Com a vitória no festival com “Arrastão”, o lançamento de seu primeiro disco e o sucesso de “Arena conta Zumbi”, Edu Lobo se tornou uma das estrelas da nova geração: foi contratado pela Record, ganhava salário, se apresentava de smoking em “O fino” e em outros programas musicais. A Record tinha contratos de exclusividade com praticamente todas as grandes estrelas da música brasileira, de todos os estilos e gerações. Quem não estava na Record não estava em lugar nenhum. Nos contratos, os artistas também assumiam o compromisso de se apresentar todo mês no “Show do dia 7”, que era o número do canal da Record em São Paulo. Todo o elenco, de todas as facções e gerações, era obrigado a participar, os camarins pegavam fogo. Mas, ao contrário de Elis, Nara Leão, a musa da oposição, se dava bem com o pessoal da “música jovem”.
No Rio, foi anunciado que Nara sairia do show “Opinião” e seria substituída por uma jovem cantora de 18 anos, que a própria Nara tinha conhecido e escolhido na Bahia. Naquela noite, na última semana de 1964, subi as escadas rolantes que não rolavam até o Teatro de Arena e me juntei à multidão para a reestréia de “Opinião”, o maior sucesso teatral do ano. Com os cabelos crespos puxados para trás e com as mesmas calças caqui e camisa masculina vermelha de Nara, com seu nariz adunco e suas mãos de dedos longos e expressivos, vi Maria Bethânia pela primeira vez. Como poucos, achei-a de estranha e misteriosa beleza, entre muitos que se espantaram com a dureza de seus traços. Sua voz grave e potente maravilhou a todos pela força e delicadeza, cantando as canções de João do Vale e de Zé Keti com vigor e emoção, e apresentando pela primeira vez uma bela música, a primeira que o Rio ouviu, de seu irmão Caetano Veloso.
“... mas a flor amada, é mais que a madrugada, e foi por ela que o galo cocorocou...” Maria Bethânia se tornou uma estrela da noite para o dia no Rio de Janeiro, no início de 1965. Tudo nela era diferente de todas as outras, muito diferente: voz, figura, gestos, sexualidade, sotaque baiano. Atitude. Voltei muitas vezes ao teatro para vê-la e ouvi-la e uma noite, levado por Dory Caymmi, troquei algumas palavras com ela no camarim, quando também fui apresentado a seu irmão, magro, tímido e delicado, que eu já admirava por “Boa palavra”, finalista do festival, e agora pelo cocorocar do galo. Caetano sorria com grande doçura e irradiava sensibilidade e inteligência.
Rapidamente Bethânia conquistou uma legião de fãs de todos os sexos. Como Jerry Adriani, um dos mais disputados galãs da “música jovem”, que passou a ir buscá-la todas as segundas-feiras na saída das “Noitadas de samba” que Thereza Aragão produzia no Teatro de Arena e Bethânia freqüentava. No Aero Willis vermelho de Jerry, eles passeavam pela cidade, comiam e bebiam, riam e conversavam, se abraçavam e se beijavam, quase namoravam. Nara estava cansada de carregar bandeiras e vocalizar protestos, estava cansada de dar opinião. O namoro com Ruy Guerra tinha terminado: Nara também não agüentava mais a falta de atenções e de romance, a dureza e o “espírito revolucionário”, e virou o jogo: começou a namorar o diplomata Zóza Medicis e uma noite, na porta da boate Zum Zum, em Copacabana, me contou feliz que estava encantada com alguém que a levava a bons restaurantes, abria a porta do carro, puxava a cadeira para ela, que a tratava como uma lady. “Pela primeira vez na vida”, disse rindo. Pouco depois Nara provocou espanto e comoção nas hostes oposicionistas da música brasileira.
