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terça-feira, 14 de agosto de 2018

LENDO A CANÇÃO

Por Leonardo Davino*




Órbita

O pessoal do Les Pops já avisara: "A canção cansou de dizer coração / A canção cansou de sofrer por paixão / A canção cansou de chorar no refrão / A canção nem quer mais tocar / Cansou de não ter o que falar", retomando um tema lançado por Caetano Veloso em "Canção de protesto": "Por que será que fazem sempre tantas canções de amor e ninguém cansa e todo o mundo canta?".
Penso nessas questões enquanto ouço Órbita(2010), de Ana Clara Horta, um disco que investe mais no drama coletivo do amor, do que nas relações amorosas pautadas pelo "amor cortês", romântico. E com isso passeia pela contramão da indústria mercadológica, pois não repete o enfadonho esquema das queixas lírico/individuais.
Como amar depois de Shakespeare? Como amar depois da liberação sexual, quando os limites das manifestações do amor foram implodidos? Amar tornou-se complexo, pois, entre outras evocações, requer a predisposição de deixar o(s) outro(s) "livre para amar". Obviamente, por comodismo e conservadorismo, o processo de extroversão dessa mudança demora a chegar (chegará?) à efetuação coletiva. E o excesso de canções cantando a mesma coisa e de modo igual impera.
Enredada nos fios de náilon que tramam a rede-objeto retratado na capa do disco, Ana Clara Horta começa convidando o ouvinte: "Anda / Solta o que ainda lhe prende / Anda / Pra que o pé atrás? / (...) Deixa o amor correr ao léu". E seduz a imaginação: "Deixa / Me pegou na veia / Canto de sereia / Bote de cascavel / Vou lhe aquecer os pés / Cuidar do seu sono". 
Não é à toa que a maioria das letras das canções do disco orbite em torno do próprio gesto cancional - "Quero música na veia", "Ter um lugar pra mim / E querer visitar / Meu canto / Um som de concha do mar", "Desligando os nós / Religando os trens das ideais / Das brincadeiras, fez canção". Se musicalmente o disco parece não se diferenciar muito da tradição da canção-MPB, é na temática das letras e na voz justa de Ana Clara Horta que ele ganha em ruptura e proposta de renovação.
Todos esses versos parecem ser recolhidos na derradeira canção, "Culpe meu vício" (Ana Clara Horta), que diz: "A gente vai vivendo essa vida que vem / Descobre sem querer a vida real". É quando o cancionista investiga seus processos de composição que ele pode oferecer ao ouvinte essa "vida real", "vida em suspensão" só possível na arte, na experimentação, no devir do canto de alguém cantando. 
Ana Clara Horta compreende isso e faz de seu disco uma fonte de canções sirênicas, uma ilha de conchas do mar, uma rede sonora onde os nós são firmados com carinho e atenção. Mesmo quando flerta com o amor romântico, caso de "Melodrama", faz isso ironizando a situação amorosa, haja visto o título da canção. Antes já havia cantado, autorrefletindo-se : "E se for disfarce esse meu disparate / De ser cantora / Quero ir dar voltas na lua".
Por isso, talvez esteja na canção que dá nome ao disco, "Órbita", assinada pela própria cancionista, o núcleo que condensa o projeto de fazer a canção cantar sem a necessidade de evocar velhas fórmulas das "canções de amor" que empesteiam nossos rádios. Ouvindo os versos "Vou pra bem longe daqui / Aonde as lágrimas de chuva / Não encontrem com as minhas / Não mais" temos a confirmação dessa recusa ao fácil, ao palatável, ao consolo. Aqui a água "benze o tormento". Afinal, a voz de Ana já tinha sugerido que canta movida pelo "canto da sereia" e pelo "bote de cascavel".


***

Órbita
(Ana Clara Horta)

Vou pra bem longe daqui
Aonde as lágrimas de chuva
Não encontrem com as minhas
Não mais

Quero música na veia
O mesmo ingrediente o centeio de pães
Matinais
E se for disfarce esse meu disparate
De ser cantora

Quero ir dar voltas na lua
Pra ver minha alma se situar
Chegar à ilha desconhecida
Que é pra ver se saio de mim
E quem sabe me encontro
Numa outra órbita
Órbita
Órbita





* Pesquisador de canção, ensaísta, especialista e mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e doutor em Literatura Comparada, Leonardo também é autor do livro "Canção: a musa híbrida de Caetano Veloso" e está presente nos livros "Caetano e a filosofia", assim como também na coletânea "Muitos: outras leituras de Caetano Veloso". Além desses atributos é titular dos blogs "Lendo a canção", "Mirar e Ver", "365 Canções".

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