INTERMEZZO BAIANO
Os meses (quase um ano que passei em Salvador foram felizes e sem perspectivas. Íamos para Itapuã passar dias inteiros na praia. Fernando Barros, meu colega do Severino, tinha uma casa de veraneio que sua mãe quase não usava fora de temporada e nós às vezes passávamos dois dias seguidos lá. Os pais de Dedé eram sempre informados mentirosamente por uma amiga dela de uma viagem à ilha de Itaparica ou ao recôncavo que as duas fariam juntas. À noite, íamos ao Abaeté beber cachaça e cerveja e cantar olhando a lua cheia. Eu e Dedé namorávamos nas dunas, na casa de Nando Barros, na praia. Nando era um amigo muito doce e generoso. Tinha também um senso de humor muito peculiar.
Mas eu sentia uma certa ansiedade em relação ao futuro. A música tinha se insinuado como profissão. Na verdade, com Bethânia nacionalmente conhecida e tendo gravado um samba meu, tinha se imposto como um caminho a seguir. Cinema dependia de uma disposição para levantar financiamento - e de uma desinibição no trato com pessoas variadas, todas com razões para estar tensas ante a iminência de um filme a se produzir - que eu não tinha. A pintura fora deixada de lado por eu então considerar melancólica a alternativa entre fazer coisas para burgueses pendurarem nas paredes ou fazer coisas que ninguém pudesse pendurar em lugar nenhum. As questões propriamente plásticas foram perdendo sentido para mim. Eu teria sido um defensor apaixonado do expressionismo abstrato. O diretor de teatro João Augusto Azevedo e o ator Équio Reis me mostravam reproduções de Lautrec, Matisse, e Picasso (o MAMB -que me mostrara peças de Degas e Van Gogh – fora fechado pelos militares e eu continuava a admirar as telas de Manabu Mabe e Antônio Bandeira. Mondrian era um caso à parte: aqueles quadrados e retângulos vermelhos, azuis e amarelos pareciam feitos a régua nas reproduções e eu, embora me perguntasse, por essa razão, se aquilo podia ser um caminho ou um fechamento, reconhecia aquelas estruturas por trás de tudo o que chamávamos de moderno: prédios, móveis, roupas - e as notas sem vibrato do cool e da bossa nova. A pesquisa ousada de Lygia Clarkpassara quase sem nota: minha amiga Sônia Castro comentou um dia no ateliê que o abandono total da pintura como a conhecíamos a enchia de dúvidas. Lembro nitidamente a menção da palavra pedra na descrição que Sônia fez do que viu de Lygia numa grande exposição coletiva do MAMB que eu, não sei por quê, não visitei. Parece-me que ela - que estava terminando um quadro abstrato que me parecia belo e que a levava às lágrimas enquanto era pintado-se perguntou se valeria a pena abandonar o óleo, a tela e os pincéis e participar de uma exposição com um "saco plástico cheio de água com uma pedra em cima". É curioso que eu tenha tal lembrança, pois não sei o que poderia Lygia estar expondo em Salvador em 63-4. Acho que a frase de Sônia era uma espécie de suposição exagerada, mas é curioso que o que Lygia veio a fazer (e que eu homenageei numa canção de 71 - "If you hold a stone" tenha tido tanto a ver com essa descrição. O comentário revelava uma Sônia mais intrigada do que reativa - e me fascinou: eu era, de fato, o cara que gostava de coisas loucas, como me disse o colega santamarense que me apresentou a musica de João Gilberto.