Acusada pelos homens de alta (ou baixa) traição e invejada pelas mulheres, a musa começou um namoro com o “arquiinimigo” Jerry Adriani. Esse Jerry Adriani, hein? Jovens tardes de domingo Em São Paulo, a Record transmitia, de graça, jogos de futebol do campeonato paulista nas tardes de domingo. Considerava-os eventos públicos, não pagava nada e vivia às turras com a Federação Paulista e os clubes. Até que um mandado de segurança impediu a Record - que era da família do megacartola Paulo Machado de Carvalho, o “marechal da vitória” da Copa de 58 — de transmitir os jogos e o lucrativo horário nas tardes de domingo ficou vazio. Por pouquíssimo tempo. A emissora já vinha fazendo sucesso com “O fino”, com as novas estrelas da MPB, como Elis Regina, Jair Rodrigues e Wilson Simonal, e os musicais estavam na moda. Nada mais natural para a Record do que dobrar a parada, lançando um programa de “música jovem” e popular para competir com “O fino”. Uma idéia audaciosa da nova agência de publicidade de João Carlos Magaldi, Carlito Maia e Carlos Prosperi, que acompanhavam atenta e entusiasmadamente a revolução dos Beatles e do rock na Inglaterra e nos Estados Unidos, a vertiginosa transformação no comportamento dos jovens e sua crescente influência na sociedade e no mercado consumidor. E achavam que Roberto Carlos tinha carisma e potência para se tornar um superstar e que a hora era boa para dar aos jovens brasileiros a sua própria música, sua moda, sua dança e seus Beatles. O seu programa de televisão.
Para comandar a novidade, eles queriam um trio, Roberto, Erasmo e Celly Campello. O problema era que a primeira estrela da “música jovem” brasileira, depois de breves anos de fulgurante sucesso, no auge da popularidade, com 23 anos abandonou a vida artística para se casar e ir morar em Campinas. De nada adiantaram as propostas milionárias de Marcos Lázaro: Celly e seu marido eram irredutíveis. A escolha da companheira de Roberto e Erasmo seria entre Wanderléa ou Rosemary, uma lourinha muito bonitinha, uma bonequinha suburbana que cantava baladas italianas em português. Rose era mais bonita, mas Wanderléa, além de ótimas pernas e de dançar com muita graça, cantava músicas mais alegres, mais adequadas para animar um programa de auditório e foi a escolhida. Roberto, Erasmo e Wanderléa participaram de uma reunião com o pessoal da agência, a direção da Record e Marcos Lázaro, que negociava todas as contratações da emissora. Na primeira proposta da Record, a Roberto foi oferecido um salário de US $ 4 mil e a Erasmo e Wanderléa US$ 3 mil cada, mas ele exigiu que os salários fossem iguais, concordando em diminuir o seu. Como um gentleman, e um homem de negócios, Paulinho Machado de Carvalho aumentou os de Erasmo e Wanderlea para o mesmo de Roberto e os contratos foram assinados no ato, em clima de grande euforia e imensas esperanças. O programa iria ao ar às cinco da tarde de domingo, ao vivo, e se chamaria “Jovem guarda”, que era o título da coluna que o jovem Ricardo Amaral mantinha na Última Hora com grande sucesso, muito atrevimento e eventuais brigas e broncas com a brotolândia paulistana por seus comentários e indiscrições. Era a primeira coluna “jovem” da imprensa brasileira, uma invenção de Samuel Wainer, onde o futuro empresário Ricardo Amaral começava sua carreira como jornalista irreverente e lançava as novas gírias, personagens, lugares e modas.
A agência e a Record bancaram sozinhas os programas, até conseguirem convencer os primeiros anunciantes do fabuloso mercado que se abria com aquele canal direto com a juventude consumidora. Em pouco tempo, havia uma fila de patrocinadores e o programa se tornava muito mais rentável do que “O fino”. Os planos de Magaldi, Maia & Prosperi eram ambiciosos: transformar o pessoal da “música jovem” em ídolos nacionais, fabricar calças, camisas, chaveiros, bonecos, bonés, brinquedos e tudo o mais que pudesse ser comercializado com a marca “jovem guarda”, como Carlos Lyra e Ronaldo Bôscoli pensaram um dia em fazer com a bossa nova. Como nem Carlos Imperial tinha ousado sonhar. Roberto e Erasmo se mudaram para São Paulo e foram morar no Hotel Lord, no Largo do Arouche, e Wanderlea no Normandie, na Avenida São João, com a mãe e os irmãos, todo mundo por conta da Record.
