Passou a freqüentar o programa e a fazer pequenos serviços, buscava um sanduíche, carregava um sofá, dava um recado, começou a conhecer as bailarinas e os mímicos, os músicos e cantores, e logo estava integrado informalmente na produção de Imperial. De prancheta na mão, anotando horários, nomes e telefones, o “coordenador” era Wilson Simonal, um mulato simpaticíssimo de Copacabana, que tinha começado como secretário de Imperial e incorporado o estilo, a fala, as atitudes e a malandragem de seu mestre.
Mas Simonal gostava mesmo era de cantar e logo se tornou um dos destaques dos programas de Imperial, misturando seu suingue natural com malandragem e cafajestice cariocas numa voz de timbre belíssimo, afinadíssima e com grandes recursos. Assim que Imperial conseguiu que ele gravasse um compacto na Odeon com o cha-cha-cha “Terezinha”, Simonal abandonou a coordenadoria. E Erasmo assumiu. Na corte de Imperial era um posto-chave.
Porque não só envolvia a produção dos programas de rádio e televisão, mas também da coluna que o gordo assinava na Revista do Rádio, e Erasmo aproveitava para colocar notas inventadas sobre seus amigos, como Renato e seus Blue Caps e Roberto, mas principalmente dele mesmo, do tipo “Erasmo Carlos namorando uma famosa atriz casada. Cuidado que o marido dela é brabo”. Ou: “Erasmo Carlos. , Aguardem este nome. Este rapaz da Tijuca vai dar o que falar. Anotem bem este nome.” Erasmo e Wanderléa se conheceram na Rádio Guanabara, onde ele era coordenador do programa de Imperial. Ela morava no subúrbio de Cordovil e estava divulgando o seu primeiro disco na CBS, mesma gravadora de Roberto e de Renato e seus Blue Caps, um grupo do subúrbio da Piedade que estava estourando no circuito dos bailes e começava a tocar em rádio e a vender discos. O que Imperial chamava de “música jovem” era um grande sucesso popular em São Paulo, com Celly Campello, Os Incríveis, Ronnie Cord, Demetrius e Tony Campello, e finalmente começava a conquistar os jovens cariocas, começando pelos subúrbios e a Zona Norte.
Com Imperial, Erasmo passou a levar uma vida dupla. À tarde cantava rock e aprendia os truques da produção de rádio e TV e à noite frequentava as festinhas de bossa nova nos apartamentos da Zona Sul, junto com a turma-bossa de Imperial, Nonato Buzar, Luvercy Fiorini, Orlan Divo, Roberto Jorge, uma espécie de terceira divisão da bossa nova.
Erasmo ficava calado num canto, se sentindo meio deslocado e envergonhado, mas cumprindo à risca as instruções de Imperial: “Você não fala nada, não diz nada, fica quieto. Se você falar em rock aqui te jogam pela janela.” Em Nova York, quando recebeu uma carta de Erasmo contando que tinha feito uma versão para “Splish Splash”, que Roberto tinha gravado e que a música estava estourando, Tim não acreditou. Não era mais “Erasmo Gilberto”. Agora ele assinava Erasmo Carlos.Tanto quanto a música, foram as brigas que aproximaram Roberto e Erasmo. Não entre eles, mas deles com os outros.
A primeira foi na frente do antigo Cassino da Urca, onde funcionava a TV Tupi e as meninas ficavam esperando os cantores, músicos, dançarinos e mímicos do “Clube do Rock”, com suas calças rancheiras e suas camisas coloridas. Gritavam os nomes, imitavam o que viam no cinema e na televisão, viviam a “febre do rock”, passavam telefones, mandavam beijinhos. E a rapaziada da Urca começou a não gostar da competição daquele pessoal mais cabeludo e mais mal vestido, começou a invejar a sua liberdade e intimidade com as bailarinas e uma tarde partiu para a porrada.
