A começar pelo nome em italiano, o novo disco de Caetano Veloso instiga. O conteúdo, que ele chama de transrock, não deixa ninguém indiferente. O dileto filho de Santo Amaro da Purificação nunca foi unanimidade nacional, porque nunca praticou o bom mocismo estilístico. São constantes as guinadas em sua obra. O show Zii e zie é a continuidade da última guinada, iniciada com Cê. Caetano aporta com a turnê de Zii e zie no Teatro Guararapes, domingo próximo, acompanhado pela Banda Cê (trio Marcelo Callado, bateria, Pedro Sá, guitarra, e Ricardo Dias Gomes, baixo e teclado). Por e-mail, ele concedeu esta entrevista, na qual comenta, entre outras coisas, Zii e zie, o comportamento do público diante de músicas que fogem ao padrão com que está acostumado ou bandas indies que tem escutado, como a Animal Collective e TV on the Radio.
JC – No show Cê, que vi pela primeira vez no TIM Festival, para um público pequeno, e jovem em sua maioria, notei que as novas músicas foram muito bem-aceitas. Já no Teatro Guararapes, observei pessoas saindo antes do final, certamente pela roupagem roqueira do show. Será que até hoje a guitarra elétrica e o rock não foram assimilados por uma geração que curtiu o pop de Roberto Carlos e dos Beatles nos anos 60?
CAETANO VELOSO – Lembro de que o Guararapes estava meio vazio – coisa que não aconteceu no resto do Brasil. No TIM Festival, assim como no Circo Voador, o show Cê se encontrava com um público parecido com ele: gente jovem ou, de todo modo, gente mais livre – e muitas vezes ligada na música criativa que os jovens fazem hoje no mundo. Em ambientes mais convencionais, as plateias ficavam um pouco frustradas. Mas não notei a saída de espectadores no Guararapes. Isso me faz pensar na quantidade enorme de pessoas que deixavam o teatro, tanto no Rio quanto em São Paulo, quando, de volta de Londres, eu cantava, já perto do final do show, Quero que vá tudo pro inferno e repetia dezenas de vezes a frase final.
JC – Seria isto um ranço antiamericano da geração “abaixo o acordo Mec-Usaid”?
CAETANO – Não creio. É uma gente que pode gostar de baladas de Whitney Houston ou de Stevie Wonder – e que talvez tenha passado a gostar mais do Roberto baladeiro católico do que do infernal rei do iê-iê-iê. Não há motivação política nenhuma visível na cara dessas senhoras com silicone e botox que arrastam os maridos para shows aos sábados.
JC – A pergunta é pelos comentários que escutei de muitos fãs sobre seu A Foreign sound, o disco de standards da música americana.
CAETANO – Você está relacionando reações antiamericanas por parte de pessoas politizadas quando eu gravei A foreign sound? Eu me orgulho muito de tê-lo feito quando os EUA eram mais odiados. Mas essa gente não tem nada a ver com os simpáticos caretas que se assustavam com o repertório e o som de Cê.
JC – Eu vi Zii e zie como uma espécie de, com licença da expressão, “linha evolutiva” do tropicalismo, na medida que Alegria alegria é uma marchinha, e Zii e zie é um disco de sambas, com outra vestimenta, mas sambas. É isto?
CAETANO – Zii e zie é mais “linha evolutiva” do que Cê. Acho até que é um show muito mais palatável para os caretas (o que não faz dele um show careta). Cê era de ruptura, Zii e zie é de reflexão, aprofundamento de observações, ampliação do espectro temático. O samba entra, sim, em parte, como a marchinha em Alegria, alegria. Não é que o samba precise disso (como a marchinha não precisava). Gostei de dizer que é “transrock” porque é o rock que é tranformado pelos transambas que compus e tocamos.
JC – Antigamente as pessoas conseguiam assimilar mais novidades, como por exemplo, o samba de batida diferente no violão, criado por Gil a partir de Ladeira da Preguiça, depois seguido por João Bosco em Bala com bala?
