No próximo dia 13 de abril Dona Ivone Lara completa 90 anos de idade; destes, 70 foram dedicados à música. Segundo Beth Carvalho, uma das intérpretes que mais cantou Dona Ivone, a sambista do Império é uma senhora melodista: — Se tivesse estudado mais, seria maestrina. Os “laiás-laiás” dela são verdadeiros arranjos. Mas foi Maria Bethânia, ao gravar “Sonho meu” e “Alguém me avisou”, na década de 1980, que consagrou, fora do mundo do samba, a parceria de Dona Ivone e Décio Carvalho.
Por João Máximo, Bruno Negromonte e Sara Paixão
O nome de Yvonne Lara da Costa dispensa qualquer tipo de apresentação. Grande sambista e como compositora, além de sambas belíssimos, foi também a primeira mulher a integrar uma ala de compositores de escolas de samba. Em sua biografia passou por diversas dificuldades superando a todas elas e galgando o seu espaço dentro da música popular brasileira como um dos nomes mais reverenciados do samba. Depois de aposentada, se dedicou inteiramente ao samba e a composição tendo suas canções gravadas por grandes nomes de nossa música e criando clássicos para nossa MPB.
Bisneta de escravos, Ivone Lara nasceu em Botafogo, no Rio de Janeiro. O pai, João da Silva Lara, era um conceituado músico do lugar com seu violão de sete cordas, além de desfilar no bloco dos africanos e outros ranchos. A mãe, Emerentina Bento da Silva, levava uma vida dura como lavadeira e costureira e para dar vazão a alegria transformava-se em pastora do rancho Flor do Abacate e uma cantora amadora de prestígio.
Precocemente, Ivone perdeu o pai em um acidente com o caminhão no qual trabalhava como ajudante. João só tinha 27 anos. Emerentina ficou grávida e seis meses após sua viuvez deu a luz a uma menina. Emerentina caso novamente e foi morar na Tijuca com Ivone e por lá viveu oito anos no internato do Colégio Municipal Orsina da Fonseca. Lá estudou música com Lucíla, mulher de Heitor Villa-lobos e chegou a cantar sob a regência do maestro. Ivone tinha 17 anos quando sua mãe mãe faleceu também de maneira precoce aos 33 anos.
Já maior de idade, Ivone sai do colégio e vai morar em Inhaúma com o tio Dionísio, com quem aprende a tocar cavaquinho. É notória a dura vida de Ivone, o sofrimento em sua vida foi uma constante em sua juventude a fazendo, desde muito cedo, uma mulher autônoma e uma compositora de mão cheia que não pretende parar nem tão cedo. Tem perto de 15 sambas recém-feitos com o parceiro Délcio Carvalho e continua aceitando convites para shows, como o de duas semanas atrás, no Rival. Tudo isso apesar das limitações impostas pela recuperação de uma fratura no fêmur e da vista direita perdida em razão da necrose decorrente de um glaucoma.
- Da esquerda, enxergo perfeitamente - diz ela, deixando claro que os óculos são apenas para não modificar a imagem que todos conhecem.
O aniversário será comemorado em família, com direito a bolo, feijão branco e roda de choro, esta um presente do músico Abel e de seu grupo. Dona Ivone vive hoje com o filho Alfredinho, a nora Eliana, netos e bisneto, numa acolhedora casa de Osvaldo Cruz. O ambiente é tipicamente suburbano, com o mesmo espírito de vizinhança que Dona Ivone conheceu no Rio de antigamente.
- Esta era uma rua sem saída - conta Eliana. - Desde que viemos morar nesta casa, pensamos em fechar a entrada para transformar o local num condomínio, mas fazia 20 anos que um dos vizinhos era contra. Até que o convidamos para uma roda de samba aqui em frente, e ele mudou de ideia.
Samba de Dona Ivone Lara realmente tem força. É o que explica ela ter passado a vida a superar barreiras que pareciam separá-la do prazer de viver a música. Em
menina, morando na Tijuca, fugia de casa para dançar e cantar nos terreiros do Salgueiro. Quando voltava, apanhava da mãe, que, apesar de cantora do Rancho Flor do Abacate, queria outra vida para a filha. O pai, sete cordas do Bloco dos Africanos, morreu quando Dona Ivone tinha apenas 3 anos. Aos 10, perdeu a mãe.
Por esses dados, acredita-se que tenha sido pouca a influência dos pais sobre Dona Ivone. Da mesma forma, o curto tempo em que estudou com Lucília Villa-Lobos, mulher do maestro famoso, não antecipou o que seria a compositora (foi por essa época que, aluna de Orsina da Fonseca, cantou "A lavadeira" no coro regido pelo próprio Villa-Lobos).
- Fui criada por uma tia, tia Cota, que também não gostava de samba - lembra ela, já se referindo aos tempos de Serrinha, quando trocou, para sempre, o Salgueiro pelo Império Serrano. - Tia Cota gostava de jongo, mas não de samba, que ela achava coisa para homem. Achava que eu, moça que pretendia fazer curso superior, não devia me misturar com a gente da escola.
O curso foi feito: enfermagem. Do qual ela muito se orgulha. - Graça a isso pude me aposentar aos 58 anos.
Enfermeira e, depois, assistente social, funções que dividiria, sem problemas, com a de baiana a desfilar pelo Império.