A “Turma da Urca”, com seus atletas de praia, era uma das mais temidas do Rio e dela faziam parte, para grandes ocasiões, até lutadores da Academia Gracie. Não foi preciso tanto: quando estavam esperando o ônibus junto com outros integrantes do “Clube”, Roberto e Erasmo olhavam o mar da Urca debruçados na amurada. Alguém chamou Roberto, tocando-o no ombro. Quando ele se virou, foi derrubado por um soco. Erasmo voou em cima do agressor e tentou dar-lhe uma cabeçada, aproveitando-se de sua altura. O cara se esquivou e o derrubou com um cruzado. No chão, imobilizou-o com um golpe de jiu-jitsu, montou em cima e encheu sua cara de porrada.
Ofegantes e machucados, consolados pelas bailarinas do “Clube do Rock” e sob os risos dos rapazes da Urca, pegaram o ônibus de volta para a Tijuca. Poucos dias depois, numa padaria de Copacabana, por causa de um cafezinho, o pau quebrou. Erasmo derrubou um adversário com um chute e quando o outro partia para cima dele, Roberto surgiu ameaçador com um pedaço de pau cheio de pregos. Acabou ali.
No lotação de volta para a Tijuca, combinaram fazer uma música juntos. Os dois achavam que tinham muita coisa em comum, além das pancadarias. “Mentira, cascata, bafo-de-boca, estão me gozando”, foi o que Tim pensou quando recebeu, em uma prisão de Daytona, uma carta de Erasmo contando que ele e Roberto tinham feito uma música juntos, — “Parei na contramão” — e que o disco era um big sucesso, que tocava no rádio o dia inteiro.
“Mãe, assaltei a padaria”, foi o que Erasmo anunciou aos gritos chegando em casa e jogando um bolo de dinheiro na mesa da cozinha. “Vai devolver e já!”, rebateu dona diva, apontando para o dinheiro e ameaçando Erasmo com a vassoura. “É mentira, é mentira, eu ganhei com a minha música”, ele respondeu, rindo e abraçando-a. Foi o primeiro dinheiro de verdade que Erasmo ganhou com música. Já ganhava uns trocados, parcos e irregulares, na produção de Imperial, e tinha ganho uma mixaria com a versão de “Splish Splash”. Mas com “Parei na contramão” — mesmo com os editores e sociedades de direito autoral roubando a maior parte — ele nunca tinha visto tanto dinheiro junto: daria para comprar uma lambreta. Mas Erasmo gastou tudo em roupas.
Roberto Carlos era um sucesso. Mas em Copacabana ninguém sabia.
Sucesso no rádio, nos programas de rock de Imperial e Jair de Taumaturgo, nos bailes de sábado nos subúrbios e nos clubes da Zona Norte, sucesso nos circos que percorriam a Baixada Fluminense. Com palhaços e malabaristas, alguns números de mágica e um ou outro animal domesticado, pequenos circos percorriam a periferia do Rio o ano inteiro. Armavam a lona e ficavam uma ou duas semanas. Para manter o interesse do público local, promoviam shows musicais com um artista diferente todas as noites. Nesses, Roberto era um sucesso, primeiro só se acompanhando ao violão, depois acrescentando um contrabaixo acústico tocado por Bruno e uma caixa de bateria tocada por seu secretário Dedé. Roberto já tinha até secretário. Mas no Beco das Garrafas ninguém sabia.
O compacto de Jorge Ben, com “Mas que nada” e “Por causa de você, menina”, explodiu como uma bomba de som e ritmo sobre o Rio de Janeiro, nas rádios, no Beco das Garrafas, nos apartamentos de Copacabana, na Zona Norte e nos subúrbios. Era um ritmo diferente, pesado como o rock mas sincopado como o samba e o ex-“Babulina” ainda cantava pronunciando “voxê” em vez de “você”. Tudo isto gerou polêmica e chamou a atenção para a originalidade e qualidade de sua música, promovida por sua gravadora como “Samba Esquema Novo”. Inicialmente desprezado pelos jazzistas, Jorge tornou-se uma das atrações do Beco das Garrafas e começou a reaparecer na
Tijuca com mulheres que o pessoal só via em revistas, cada semana com uma diferente, cada uma mais bonita do que a outra. Quando Tim saiu da cadeia em Daytona e foi deportado para o Brasil, voltou falando inglês, cantando como a negrada da Motown e viu que a música de Roberto e Erasmo era mesmo um sucesso. Mas achou que podia fazer coisa muito melhor. Em São Paulo, onde a “música jovem” tinha começado com Celly Campello, Tony Campello e Demetrius (que fizeram sucesso com versões de rocks italianos), a coisa estava pegando fogo com Ronnie Cord, Prini Lorez (que fazia covers de Trini Lopez), os Jet Blacks, Os Incríveis.
