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terça-feira, 19 de julho de 2016

LENDO A CANÇÃO

Por Leonardo Davino*




"Por ser feliz, por sofrer, por esperar eu canto / Por ser feliz, pra sofrer, para esperar eu canto", vocaliza Gal Costa. Os versos de "Minha voz, minha vida", de Caetano Veloso, figurativizam o caráter trágico e sublime do cantante, cuja "vida [que] não é menos [minha] dele que da canção". Sustentado no canto, ele se assemelha à cigarra que, finda a missão, cai para a morte.

Cantar e viver são sinônimos. É da natureza do cantor trazer a vida na voz. E não apenas a própria vida, mas, de viés, a vida do ouvinte mimado e narrado (encantado: música e magia) no canto alheio. No cantar da cigarra e do cantor, médiuns da vida, ou melhor, a própria vida, da felicidade que tudo sofre e espera, há o estar no mundo. Eles não cantam porque preferem, mas porque são "obrigados" a isso.

O cantar surge como uma espécie de gratidão natural, espontânea e ontológica à oportunidade de viver, de ser presença. A diferença entre o cantor-poeta e a cigarra é que enquanto o primeiro consegue se pensar fora do canto, a cigarra simplesmente é toda-canto. A cigarra não filosofa, inspira filosofia. Porém, é por saber - conscientes ou não - finitos que eles cantam.

O cantor-poeta-filósofo pode pensar "se deus existe" e sobre o seu "caminho inevitável para a morte". "A cigarra... ouvi: / Nada revela em seu canto / Que ela vai morrer", como Bashô escreveu em um de seus belos haicais. O canto dela é pura potência sublime do ser na vida, glorificação do estar no mundo, manifestação da natureza sem a mediação da razão. "Casca oca / a cigarra / cantou-se toda", anota Bashô, em outro haicai.

Por mais que algumas pessoas imponham sentido (semântica) ao canto da cigarra e de outros seres canoros, há aí sempre um canto "doação da natureza", sem um Eu passível de diferenciação. O pensar-se e a força imediata distinguem o humano, no primeiro, e a cigarra, no segundo.

Feito cigarra no ato de cantar, o cantor-poeta-filósofo-cigarra investiga e engenha a vida, deixa a vida ser sentida na voz que o distingue dos outros, seus "irmãos na terra". Incorporado daquilo que alimenta a cigarra, o cantor descobre o profundo desperdício de seu gesto: cantar.

Não há "razão" para cantar, tudo é erotismo e os signos que organizam o real entram em estado de suspensão, de crise: retorno da correlação música e magia. Aliás, o excesso de raciocínio, empurrando o mito para a morte, não respondeu às angustias humanas, pelo contrário, nega a interrogação e a afirmação motoras do movimento do indivíduo no mundo.
Daí também que cada ouvinte recebe de um modo próprio o canto que se quer coletivo."Eu vou ficar aqui / até acabar a festa / (...) / podem insistir / mesmo que amanheça o dia / não tenho para onde ir / (...) / por isto toquem a música bem alto / façam o tempo passar / (façam o tempo parar)", canta Elza Soares em pedido à "coisa acesa" que sai da (e é a) voz de alguém cantando.

Móvel e guardada (gravada) nos diversos suportes de mediação, a voz do cantor se infiltra e contamina outros cantores, pois permite a estes o contato atemporal com aqueles. Cigarras que se incorporam em novas outras cigarras. Afinal, se morrem para dar vida à vida (ao cantar), esta não morre nunca.

Os suportes técnicos permitem o registro e a troca de experiências. Aqui, claramente me afasto da defesa sobre o fim da faculdade de narrar defendida por Walter Benjamin. Mesmo entendendo os motivos e os argumentos da teoria benjaminiana, reconheço nas técnicas de reprodução o meio de permanência do mito, da capacidade de linkar mundos no mundo, justamente pela possibilidade de acesso.

Outrossim, sei que meu objeto de investigação é diferente do objeto estudado por Benjamin, bem como o contexto sócio-histórico do espetáculo inenarrável dos eventos da Guerra, não mais mítica ou épica. Mesmo assim, e talvez exatamente por isso, identifico na canção popular brasileira o estofo de uma gente que cantando, geme e ri "por ser feliz, por sofrer, por esperar". O traumático aqui gera vocalizes, toadas, aboios, canção. Estou certo, também, que esta minha generalização requer melhor análise.

"O mutismo traumático que acometeu os sobreviventes da guerra de 1914 constitui, segundo Benjamin, o funesto sintoma da destruição da experiência comunicável na modernidade (...). A narração tradicional corresponde, precisamente, à modalidade de discurso na qual se atualizam incessantemente a dimensão transmissível e o caráter de anamnese da linguagem, a forma de comunicação privilegiada pela qual a experiência, em seu sentido reconhecível e em sua dimensão histórica, pode alcançar uma expressão discursiva", anota Luís Inácio Oliveira (Do canto e do silêncio das sereias, p. 234).

