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sábado, 27 de fevereiro de 2016

A MÚSICA BRASILEIRA QUE ESTÁ NO JAPÃO

Por Antônio Carlos Miguel






Essa pauta é inspirada num post da cantora e compositora Joyce Moreno no Facebook no qual comemora uma notícia que recebera do brasilianista Kepel Kimura: a Universal japonesa vai lançar em junho um grande pacote de música brasileira em CD, ao preço de U$10 a unidade. “Como me diz Kepel, sai mais barato do que comprar em MP3 e o som é muito melhor. Já dei uma olhada e é excelente. É por isso que eu amo o Japão", completa Joyce, que também compartilhou o link da loja Meurido com os 100 títulos, boa parte deles fora de catálogo no Brasil.

Há anos, Joyce e tantos outros artistas brasileiros (nos mais diferentes gêneros, do choro ao… heavy metal) têm visto como o mercado japonês resiste ao fim do disco. As lojas continuam de pé – até a Tower Records, que foi varrida do mapa em seus país natal, os EUA – e cheias de consumidores. Enquanto isso, às vésperas da Copa do Mundo, turistas que além de futebol gostam de música brasileira terão que penar muito para achar algo além dos óbvios e quase sempre descartáveis sucessos do momento. Aproveitando o mote, quatro pesquisadores/produtores responsáveis pelas principais séries de relançamentos de música brasileira, Carlos Alberto Sion, Charles Gavin, Marcelo Fróes e Rodrigo Faour, e também um executivo que passou pelas gravadoras multinacionais, Marcelo Castello Branco, comentam a notícia de Joyce e Kepel (que, além de conhecer tudo sobre música brasileira, toca zabumba num grupo de forró japa) e respondem a questões que receberam por email.

No Brasil, as multinacionais que sobraram (Sony, Universal e Warner) e também a Som Livre não têm uma política constante de reedição. Independentemente do valor cultural, ainda é viável comercialmente o investimento em acervo?

CARLOS SION: “As leis de publishing tão limitadas no Brasil impedem que certos discos clássicos da MPB estejam no mercado brasileiro. Porém, no Japão (ou na Europa), uma vez que o título tenha saído no formato antigo, seja 78 rotações, LP ou K7, eles lançam com autorização das editoras ou das sociedades autorais com sede no Japão. Já nos anos 1980, quando estive por lá em turnê com Antonio Carlos Jobim, nos surpreendemos com vários discos fora do mercado brasileiro editados pelas gravadoras instaladas no Japão”.

CHARLES GAVIN: “Todos os projetos que fiz foram rentáveis – oxigenaram os catálogos e recolocaram no mercado não somente discos, mas também composições que haviam caído no total esquecimento, o que proporcionou uma série de regravações feitas por gente de peso da MPB. Um exemplo: a série 'ODEON 100 anos', que produzi para a EMI, com 100 títulos. Vendeu muito bem – estava em 130 mil cópias vendidas quando recebi o último demonstrativo”.

MARCELO FRÓES: “Para o selo Discobertas, que não tem dezenas de funcionários, compensa fazer um projeto de baixa tiragem. Para as majors, infelizmente não. É prejuízo botar funcionário para trabalhar em projeto que não vá vender muito. Eles naturalmente acabam ocupando suas horas de trabalho com produtos mais rentáveis. Essa coisa de gravadora japonesa relançar música brasileira em larga escala não é de hoje, pra eles é interessante fazer mil unidades de 100 títulos. Por aqui, continuam focando em um produto que venda 100 mil unidades. A matemática é a mesma, mas infelizmente a diferença é que eles lá ainda possuem lojas de discos que absorvem esses 100 diferentes títulos. Aqui, os grandes magazines e os condomínios dos grandes shoppings inviabilizaram a vida do pequeno lojista nessa última década, mas a volta do vinil fez abrir novas lojas de disco para colecionadores e essas lojas já estão vendendo CD – mas o processo seletivo é grande: só vendem CD que interessam a colecionadores, pesquisadores etc., não é qualquer CD que encontra espaço. É preciso ter qualidade e inteligência numa reedição”.

MARCELO CASTELLO BRANCO: “O Japão é um planeta à parte, onde os extremos se desencontram, a modernidade e a tradição, a vanguarda e o conservadorismo. Pouca coisa é rentável. Voltar a falar do físico agora é nostalgia improdutiva.”

