sandra que aquilo era inadmissível. Levantou-se e investiu contra os manifestantes. Um jornalista quis ver - e assim publicou depois no seu jornal - que Gil havia liderado uma vaia ao Chico. Não li essa notícia e creio que Gil tampouco a leu. Ouvimos falar no assunto com um certo atraso. Hoje todo o mundo que escreve sobre os acontecimentos de então se compraz em dizer que havia dois lados que se confrontavam nesses festivais: um a nosso favor, outro a favor de Chico. As coisas não eram assim. Nós éramos sistematicamente vaiados pelos apoiadores de Chico, mas ele - com exceção desse esboço de agressão verbal que Gil, para seu infortúnio, tentou conter - nunca foi vaiado pelos nossos, que não chegavam a ser um número perceptível numa plateia.
Chico fez publicar um protesto contra a possível atitude de Gil. Desde o primeiro momento eu me indignei. Gil achou tudo de um absurdo imenso mas não quis procurar Chico para desfazer o mal-entendido. Ele achava, entre outras coisas, impossível que Chico acreditasse na versão que chegou até ele. E depois disso os acontecimentos se desencadearam de forma tão dramática em tão pouco tempo, que não me foi possível convencer Gil de agir com firmeza nesse caso. Nunca me conformei com isso, e ainda hoje me indigno com os historiadores do período, que contabilizam as vaias do Festival Internacional da Canção - uma tentativa da TV Globo do Rio de seguir a Record de São Paulo, de que nós nunca chegamos propriamente a participar, e que, de resto, nos parecia absolutamente desinteressante - , vaias que atingiram Chico (junto com Tom) por razões de
outra ordem, para dar a impressão de que naquele tempo era assim mesmo, que nós nos agredíamos mutuamente através de nossos imensos públicos antagônicos.
Até que fôssemos presos e exilados. o público predominantemente estudantil desses programas esteve coeso contra nos. Deixei de falar com o jornalista Zuenir Ventura por ele ter pedido meu depoimento sobre o período - mormente sobre o episódio da suposta vaia de Gil a Chico - e depois ter publicado um livro em que não só meu veemente desmentido não parece ter sido levado em conta como também esse quadro de duas forças rivais de mesmo peso se enfrentando se reitera. Um quadro no qual os artigos de Augusto aparecem injustos e desproporcionais. Exatamente o contrário do que eles foram.
Claro que havia uma agressividade necessária contra o culto unânime a Chico em nossas atitudes. Quando gravei, em 69, a "Carolina" num tom estranhável, eu claramente queria, entre outras coisas, relativizar a obra de Chico (embora não fosse essa, ali, a principal motivação). Gil, numa entrevista dada a Marisa Alvarez Lima pouco antes de irmos para Londres (cujo conteúdo só vim a conhecer recentemente), fez questão de frisar a intenção crítica da minha escolha. Seria desnecessário fazê-lo se se pensa na referência a "A banda" na letra de Tropicália", no esboço de paródia dessa mesma canção embutido em "Alegria, alegria", e na menção à própria "Carolina" na letra de "Geléia geral". A mera valorização que fazíamos do trabalho de Paulinho da Viola implicava um grito de independência em relação à hegemonia do estilo buarquiano: tal como Chico, Paulinho voltava -se para o samba tradicional, mas, diferentemente dele, fazia-o sem o filtro da bossa nova.
Com efeito, embora menos profícuo e muito menos dotado, como poeta, do que Chico, Paulinho era um caso milagroso em nossa geração: ele não parecia sequer ter ouvido João, Tom ou Ly ra. Como era jovem, mostrava-se também disposto a partir para experimentações e inovações, mas estas não nasceriam - como tudo meu, de Edu, de Chico. Gil ou Jorge Ben - do universo estético pós-bossa nova. Isso dava um encanto especial a suas criações. E nossa insistência em ressaltar sua importância (eu o fazia desde o artigo da Ângulos, de 65) punha
também a questão da volta à tradição em perspectiva diferente da consensual, que tinha Chico como a síntese final da dialética da composição de música popular no Brasil. Não é, portanto, despropositada nem surpreendente a reação magoada que Chico externou numa entrevista ao Pasquim em sua volta da Itália, depois de anos de auto-exílio.
Entrevista que, aliás, ele quis excluir da seleção feita pelo Pasquim para publicação em livro. É preciso ter em mente que a glória indiscutível de Chico nos anos 60 era um empecilho à afirmação do nosso projeto. Porque, em princípio, todos os seus apoiadores (que eram virtualmente todos os brasileiros) deveriam nos rejeitar. O máximo que podíamos fazer - o que Gil tentou fazer naquele episódio desastrado - era mostrar a quem ia se tornando partidário de nossa visão que não era preciso agredir Chico para afirmá-la. Porque estávamos seguros de que a criação de Chico, ela mesma, ganharia com a relativização - além de ser estimulada por novos desafios. A imprensa naturalmente preferia acompanhar as manifestações mais infelizes, que dessem uma impressão de disputa mesquinha - no que não estava necessariamente errada, pois o jornalista não deve mesmo estar disposto a crer na complexidade das boas intenções das celebridades que ele ajuda a criar. Muito do absurdo que se lê nos jornais é a voz inconsciente dos agentes dos fatos relatados e não apenas a maquiavélica maquinação dos donos de jornal e a mediocridade de um ou outro miserável que precisa segurar seu emprego nas redações. Mas isso não quer dizer que eu deva, de minha parte, me submeter às versões sinistras que resultam de sua atividade.
Apenas que é preciso saber ler os jornais de modo psicanalítico. Ainda hoje parece aos jornalistas mais voluptuoso extrair uma farpa de uma fala minha contra Chico (ou vice-versa) do que examinar o sentido de toda essa dificuldade ter resultado num crescimento da produtividade dele como da nossa - além de um amadurecimento e aprofundamento da nossa amizade. Não é de forma nenhuma o caso de termos estado brigando no passado e estarmos posando de sempre amiguinhos agora. Chico foi, em todas as oportunidades, o mais elegante, discreto e generoso de todos os nossos colegas. Conheço-o bem e sempre soube que é isso que ele é, além de um virtuoso das rimas e dos ritmos verbais: um sujeito excepcionalmente elegante, discreto e generoso. À época mesma em que o enfrentamento de nossos projetos se deu, eu não tinha dele outra imagem. A imprensa e a "opinião pública", porém, preferiam crer numa disputa caricatural. A briga real com Vandré, por exemplo, tem sido, no entanto, perfeitamente ignorada pela imprensa, agora como então.
Simplesmente não era excitante o suficiente - e era real, ou seja, muito complexa para ser acompanhada. Toda energia precisava (precisa) estar dedicada a empobrecer as relações entre os "grandes". Com isso, força-se o esquecimento de uma conquista estética, profissional e humana de que o Brasil não poderia abrir mão. Esta a razão de meu tom revoltado quando abordo a questão.
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