CAETANO – O Brasil é um País que pôde assimilar a bossa nova, o experimento radical de João Gilberto, e fazer dela um sucesso popular – e ainda exportá-la. O samba de Gil, herdeiro do samba-jazz do Beco das Garrafas e irmão do Fino de Elis e Zimbo, influenciou Djavan e João Bosco (embora em outros aspectos eles fossem mais fundamente influenciados por Milton). Há muita riqueza e complexidade para o país metabolizar, não exijamos demais dele nesse item agora.
JC – Em algums críticas que li, tanto de Cê quanto de Zii e zie, assinadas, em grande parte por jornalistas jovens, tem-se uma impressão que eles acham que por você estar na casa dos 60 é um estranho no ninho das guitarras plugadas na pedaleira e no formato indie deste dois discos. Ao mesmo tempo este pessoal não poupa elogios, nem deixa passar esta idéia quando escrevem sobre Bob Dylan, com seus 60 e tantos anos. Vocês dois revolucionaram a música de seus países ao deixar de dar exclusividade ao violão, em seus discos e shows. Por que estes dois pesos e duas medidas? Ainda o velho colonialismo cultural?
CAETANO – Se acontece isso (eu não percebi assim tão claramente) é, sem nenhuma dúvida, atitude colonizada por parte desses críticos.
JC – O disco foi concebido enquanto você comentava sua feitura, apresentava as canções no blog Música em Progresso. O progresso das canções foram realmente interrompidos com o fim do blog, a gravação do CD, ou você sente que algumas canções merecem ainda algumas, digamos, progressões?
CAETANO – Claro que as canções, ao longo da turnê, vão ganhando jeitos novos. Nós vamos tocando e com isso vamos descobrindo potencialidades nelas e nos arranjos. Começamos tudo com shows semanais no Rio – o que foi logo seguido pelo acompanhamento na internet. Pronto o disco, fechamos o blog. Mas as canções continuam vivas e mudando.
JC – Lendo o blog, realmente impressiona a quantidade de novas bandas e artistas, brasileiros e gringos, que você escuta. Esta, vamos dizer, “fome” de conhecer o que está se passando sempre existiu em você? Até que ponto escutar tanta música influencia sua própria música?
CAETANO – Eu ouvia muito mais música quando era jovem. E guardava mais na memória. No blog aparecem apenas alguns dos artistas e bandas que tenho ouvido, meio acidentalmente, nos últimos tempos, e de quem temos falado – eu os caras da banda e amigos outros. Por exemplo: saí com dois amigos americanos em Nova Iorque, há uns dois anos, e vi uma banda chamada Animal Collective, tocando ao ar livre, debaixo de chuva fina, na beira do cais. Tinha uma plateia com pinta de antenada. Gostei. Comprei um CD. Ouvi em casa. Um dia li na Folhateen sobre TV on the Radio. A banda veio ao Rio e um dos caras quis falar comigo: conhecia minha música e dizia admirar. Acho que era o Tunde. Daí fui ouvir bem o disco deles. Gostei demais.
Faz mais de um mês, Hermano Vianna me mandou artigo de Sasha Frere Jones na New Yorker elogiando uma banda paulista chamada babe, terror (assim mesmo, em minúsculas e sem que a gente saiba se as palavras são inglesas ou portuguesas: o próprio cara – é banda de um homem só – escreveu texto para o Frere Jones explicando o que “terror” significa em português, como se em inglês não existisse a palavra). Fui ouvir no MySpace. Fascinante. Li no The Guardian que o som dele tem a ver com o do TV on the Radio e com o de Animal Collective. Eu próprio pensei até em Araçá azul, embora sinta que o paulista, esse, não pensasse nisso. Li depois que ele fala em Mutantes e Clube da Esquina. Contei tudo isso para você entender como é que chego às coisas acidentalmente e como elas entram em contexto na minha cabeça. Como essa histórias várias pintam. Mas não sento mais para ouvir discos por horas a fio. Finalmente, tudo influencia minha música. Mas não me sinto muito competente para ser influenciado por gente boa.
JC – E a banda Cê, até quando você continuam trabalhando juntos?
CAETANO – Quem sabe a gente completa uma trilogia?
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