Domingo ao meio-dia todos estavam na televisão para a reunião de produção e o ensaio. Com os cabelos crespos alisados em tentativas heróicas de imitar as franjinhas dos Beatles e vestidos com imitações de seus terninhos justos e gravatinhas finas, com os pés apertados em suas botinhas, Roberto e Erasmo esperaram nervosos a hora de entrar em cena. Quando a cortina abriu, uma explosão. Brancas, negras e orientais, ricas e pobres, feias e bonitas, as meninas que gritavam o tempo todo representavam a diversidade étnica e social de São Paulo, com garotas da sociedade paulistana lado a lado com as filhas de suas empregadas e dos operários das fábricas de seus pais, todas gritando por Erasmo, Roberto e Wanderléa e cantando junto com eles seus sucessos. E os de Wanderley Cardoso e Jerry Adriani, de Renato e seus Blue Caps, dos Vips, de Leno e Lilian e dos Golden Boys.
O sucesso foi estrondoso e imediato, as lotações do teatro se vendiam com uma semana de antecedência. Na saída, as estrelas e os músicos tinham ampla escolha entre a múltipla oferta de admiração e carinho das fãs. Ou depois, na boate da moda, o Moustache, onde as menininhas da sociedade dançavam e flertavam ao som dos Beatles e de baladas italianas, onde os personagens da “Jovem guarda” de Ricardo Amaral encontravam os da “Jovem guarda” da TV Record. Dançavam, flertavam, conversavam e pouco mais do que isto: aqueles cabeludos cheios de colares e anéis e roupas esquisitas eram diferentes dos jovens bem vestidos e penteados que as acompanhavam, mas não entrariam em suas casas nem nos clubes que elas frequentavam, não sentariam em suas mesas.
As noites terminavam no Cave, reduto de músicos e da boêmia “profissional” e ponto de encontro do fim de noite paulistano, onde se dançava não ao som dos Beatles, mas de James Brown, onde as garotas de programa iam se divertir com os amigos e namorados depois do trabalho e o pessoal da “Jovem guarda” era muito bem recebido. Mas o Hotel Lord não deixava os hóspedes subirem acompanhados. A clássica manobra via restaurante do segundo andar não funcionava, rigidamente policiada pelo hotel. Quem os salvava era a Baiana, simpática dona de um casarão de alta rotatividade na Rua Riachuelo, que alugava seus seis quartos para casais sem-cama, num tempo em que não existiam motéis. Na sala de visitas do térreo, ela instalou um bar onde sua clientela bebia e conversava enquanto esperava que vagasse um dos quartos do segundo andar. Cada quarto era decorado com cortinas, tapetes e móveis antigos e pesados, sedas e rendas finas, e as camas cheias de almofadas tinham dosséis, que faziam Roberto, Erasmo, Simonal, Jorge Ben e Tim Maia se sentirem no século XVIII.
Com o sucesso do programa, dos discos e dos shows, o dinheiro começou a entrar, mas Erasmo não confiava em bancos nem em cheques: guardava tudo que ganhava em erva viva numa gaveta de seu quarto de hotel. Dois meses depois da estréia de “Jovem guarda”, comprou seu primeiro carro, um Volkswagen verde metálico, e pagou à vista. E em dinheiro. Roberto e Erasmo foram visitar um apartamento que estava para alugar na Avenida Paulista: morar no hotel estava ficando chato, era frio, impessoal e cheio de restrições, e a Baiana era uma alternativa salvadora, mas estava saindo muito cara. O apartamento era uma beleza, com uma grande sala envidraçada dando para o trânsito que enchia a Avenida Paulista, com o skyline de São Paulo ao fundo, os quartos eram ótimos, mas o aluguel assustou. Como o contrato do “Jovem guarda” era de seis meses e ninguém sabia o dia de amanhã, assinar um compromisso de um ano por aquela quantia seria uma responsabilidade que eles não poderiam assumir.
Logo depois Roberto mudou-se para um pequeno apartamento, com o amigo-secretário Luiz Carlos Ismail, e transformou um dos quartos em estúdio, de onde gravava um programa diário de uma hora para a rádio Jovem Pan, divulgando a “Jovem guarda”. Erasmo trocou o fusca por um Karman-Ghia, mas continuou morando no Lord. Três meses depois, alugou sua primeira casa, no Brooklyn, e chamou Jorge Ben para dividir o aluguel.
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