Grandes shows superlotavam cinemas nas manhãs de sábados e domingos nos bairros populares. Em alguns shows, não havia nem microfone: alguém segurava um megafone e o cantor soltava a voz. As jovens plateias paulistanas deliravam. Mas o Brasil ainda não sabia. A mulher de Vinícius, Lucia Proença, uma lady da sociedade carioca, tinha uma belíssima casa de veraneio em Petrópolis, cercada de jardins e às margens de um rio, com salões de mármore e mordomo uniformizado. E melhor ainda: mandou construir, entre as árvores e com projeto de Oscar Niemeyer, uma outra casa, exclusivamente para ela e Vinícius. Isto é, para Vinícius e seus jovens amigos: nós. No inesquecível verão de 1963, começaram as “Viniçadas”.
A casa na verdade era um enorme loft construído sobre pilares, com o assoalho todo em pinho-deriga, que era novo e exalava um perfume inebriante, tinha móveis finos e confortáveis, quadros lindos de Scliar e Di Cavalcanti nas paredes e janelões que se abriam para uma vista deslumbrante das florestas e montanhas da região serrana. E uma grande geladeira, que fazia gelo sem parar. Uma “Viniçada” começava sempre nas mesas da Confeitaria Copacabana, no centro de Petrópolis, no fim da tarde. Ali começavam as articulações e telefonemas e boatos entre garotos e garotas que gostavam de música e de festa. E eram amigos de Vinícius.
Vai ter, não vai mais, mudou de lugar. Entre torradas Petrópolis, coxinhas de galinha e drinques em geral, passavam-se as horas até que chegava a palavra esperada: vai acontecer. Ou então o próprio Vinícius ia ao Copacabana e entre um drinque e outro articulávamos uma casa, geralmente a do próprio poeta. Aí era só comprar o uísque e botar o violão no carro. Alguém tocava o violão, geralmente Francis, às vezes o próprio Vinícius, às vezes seu novo parceiro, Carlinhos Lyra, e todos cantavam juntos à medida que o tempo e as canções e os drinques passavam. Um sugeria uma música aqui, outra ronronava um pedido ali, e o poeta decidia. Foi ali que conhecemos as novas canções... que ele e Carlinhos tinham feito para Pobre menina rica, que nos deslumbraram e entusiasmaram tanto que até provocaram algumas discussões especulando se Lyra não seria um melodista superior até mesmo a Tom Jobim. Coisas da madrugada e da juventude, de discussões na cozinha, com o dia nascendo. O repertório das “Viniçadas” era basicamente a sensacional safra de músicas de Tom Jobim lançada no show do Au Bon Gourmet com João Gilberto e Os Cariocas, as novas de Carlos Lyra, um ou outro Caymmi ou Ary e já as primeiras parcerias de Vinícius com Baden Powell, um violonista que adoramos. Quando o dia já estava clareando e a neblina começava a encher o vale verdejante, o ritual final: Vinícius cantava o “Samba da bênção”, dele e de Baden Powell, e abençoava todos os presentes com versos improvisados, e todo mundo entendia que aquilo significava que a festa tinha acabado.
“É melhor ser alegre que ser triste, alegria é a melhor coisa que existe assim como a luz no coração...” No final daquele verão, em frente à aristocrática casa de dona Lúcia Proença, havia uma pilha de mais de um metro de altura de garrafas vazias e esverdeadas de Mansion House, abominável uísque nacional da época, como um monumento às “Viniçadas”. Em São Paulo, conheci um garoto tímido tocando um piano maravilhoso no Juão Sebastião Bar. Com 20 anos, Cesinha Mariano era profissional desde os 16 e tinha tocado durante dois anos na Baiúca, um famoso, talvez porque único, reduto de jazzistas na noite paulistana.