De todo modo, creio que há na era da reprodução e mobilidade técnicas, quando tudo é transmutado em produto e requer um valor em dinheiro, a condição urgente, disponível e precisa da transmissão da experiência. Exemplo disso são as regravações, os "diálogos" entre cancionistas que, sem os instrumentos modernos, não seriam possíveis. Continuaríamos a ler letras de canção "apenas" como poesia. Como fazemos com os textos cantados e emudecidos da Ilíada, da Odisseia, entre tantos outros.

Egresso da banda Sheik Tosado e sua mistura de maracatu, frevo e hardcore, China faz de seu disco solo Simulacro (2007) um espaço para tons baixos e letras autorais. Entre guitarras e programações eletrônicas. O elogio canibal à tradição da canção popular, passando por Bossa Nova e Iê Iê Iê, psicodelia e samba, é o ponto forte de equilíbrio do disco.

Neste sentido, destaca-se entre as canções "Canção que não morre no ar", de China, posto que recupera, já no título, a "Canção que morre no ar" de Carlos Lyra e Ronaldo Bôscoli. E é a gravação que Gal Costa deu à canção em 1974 no disco Cantar que será refletida, ecoada, no comentário paródico-crítico de China.

Voz da Tropicália, Gal Costa é emulada na atualização do tema. Porque gravado, seu canto não morreu no ar. China sintoniza o rádio, acha a estação e se permite acelerar o coração. O resultado disso é a (nova) canção: "Sintonize o seu rádio / procure em alguma estação / se eu entrar nos seus ouvidos / acelero seu coração". Moderno, sentencia: "Minha voz vai se espalhar no ar / cada verso que eu cantar / os falantes te lembrarão / minha voz é canção que não morre no ar". Para finalmente atestar "Nunca mais vou te deixar / pois agora sou uma canção".

É quando é canção, quando retorna ao mito, que o indivíduo se eterniza. China trai o verso cantado por Gal Costa - a "Canção que morre no ar" vira a "Canção que não morre no ar" - para renovar a tradição do desejo de cantar. A experiência "autêntica" é um simulacro que, por sua vez, nas palavras de China - na letra de "Pastiche" - é "a aparência, é a imitação, é a reprodução imperfeita, visão sem realidade (...). É plágio e ágil, minha criança, é o retocando e o irretocável. Tudo convergido numa coisa só".

A experiência natural e autêntica, fundada na memória, reivindicada por Benjamin, encontrou novos meios de se realizar. A memória involuntária - que prescinde da vontade lúcida do indivíduo - e a memória voluntária - regida pela inteligência e pela vida prática - se mesclam. Inserido na cultura, o sujeito criado por China é exemplo de quem experimenta e vivencia o passado no presente.

Algo incompatível para Benjamin. Posto que para ele "o elemento aurático encontra-se no cerne da narrativa tradicional, já que o lastro da sabedoria do narrador repousa na durabilidade do transmitido, na autoridade da tradição, na memória da experiência coletiva, na sacralidade do passado épico, na aura do longínquo" (idem, p. 245).

Até a linha melódica muda: ao invés do arranjo grandiloquente que quer figurativizar a morte do resto de canção, uma balada (quase) dançante a embalar a certeza da canção que não morre no ar; ao invés da voz límpida de Gal Costa, a voz de China em sobreposições, criando um efeito de "sujeira", contaminação, interferência sonora.

Importa destacar que o mesmo mote foi re-atualizado por China na canção "Mais um sucesso pra ninguém" (2011): "E eu que fiz tantas canções para você / Não esperava que fosse desistir de mim / A cada verso, me entrega mais para você / Que nunca quis ligar o rádio para me ouvir // Mais um sucesso pra ninguém / Canção que vai morrer no ar". Aqui, desiludido no amor, o sujeito compactua com o sujeito de "Canção que morre no ar". Retorno do mesmo, em diferença.

Seja como for, cigarra-sereia que engendra cigarras-sereias, Gal Costa cantora é canção captada no futuro do presente de China. Este, por sua vez, em um gesto involuntário típico do indivíduo híbrido, cujo lastro da tradição é, na base, desmantelado, aconselha-se, dessacraliza, cita e monta uma Gal. Ambos, irmãos e cúmplices no trabalho de suster a vida na voz, no cantar, na canção.


***

Canção que não morre no ar
(China)

Sintonize o seu rádio
procure em alguma estação
se eu entrar nos seus ouvidos
acelero seu coração

Mas não esqueça de mim
agora eu corro com o vento
você não pode me ver
me guarde no pensamento

Minha voz vai se espalhar no ar
cada verso que eu cantar
os falantes te lembrarão
minha voz é canção que não morre no ar

Nunca mais vou te deixar
pois agora sou uma canção



* Pesquisador de canção, ensaísta, especialista e mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e doutor em Literatura Comparada, Leonardo também é autor do livro "Canção: a musa híbrida de Caetano Veloso" e está presente nos livros "Caetano e a filosofia", assim como também na coletânea "Muitos: outras leituras de Caetano Veloso". Além desses atributos é titular dos blogs "Lendo a canção", "Mirar e Ver", "365 Canções".

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