De todo modo, eu deixava o acaso construir meu destino e, em 65, mais constatava que a música decidia-se por impor-se a mim do que decidia-me eu próprio por ela. Eu oferecia, no entanto, uma certa resistência. Em primeiro lugar, depois da temporada em São Paulo, eu não tinha vontade de sair da Bahia. Depois havia minha (até hoje não negada) autêntica modéstia musical. Eu sou relativamente tímido e sou capaz de humildade, mas não sou modesto. Não tenho vontade de me desvalorizar (ou de me valorizar através do estratagema de subestimar-me para provocar protestos) nem tenho vergonha de reconhecer explicitamente valor ou grandeza no que eu faça ou mesmo em algumas características pessoais. Mas considero minha acuidade musical mediana, às vezes abaixo de mediana. Isso mudou com a prática, para minha surpresa. Mas não me transformou num Gil, num Edu Lobo, num Milton Nascimento, num Djavan. Reconheço, no entanto, que tenho urna imaginação inquieta e uma capacidade de captar a sintaxe da música pela inteligência que me possibilitam fazer canções relevantes. Sobretudo encontro-me cantando: o prazer e o aprofundamento do conhecimento que o ato de cantar me proporciona justificam minha adesão á carreira. Mas aí também minhas limitações musicais se fazem sentir. Minha primeira apresentação pública, aos oito anos, deu-se num programa de calouros da rádio de Santo Amaro em que eu, ao ouvir a introdução feita pela orquestra da marchinha Toureiro de Madri, por mim mesmo escolhida, entrei cantando em outro tom, o que me desclassificou imediatamente. Na adolescência, porém, eu já era o cantor favorito de todo o mundo no ginásio, mas ainda hoje temo errar a tonalidade como no episódio do "Toureiro". Imaginei -me ensinando filosofia para secundaristas. Ou inglês. Eu voltaria a estudar para poder ensinar. A carreira de professor sempre me atraiu. Estar entre jovens e explicar coisas, ter um grupo de pessoas admiradas e gratas pelo meu saber era uma fantasia frequente. Mas meus amigos me empurravam para a música e para o Rio. Gil, como já disse, exigia minha participação. Um dia, Solano Ribeiro veio a Salvador à procura de canções para inscrever num festival que ele dirigiria na Tv Excelsior de São Paulo. Ele queria que eu indicasse jovens talentos a serem descobertos e fazia questão de levar uma canção minha. Achei gozado ser tratado como alguém já estabelecido na profissão. Entreguei-lhe a canção "Boa palavra", que eu tinha feito a partir de refrões de sambas-de-roda do vale do Iguape. A canção terminou sendo classificada e chamou a atenção de gente de peso. Mas minha ida para o Rio se deveu mais que tudo à pressão feita por Roberto Pinho. Roberto me fora apresentado por Alvinho Guimarães (é notável como Alvinho Guimarães parece ter me apresentado a tudo e a todos!) como alguém que tinha idéias originais e um coração grande e puro. Ele me impressionou desde os primeiros encontros pela certeza com que proferia suas observações a um tempo realistas e proféticas. Ele fora formado pelo professor Agostinho da Silva, o fascinante português fugitivo do salazarismo e que via no Brasil um esforço de superação da fase nórdico-protestante da civilização. Era um paradoxal sebastianismo de esquerda que se nutria de lucidez e franco realismo e não de mistificações. Se aquilo era um ardil da saudade do catolicismo medieval lusitano ou um modo de expressar a intuição de uma via independente, não ficava claro para mim. Eu elegia conscientemente o aspecto da trilha inexplorada, embora não deixasse de me entregar a supersticiosas constatações de coincidências entre as revelações e os fatos reais. Roberto defendia Jung contra Freud (nunca me convenceu) e, naturalmente, indicava o sagrado e o profano de Mircea Eliade.