Era lá que tocavam Dick Farney e Johnny Alf, o trio de Moacyr Peixoto, irmão de Cauby, aonde iam artistas, gente de gravadoras, de teatro e de televisão. Na Baiúca, Cesinha tinha realizado o seu sonho jazzístico: tocava das oito da noite às quatro da manhã, de segunda a segunda, como pianista de um dos dois trios que se revezavam a noite inteira. A casa não ficava um minuto sem música, era lá que tocavam os grandes jazzistas de São Paulo, aonde iam Sérgio Mendes, Roberto Menescal, Eumir Deodato, Tom Jobim e Vinícius, onde davam canjas músicos famosos como o Modern Jazz Quartet. Na Baiúca, furioso com uma mesa barulhenta que não o deixava ouvir Johnny Alf, Vinícius disse que São Paulo era o túmulo do samba.
Ao lado da Baiúca havia um botequim, ponto de reunião de músicos, apelidado de Baiuquinha. Quando a Baiúca enchia, o porteiro Bira abria as duas janelas que davam direto para o boteco e podia-se ouvir de graça a melhor música das noites paulistanas. Uma noite na Baiuquinha, empolgado com a bossa-jazz do trio de César Mariano, Hermeto Paschoal, um albino alagoano recém-chegado à cidade, botou a cara na janela aberta, sacou de sua flauta e começou a improvisar vertiginosamente, protagonizando uma inédita e surpreendente jam session em estéreo, aplaudida na boate e ovacionada no boteco.
No Juão Sebastião Bar desde a noite de estréia, César formava o Sambalanço Trio com o baixista Humberto Claiber e um novo baterista vindo do Paraná, Airto Moreira. Era mesmo um grande balanço de samba, um suingue irresistível, a casa lotava para ouvi-los tocar com Hermeto e acompanhar Taiguara e Claudete Soares. Era o Beco das Garrafas de São Paulo. No Juão ele conheceu Solano Ribeiro, um ator e diretor do Teatro de Arena, socialista e nacionalista ardoroso como todo mundo do Arena, que o convidou para participar com seu trio do novo show que estava dirigindo, com um cantor e bailarino americano, que já tinha feito shows no Rio e na televisão. Um bailarino americano no Arena?Lennie Dale, que mal falava português, mas tinha se apaixonado pelo Brasil, queria mostrar num show como via nossas grandezas e misérias, as favelas cariocas, os sofrimentos e as alegrias do povo, cantando e dançando e misturando a Broadway e o samba.
Com ele, o Sambalanço, o pandeirista-passista Gaguinho e quatro bailarinas gostosíssimas. O gran finale era com Lennie, no alto de uma escada e de braços abertos, iluminado dramaticamente, como se fosse um Cristo Redentor olhando a favela, cantando o drama do “Sonho de Maria”, dos irmãos Valle. Sucesso estrondoso, seis meses em cartaz.
Depois o show foi para o Rio, onde o assisti várias vezes no Zum Zum, no célebre edifício 200 da Rua Barata Ribeiro. Um dos números era absolutamente sensacional, menos pela música e mais pelos efeitos de iluminação, num tempo em que os shows do Beco das Garrafas eram iluminados por lâmpadas coloridas em tubos de papelão. Lennie bolou uma coreografia marcada por várias quebradas rítmicas da música e por diversos breaks. Em cada um deles, a luz se acendia sobre ele num ponto do palco, congelado no meio de um movimento, como se fosse uma estátua. Por segundos e num ritmo vertiginoso, Lennie sumia no black-out e reaparecia em outra posição, em outro ponto do palco. Mas os ritmos eram tão complexos que para operar a mesa de luz foi necessário contratar não um iluminador mas um baterista: só um músico seria capaz de memorizar todos aqueles acende-apaga nas quebradas da música.
Vitor Manga, o baterista-iluminador, ensaiou exaustivamente com Lennie e tocava com ritmo e precisão as luzes e escuros do palco. A casa vinha abaixo, ninguém nunca tinha visto nada parecido: Lennie criou a luz estroboscópica com refletores comuns. Com seu sotaque carregado ele cantava, de Tom e Vinícius: “O morro não tem vez, e o que ele fez já foi demais, mas olhem bem vocês, quando derem vez ao morro toda a cidade vai cantar...”
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