Já a resistência de tia Cota começou a ser vencida com a cumplicidade do primo, Mestre Fuleiro, que começou a levar para a escola as primeiras tentativas da compositora. Naturalmente, sem citar-lhe o nome (Dona Ivone não diz, mas alguns sambas que, assinados por outros, fizeram sucesso, dentro e fora do Império, tinham o dedo dela).
- Até que me convidaram para ser a madrinha da ala dos compositores. Fui a primeira mulher a conseguir isso.
O convite não veio logo após as primeiras amostras l
evadas por Fuleiro. Dona Ivone tinha 16 anos quando compôs "Tiê", e já havia feito com $de Oliveira e Bacalhau um dos maiores sambas-enredos já ouvidos num desfile: "Cinco bailes da história do Rio", em 1965, quando a cidade completou 400 anos. Consta que ela entrou na parceria exatamente como, ainda hoje, atua no Império: acabando a música que os parceiros (no caso, bêbados) não conseguiam. Dona Ivone conta:
- Volta e meia eles me chamam: "Madrinha, vem dar um ajudinha." Vou com prazer.
É sinal de que ela continua firme e fiel ao Império Serrano.
- O Império? Está fraco, quase morrendo. Se tivesse mais uma escola esse ano, tínhamos perdido o sexto lugar (no Grupo de Acesso A).
Seus próprios sambas são trabalhados de outra maneira. Inspiradíssima ("Você percebe que o talento dela não é comum, não é usual", assevera Paulão Sete Cordas, o violão que a conhece muito de perto), Dona Ivone vai criando seus temas e, muitas ve$, passando-os por telefone a Délcio ou a outro parceiro. Suas melodias sempre têm a precedência.
Dona Ivone, o mesmo sorriso, o mesmo rosto sem rugas, a mesma elegância nos gestos e na fala, chega aos 90 acreditando (sem trocadilho com "Acreditar", grande samba dela e Délcio). No dia do aniversário, lança seu site. A cantora mineira Márcia Lima vai gravar disco só de sambas seus que não fizeram muito sucesso. Título: "Lado B". A mineira Aline Calisto inclui três inéditos em seu próximo CD. Fatos aparentemente triviais, mas recebidos com o mesmo contentamento dos triunfos que Dona Ivone vem multiplicando em tantos anos: apresentações em França, Alemanha, Suíça, Dinamarca, Gana, Angola, Nova York. Seu disco "Nasci para sonhar e cantar", com título definidor, foi lançado em 2001 (o mesmo ano em que o pianista Leandro Braga lhe dedicou um CD instrumental e um songbook). Ganhou prêmio, $muito no Brasil, na França, Alemanha, Austrália e até no Paquistão.
No meio de todas essas vitórias, só uma queixa:
- Das gravadoras. Não me divulgam, não me pagam, não me dão satisfação, só se apropriam do que é meu.
Uma informação: pelo DVD que a Universal produziu com ela, "todo ele praticamente vendido", recebeu menos de R$ 2 mil. De direitos autorais, R$ 74. Isso mesmo: setenta e quatro reais.
Apesar da queixa, momento raro em Dona Ivone, ela não perde o jeito sereno e simples. De tal modo que, às vezes, somos levados a crer que, no fundo, a artista não tem exata consciência de seu papel, de sua importância. No máximo, ao falar sobre si mesma, ela se permite uma explicação de por que é quem é. Como no depoimento que deu ao Museu da Imagem e do Som (MIS) em 2008: "Eu me faço respeitar." Em seu caso, respeitar é pouco. Dona Ivone Lara nasceu para sonhar, cantar e ser cultuada.
E o amor para que ela continue a cantar vem de todas as partes.
— É nossa rainha, firme na preservação do samba. Vida ainda mais longa a Dona Ivone — deseja Zeca Pagodinho.
Autor de inúmeros sambas para a musa dos sambistas, o cantor e compositorArlindo Cruz engrossa a torcida por uma duradoura comemoração: — Dona Ivone merece todas as homenagens, que seja um ano inteiro de festa. A minha geração de sambistas, do Cacique de Ramos, é toda apaixonada por ela.
1974 - Samba Minha Verdade, Samba Minha Raiz
1979 - Sorriso de criança
1981 - Sorriso negro
1982 - Alegria minha gente (Serra dos Meus Sonhos Dourados)
1985 - Ivone Lara
1986 - Arte do encontro (com Jovelina Pérola Negra)
1993 - Mestres da MPB (coletânea)
1998 - Bodas de ouro
1999 - Um natal de samba (com vários)
1999 - Raízes Do Samba (coletânea)
1999 - Pirajá - Esquina do Samba (com vários)
2000 - Casa de Samba 4 (com vários)
2001 - Nasci para sonhar e cantar
2001 - Para Sempre (coletânea)
2001 - Meninos do Rio (com vários)
2002 - A Música Popular Brasileira por Seus Autores e Intérpretes (coletânea)
2003 - Aquarela do Samba (com vários)
2004 - Sempre a cantar (com Toque de Prima)
2006 - Warner 30 Anos: Dona Yvonne Lara (coletânea)
2006 - Aquarela do Samba (com vários)
2009 - Canto de Rainha
2010 - Nas escritas da vida (com Bruno Castro)
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