Logo estaria de moda o despertar dos mágicos de Jacques Bergier e Louis Powels, e tudo isso apontava para saudades de tempos europeus pré-iluministas (e mesmo pré-renascentistas), embora também para fantasias de futuro diferentes das marxistas e capitalistas. Vi depois o nome de Powels em publicações de extrema direita européia (em que marcas notáveis de identificação fascista não se escondiam), ao lado do grande Eliade. (Powels publicou também um forte livro panfletário clamado Carta aberta às pessoas felizes, em que defende com viva inteligência uma posição que seria melhor caracterizada como de antiesquerda.) O professor Agostinho, interessado em ligar Brasil com África e Oriente (no fim da vida, ele estava apaixonado pela China "pós-comunista"), nunca derrapou para nenhum tipo de reacionarismo radical: ele amava ver em Portugal (o mais antigo país da Europa - unificado e feito Estado-Nação desde o século XII) uma sugestão de futuro espiritualmente ambicioso, sem negar os frutos da paixão nórdica pela tecnologia. E quando ele dizia petulantemente que Portugal já civilizou Ásia, África e América, falta civilizar Europa", estava sobretudo mostrando que queria pensar ao arrepio dos poderosos. Roberto Pinho tomava nas mãos várias tarefas inspiradas nesse programa. E, embora conseguisse mais me fascinar do que convencer com o todo do pensamento, me convenceu do detalhe de que eu deveria aceitar a sugestão do destino e ir fazer musica no Rio e em São Paulo porque coisas grandes necessariamente adviriam disso.
Não que eu cresse no aspecto transcendental do conselho. Mas, combinado com a insistência de Alvinho, com a exigência de Gil, com a cumplicidade de Dedé, com a concordância de Duda - e sobretudo com minha incapacidade de criar outras alternativas -, a pressão de Roberto parecia mais basear-se na observação de possibilidades reais do que em visões e revelações vindas de outro mundo: ele possivelmente considerava minhas canções mais originais e eu próprio mais inteligente do que eu admitiria. Por muito tempo, contudo, fiquei na Bahia sem mover uma palha no sentido de organizar minha ida para o Rio, sem sequer cogitar de arranjar moradia ali. Até que, no Carnaval de 1966, o próprio Roberto me apresentou a um artista gráfico chileno chamado Alex Chacon, que viera do Rio para colaborar com ele em não sei que projeto. Alex aderiu imediatamente à campanha para a minha ida. Não lembro de vê-lo me ouvindo cantar canções em Salvador. O que o teria feito colaborar na campanha com tanto entusiasmo? Minhas conversas? A gravação de "De manhã" por Bethânia? Lembro de ouvi-lo falar com entusiasmo cômico sobre a loucura do Carnaval da Bahia. Ele estava impressionado e dizia que aquele bandolinzinho do trio elétrico só podia estar sendo tocado pelo diabo em pessoa. Ele próprio parecia um diabinho, muito magro e miúdo, com os olhos extremamente vivos e aquele sotaque enfático das pessoas de língua espanhola. Eu lhe perguntei como é que ele queria que eu deixasse uma terra daquelas. Alex mudou logo de tom e disse que quanto a isso não havia questão: ele me oferecia morar em seu apartamento. Ele era casado com uma brasileira para quem os pais deixaram um amplo apartamento na avenida Nossa Senhora de Copacabana, quase na esquina da rua Santa Clara, onde eles viviam sem filhos. Cerca de dois meses depois, encorajado por Dedé - que decidiu mudar-se para o Rio por minha causa -, eu chegava, de ônibus, à estação rodoviária do Rio de Janeiro, onde, para minha surpresa, me esperava a adorável Sy lvia Telles, a cantora, segurando um cachorrinho no colo. Ela me levou de automóvel até o apartamento de Alex e me disse que, assim que eu estivesse pronto, naquele mesmo dia iríamos à casa de Edu Lobo. Este, um grande compositor então na crista da onda, me recebeu na noite daquele mesmo dia, com um carinho e um interesse sinceros de que nunca me esquecerei e é a imagem da hospitalidade com que o Rio, apesar dos preconceitos que depois vim a descobrir, me acolheu. E será sempre a medida de minha gratidão - em que pesem as crises de fúria - para com aquela que João Gilberto chama de "a cidade dos brasileiros".
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