Em parceria com a esposa Márcia Barbosa, o cantor e compositor volta ao mercado fonográfico com "Cada qual com o seu espanto", disco que rediz o seu vigor autoral e interpretativo.
Por Bruno Negromonte
Lenitivo. Talvez este seja o adjetivo mais apropriado para definir o novo projeto fonográfico de Raul Boeira, cantor e compositor gaúcho que buscou depurar ainda mais o seu talento ao longo dos últimos oito anos. Um hiato assentido por aqueles que ansiosamente aguardavam um novo projeto fonográfico dentro dos moldes do "Volume um", seu álbum de estreia que somou à época os mais distintos e e sinceros elogios tanto da crítica especializada quanto do público. Enquanto em seu primeiro disco Boeira dividiu a assinatura das composições com parceiros como Alegre Corrêa e Mário Falcão, desta vez o novo projeto tem como cerne a parceria musical do cantor e compositor com Márcia Barbosa, sua esposa, professora-pesquisadora de letras na Universidade de Passo Fundo e que agora, oportunamente, estreia também no contexto fonográfico como compositora imbuída de toda a proposta sonora e estética que adorna o disco. Trata-se de uma perfeita simbiose que expande-se para além do contexto pessoal e que agora é exposto de modo público para a alegria de todos aqueles que já conheciam Raul Boeira e agora passam a acompanhar a parceria de ambos. Essa união chega como uma espécie de amálgama, que foge do tradicional conceito do regionalismo tão atrelado à música gaúcha para a surpresa de muita gente, e acaba por fazer jus, de modo muito apropriado, ao título que a dupla escolheu para batizar o projeto: "Cada qual com o seu espanto". Não que a sonoridade que permeia a música da região não se faça presente, mas ela faz-se esteio para uma gama de gêneros que a musicalidade do artista em questão abarca nas treze faixas que fazem parte deste projeto que busca ir de encontro a uma ideia existente no RS: a de que um certo determinismo geográfico pode ser transferido para o âmbito cultural.
Raul, que foi influenciado por nomes como Jimi Hendrix, The Beatles, Pink Floid, Milton Nascimento, Chico Buarque, Ivan Lins, Gilberto Gil entre outros grandes artistas da música, soube apreender aquilo que letras e melodias se propunham a partir dessas e outras grandes referências. Vale salientar que essas influências foram fundamentais para fazer com que a musicalidade do compositor destoasse da tradicional música produzida no Rio Grande do Sul, fazendo com que o seu trabalho fuja das delimitações geográficas de sua região, como é possível observar em toda a extensão do disco a partir de faixas que trazem para o seu universo sonoro, por exemplo, a batida do funk. É uma música que vai de encontro aos conceitos que determinam delimitações geográficas para as expressões culturais em suas mais variadas formas como afirma o próprio Boeira: "Não aceito o convite de me engajar à estética do frio". Desse modo, e se auto definindo um músico amador, o cantor e compositor passeia com muita propriedade entre os mais variados nuances dos distintos gêneros que constituem o seu modo de compor. São melodias substanciadas pelo samba (e seus mais variados desdobramentos), toadas, frevos, milongas e até mesmo o funk (como já citado); formando de modo coerente a unidade que faz da obra do artista gaúcho um diferencial dentro da música do seu estado como já foi identificado, por exemplo, pelo músico austríaco Joe Zawinul, que em seu álbum Zawinul 75th (detentor do Grammy 2010 de melhor álbum de jazz contemporâneo) registrou o samba "Clariô" (uma parceria de Boeira com Alegre Corrêa). Avesso à carreira musical, Raul prefere suar bicas no esmerado ofício da composição à estar sobre um palco: "Não gosto de palco. Padeço de uma certa "tecnofobia"... não gosto de coisas ligadas perto de mim, equipamentos, cabos... sou desplugado total, 100% acústico", costuma dizer.