RODRIGO FAOUR: “Não sei quanto meus produtos venderam porque sempre ganhei por projeto e não por royalties, mas sei, por exemplo, que a caixa da Dolores Duran vendeu 1.500 unidades só nos primeiros três meses.”

No caso específico da Universal brasileira, num primeiro momento, a companhia parece optar por coletâneas, sem explorar o recentemente incorporado acervo da EMI. Como vocês encaram isso?

SION: “Ainda está em andamento todo o processo de análise dos acervos, uma vez que, juntas, as duas empresas somam um catálogo enorme. É necessário levantar os aspectos legais como direitos contratuais e autorais, de artistas, músicos, designers, fotógrafos; ter uma política mais efetiva em relação ao orçamento de marketing estratégico, assim como de diversificação de pontos de venda, o que torna o processo ainda mais lento. Há uma década, realizei para a EMI a caixa ‘Caymmi Amor e Amar’, com todo o acervo do artista na empresa, enquanto, na Universal, fizemos caixas de Chico Buarque, Elis Regina, Baden Powell, entre outros, todas com boa venda. Mas, nos últimos tempos, as questões legais têm emperrado muitos projetos. Se uma música tem três autores e um deles não tem herdeiro ou editora, a música tem que ser retirada do disco. É um absurdo! Poderíamos ter a opção de depósito em juízo ou direitos reservados no caso de surgirem herdeiros. Todo o acervo do mestre Pixinguinha na Sinter (selo da Universal) está parado por esse motivo, o que acho um crime cultural.”

GAVIN: “Eu espero que essa política se modifique – lá estão profissionais experientes, que sabem muito bem o que está em suas mãos. É bom relembrar que o catálogo da Universal Music reúne fonogramas das gravadoras Sinter, Companhia Brasileira de Discos (mais tarde Polygram, com os selos Philips, Polydor e Fontana), Elenco, Forma, Ariola (no Brasil) e agora EMI/Odeon e Copacabana. É o maior acervo da música brasileira do século 20 – requer uma gestão coerente com sua relevância cultural.”

FRÓES: “Como colecionador, sempre vi com preocupação as fusões. Desde quando a Warner comprou a Continental, passando pela compra da RGE pela Som Livre e a fusão de Sony e BMG. Agora é um novo capítulo, essas fusões limitam cada vez mais a exploração de catálogo.”

CASTELLO BRANCO: “Não sei qual é a estratégia e me parece prematuro comentar. É um mercado nervoso, de muitas prioridades simultâneas. Cobrar uma estratégia para o catálogo no formato físico me parece um retrocesso.”

Se o Japão é exceção como o último país do disco físico, a oferta digital de música brasileira também ainda é muito pequena. Seja no hegemônico iTunes ou em serviços por streaming, que começam a tomar conta do negócio (Spotify, Rdio, Deezer, etc.), o que predomina é o produto da vez. Quem procurar por catálogo (e estamos falando de mais de um século de música brasileira gravada) vai achar no YouTube (com qualidade nem sempre boa) ou junto a aficionados que trocam arquivos (algo que a indústria tacha de ilegal). Então, já que o mercado físico dá seus últimos suspiros, resiste em nichos (incluindo o do renascido vinil), por que as grandes gravadoras não negociam diretamente seus catálogos? Seja explorando os nichos de vinil, CD e DVD ou agindo digitalmente, vendendo download diretamente, criando "clubes da música" para download ou streaming.

SION: “Os formatos não importam enquanto não houver uma ‘nova ordem’ em relação aos publishings. Nunca vai faltar gente que goste de música, seja em seus computadores, tablets ou celulares, ou em CDs e LPs, e temos outros mercados a conquistar. Porém, é necessário ter algum conhecimento artístico e cultural além das planilhas de custos. Mas há uma banalização das áreas de marketing estratégico em algumas empresas, nas mãos de gerentes de vendas sem expertise.”

