Bide e Marçal
“A primeira vez que eu te encontrei
alimentei a ilusão de ser feliz
eu era triste sorri
peguei no pinho e cantei
lindos versos eu fiz
em meu peito guardei
um dia você partiu
meu pinho emudeceu
e a minha voz na garganta morreu”
BIDE e MARÇAL, “A primeira vez”
Alcebíades Maia Barcelos formou ao lado de Marçal um estilo de samba tão bem definido que suas músicas eram reconhecidas nos primeiros acordes. “Agora é cinza”, samba da dupla, é visto como um dos mais bem-feitos de todos os tempos: “Você partiu/ saudades me deixou, eu chorei/ o nosso amor foi uma chama/ que o sopro do passado desfaz/ agora é cinza/ tudo acabado e nada mais/ Você partiu de madrugada/ e não me disse nada, isto não se faz/ Me deixou cheio de saudades/ e paixão, eu não me conformo/ com a sua ingratidão (Chorei porque)...”
Gravado com sucesso por Mário Reis, “Agora é cinza” teve mais de cem registros durante o século XX. A dupla de compositores, uma das mais produtivas das décadas de 1930 e 40, lançou ainda outros sucessos, como “Ninguém fura o balão”, “Nosso romance”, “A primeira vez” e “Madalena”.
Introdutor do surdo e do tamborim no reino das escolas de samba, Bide fez parcerias com outros compositores, como Noel Rosa, Ataulfo Alves e Benedito Lacerda. Em 1955, participou da gravação do LP O carnaval da Velha Guarda, e tocando afoxé ao lado de Pixinguinha, Donga e João da Baiana, a “santíssima trindade do samba”.
Bide inventou o surdo, mas foi Armando Marçal o precursor de uma dinastia de ritmistas no Brasil (é pai de mestre Marçal e avô de Marçalzinho). Vale dizer que ele participou da primeira gravação com instrumentos de ritmo feita no Brasil, com a música “Na Pavuna”, de autoria de Almirante e Homero Dornelas.
Os tradicionais sambas seresteiros na casa de Marçal, além de serem frequentados por Orlando Silva, Francisco Alves e Sílvio Caldas, ainda inspiraram a dupla a compor duas valsas conhecidas, “Silêncio” e “Prece à lua”.
Ismael Silva
“Se você jurar que me tem amor
eu posso me regenerar
mas se é para fingir, mulher
a orgia assim não vou deixar”
ISMAEL SILVA, NILTON BASTOS e FRANCISCO ALVES, “Se você
jurar”
Niteroiense, Ismael Silva é o principal nome do samba surgido no Estácio. Ao lado de Bide e Marçal, Ismael fez o movimento bossa-novista de sua época libertando o samba de seus traços folclóricos, estruturando o gênero sob uma ótica urbana. Saía de cena, no começo dos anos 1930, o estilo “samba amaxixado” de “Pelo telefone”, e entrava no palco “Se você jurar”, o samba batucado da turma do Estácio.
Esse novo jeito de fazer samba, utilizando o instrumental percussivo, influenciou toda uma legião de compositores: Noel Rosa, Geraldo Pereira, Wilson Batista, Ary Barroso, até o plural Chico Buarque. Diga-se de passagem que o autor da imortal “A banda” é fã de carteirinha de Ismael Silva. Chegou a afirmar em diversas entrevistas que sua obra tem uma dívida com o niteroiense. Ismael foi também o principal parceiro de Noel Rosa, compondo ao todo 18 músicas com o Poeta da Vila. E como se já não bastasse tal currículo, é dele a ideia de usar a expressão “escola de samba” para caracterizar o novo estilo de samba que faria, realmente, escola.
Nome fácil no meio dos sambistas e presente em qualquer antologia sobre o samba, Ismael ainda tem um repertório pouco conhecido. Excetuando-se as antológicas “Se você jurar”, “O que será de mim?”, “Antonico”, “Pra me livrar do mal” e algumas outras músicas, sua obra fica circunscrita ao conhecimento de alguns “doutores” do samba.