Composto por treze faixas o disco apresenta letras substanciadas pelos mais distintos temas, sentimentos e sensações, a exemplo de "Iniciação", uma emotiva homenagem ao Ruy Barbosa, pai de Márcia, responsável maior por despertar na compositora o gosto pela literatura como fez questão de enfatizar nos versos finais da composição: "E antes mesmo que eu soubesse / o que é literatura / o mestre Ruy me iniciava / nos passos dessa aventura..."; Há também a abordagem aos mais distintos temas, a exemplo de "Povaréu", canção cujo o tom é dado pela celebração da pluralidade e das diferenças em detrimento ao preconceito e a intolerância infelizmente ainda tão em voga em nossa sociedade. A preservação do meio ambiente vem através da faixa "Meu rio", samba-canção impregnado de figuras de linguagem que aguça o senso crítico do ouvinte a partir de uma letra carregada de ironia e sarcasmo. Temas comuns aos grandes centros urbanos também são abordados em faixas como "A cidade sumiu" (que denuncia a poluição visual descontrolada) e "Aos que chegam", uma saudação em forma de frevo aos imigrantes e refugiados que buscam tentar a sorte em outros centros urbanos afim de uma vida sem maiores atropelos. Já "Vamos" e "Meio aéreo" tratam-se de duas baladas funk, a primeira descreve a parceria na vida e na música entre os autores e a segunda celebra o fazer música como forma de seguir brincando ao longo da vida. O disco segue com "No fundo do topo", que inspirado na obra "A euforia perpétua", do francês Pascal Bruckner, discute o modo como as pessoas se tornam reféns da vaidade e da busca pelo sucesso a qualquer preço. O disco ainda traz as faixas "Ventos", "Na pausa"(que endossa toda a leveza presente no disco) e "Complexo de épico II", uma canção melodicamente estruturada a partir de incursões pelo universo milongueiro e marcial (com direito a clarins e tambores) e uma letra que propõe o abandono da visão épica do passado do RS. “Uma crítica a essa idealização que, de certa forma, nos aprisiona, encobre o que é o nosso estado. É a canção em que mais me utilizo daquilo que minha formação em literatura me proporciona” como observa a autora. Por fim o disco ainda conta com "O poema dentro da casca", bossa que traz Celso Fonseca ao violão e nos vocais.
A exemplo do seu álbum de estreia, "Cada um com o seu espanto" foi gravado no Rio de Janeiro e tem novamente Dudu Trentin como responsável pela direção musical. A respeito desta parceria (que antecede a incursão do cantor e compositor pelo universo fonográfico) Dudu conta que, ao contrário do Volume Um, gravado de maneira fragmentada por vários instrumentistas, num processo de mais de um ano, este novo projeto (que segue a linha mais clássica da Música Popular Brasileira) foi registrado em apenas dez dias e traz uma única banda base em todo o repertório. No rol de músicos que dão vazão a abrangente e coesa sonoridade deste projeto, conceituados musicistas que vem nas últimas décadas corroborando de modo resistente para a história da música popular brasileira de qualidade a exemplo de Jurim Moreira (bateria), Celso Fonseca (violão e voz), Jessé Sadoc (flugelhorn), Bruno Santos (trompete), Marcelo Martins (sax tenor), André Vaconcellos (baixo), Ian Moreira (percussão), Eduardo Farias (pianos, teclados e arranjos) e Marco Vasconcellos (violões, guitarra e arranjos).
Trabalhos como "Cada qual com o seu espanto", faz o malfadado cenário musical brasileiro revigorar-se, nos levando a crer que nem tudo existente na atual música popular brasileira é escasso de qualidade ou tem por finalidade o que muito tem se apregoado no contexto musical atual: uma espécie de alienação que não lança um olhar crítico a nossa sociedade. Ainda bem que quando quase estava convencido de que o Volume Um seria volume único, o destino conspirou a favor da arte e fez com que os caminhos de Raul Boeira cruzasse com os de Márcia Barbosa, e dessa comunhão surgisse este projeto fonográfico. Nada de rebenque, bombacha, guaiaca, lenço ou tirador quando se há todo um ecletismo a ser explorado dentro da música popular brasileira como eles foram capazes de enxergar. Para quem impressionou-se com a qualidade musical presente no "Volume Um" de fato não há de se espantar com este novo álbum que traz em seu bojo características que o destaca. Pérola para poucos, "Cada qual com o seu espanto" endossa ainda mais (e de modo veemente) um jargão pra lá de conhecido dentro da música popular brasileira: "Toca Raul!"
Facebook (Página Oficial) - https://www.facebook.com/raulboeiramarciabarbosa/?fref=ts
Serviço:
Cada qual com seu espanto (Letras de Raul e Márcia Barbosa)
Preço: R$ 30,00 (Pode ser solicitado pelo facebook ou pelo email raulboeira@gmail.com)
Para aqueles residentes fora de Passo Fundo (RS) o álbum pode ser enviado pelos Correios sendo acrescido ao valor do produto R$ 4,90 (valor da postagem de 1 cd por carta registrada - registro módico). O pagamento pode ser feito mediante depósito ou TED em conta corrente do BB ou do Banrisul.
Parabéns pela excelente descrição.
ResponderExcluir