GAVIN: “É difícil saber os rumos que o mercado irá tomar. Acredito que o iTunes Brasil tem um papel decisivo nesse processo – a oferta de um discoteca não apenas básica, mas compatível com a importância da música brasileira. Sou otimista – acredito que, com vontade política, a gente consiga unir os interesses de gravadoras e sites de comercialização digital com os do público que quer conhecer e comprar discos e faixas de outros gêneros e de outras épocas da música brasileira. Espero que as gravadoras voltem a me receber na condição de colaborador porque, neste momento, nem meus emails elas respondem... Em relação à segunda parte da pergunta, neste momento, não há uma política que considere tais possibilidades numa escala maior nas grandes companhias. Mas é fato que pequenas ações têm sido realizadas. A Universal Music, por exemplo, tem licenciado alguns de seus títulos para a que a gravadora Deckdisk relance-os em vinil – um trabalho primoroso, medalha de ouro, certamente. O selo do pesquisador e produtor Marcelo Froes, Discobertas, também vem realizando um trabalho excepcional, revitalizando catálogos de vários selos e majors, relançando discos raros, absolutamente impossíveis de se conseguir antes (aplausos pra ele também). Mas isso é muito, muito pouco quando pensamos na grandiosidade e importância da produção artística da música brasileira desde quando começou a ser gravada. Quando consideramos este imenso, gigantesco patrimônio cultural do Brasil, caímos na real de que ainda há muito por fazer.

FRÓES: “O universo fonográfico brasileiro sob controle de gravadoras – grandes, médias ou pequenas – é muito maior do que qualquer oferta para streaming ou download dará conta. O volume é monstruoso. Desde a década de 1930, se produz anualmente milhares de produtos, que acumularam milhões de fonogramas. Acredito que só se digitalize o óbvio, aquilo que foi sucesso ou que, por algum motivo, saiu em CD. O resto, que eu chutaria 80% no pré-sal da música analógica, vai depender de projetos patrocinados ou coisa semelhante. As gravadoras jamais terão verba para bancar a coisa de uma forma total. Como eu disse, 80% do material produzido na era do analógico jamais chegou ao CD nas reedições dos anos 90 pra cá. A maior parte do que se fez entre os anos 30 e 80 está estocada em fitas guardadas em arquivos terceirizados.”

CASTELLO BRANCO: “Acredito que a tendência seja de mais streaming e rádio x download, cada vez mais conveniência. O catálogo brasileiro vai estar presente na medida de sua utilização, o metro quadrado virou espaço na nuvem congestionada. Esse serviço já existe e, a partir (e com a exceção) do iTunes, quase todas as outras plataformas digitais e serviços existentes têm as gravadoras como acionistas, além da sessão de conteúdo. Com três multinacionais dominando o mercado, nenhum serviço triunfa sem seus repertórios. Então, a proposta já é vigente e a tendência é essa (disponibilizar o máximo de conteúdo), mas com outros sócios de tecnologia e mercado financeiro. O custo pra rodar uma plataforma dessas é imenso! O Spotify acabou de fazer um acordo com a Sprint nos Estados Unidos para aumentar sua base de assinantes. Tudo parece simples, mas a realidade é bem mais complexa."

FAOUR: “Estou bastante cético em relação ao futuro das gravadoras. Não tenho trabalhado muito com elas porque o mercado está péssimo. Pouca coisa vende e infelizmente elas não têm tido estrutura (ou talento) para se reinventarem. Quase ninguém mais vai à loja de discos, mas à saída de um show caloroso muita gente compraria discos pela empolgação. Se houvesse um cadastro de fãs que realmente compram CDs, talvez se pudesse fazer um tipo de parceria com o consumidor, sei lá. Vivemos uma fase de transição de formatos na música bastante decepcionante. Existe pouca grana pra investir em música, seja em discos inéditos ou reedições, uma mídia viciada em standards do passado e porcarias atuais, e uma pirataria cada vez mais atuante para o bem e para o mal. A forma de ouvir música mudou, o valor do conceito ‘álbum’ mudou, os valores da sociedade mudaram também. Música hoje é um ‘detalhe’. Pra mim, o que eu aprendi que era música quando eu era pequeno não é a mesma coisa que as pessoas consideram ‘música’ hoje. É só ver a lista das 100 mais tocadas no ano passado. Antes, mal ou bem, havia espaço para o brega e o chique. Hoje só há espaço para o ultrabrega. A MPB e afins viraram underground na indústria cultural, apesar de ainda haver muita gente que goste de uma música popular, sim, popular, porém mais elaborada e menos superficial."

PS: A pauta também foi enviada nesta segunda-feira às citadas Som Livre, Sony, Universal e Warner, que ainda não se manifestaram. Elas poderão responder no sábado, já conhecendo as posições do quinteto que participou. Em relação aos discos que ilustram o texto, foram capturados no site japonês e estão entre os cem CDs brasileiros que sairão na Terra do Sol Nascente e da Música Perene.

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