Ismael foi o elo entre Francisco Alves e os sambistas do morro, e acabou por ser seu “secretário” nesse negócio de comprar sambas. Francisco, que de bobo não tinha nada, entrou como parceiro em muitos sambas criados por Ismael e seus companheiros: “Amar”, “Amor de malandro”, “Antes não te conhecesse”, “É bom evitar”... Ismael Silva teve ainda parcerias com Heitor Catumbi, Lamartine Babo, Paulo Medeiros e Roberto Roberti.
Cozinha
A cozinha, base do samba, concentra o maior número de “anônimos” do gênero. Ela é o espaço dos músicos de percussão, ou seja, os tocadores de reco-recos, surdos, agogôs, tamborins, atabaques, caixas... Assim como a flauta de Pixinguinha e o violão de Dino são inconfundíveis, também o são a faca e o prato de João da Baiana, o chapéu batucado de Luís Barbosa e as caixas de fósforos de Elton Medeiros e Ciro Monteiro.
Sem dúvida, foi do universo das escolas de samba que saíram os principais ritmistas do país. Na Deixa Falar, em 1928, a percussão ganhou destaque, alçada pelo pandeiro de João da Baiana, o surdo de Bide e o tamborim de Marçal. Este último inaugurou uma dinastia no samba carioca. Seu filho, Nilton Delfino Marçal, mais conhecido como mestre Marçal, formou, com os inseparáveis parceiros Luna e Eliseu, a “santíssima trindade do ritmo”, sendo o ritmista predileto dos artistas da MPB. Cantor de gafieira que compôs e gravou alguns LPs, diretor de bateria da Portela, mestre Marçal deu continuidade à dinastia: seu filho, Marçalzinho, é profissional respeitado no ramo, tocando com os bambas do samba.
Mangueira
“Habitada por gente simples e tão pobre
que só tem o sol que a todos cobre
como podes, Mangueira, cantar?”
CARTOLA, “Sala de recepção”
Nos primeiros anos do século, o velho morro dos Telégrafos passou a ser habitado pela população humilde que não tinha onde morar. A musicalidade da rapaziada do pedaço logo fez surgirem vários blocos e ranchos. Em 1929, um jovem de 20 anos percebeu que o Bloco dos Arengueiros, do qual fazia parte, era bom de batuque e de ritmo – além de ser bom de briga e de arrumar confusão –, e precisava se unir a outros blocos e ranchos pelo bem do morro e do samba.
Surgia, pelas mãos de Cartola, a Estação Primeira de Mangueira, que ganhou esse nome por ser a primeira estação da Central do Brasil onde havia samba. De fortes cores verde e rosa, a Mangueira foi fundada, segundo Sérgio Cabral, “numa reunião realizada na casa de Euclides Roberto dos Santos, na travessa Saião Lobato, 21, que contou com a participação de seis arengueiros, além de Euclides: Saturnino Gonçalves, Marcelino José Claudino (o Maçu), Cartola, Zé Espinguela, Pedro Caim e Abelardo da Bolinha”.
Cartola
“Bate outra vez,
com esperanças o meu coração
pois já vai terminando o verão
enfim...”
CARTOLA, “As rosas não falam”
Ainda que Angenor de Oliveira não tivesse sido encontrado pelo jornalista Sérgio Porto lavando automóveis em Ipanema, bairro da Zona Sul do Rio de Janeiro, décadas depois do seu desaparecimento, ele teria entrado para a história como o responsável pelo surgimento da Mangueira, pela escolha das cores verde e rosa da escola e, mesmo com a pouca idade que tinha nos idos de 1930, já poderia ser considerado um dos maiores compositores do morro. Mas o retorno de Cartola, ao final dos anos 1950, o casamento com dona Zica, a inauguração, no Centro do Rio, do restaurante Zicartola – ponto de encontro dos sambistas das zonas Norte e Sul – e a gravação de LPs antológicos na história do samba fizeram do “Divino”, como o chamava o crítico Lúcio Rangel, a maior expressão do gênero nos morros cariocas.
Sambas-enredos históricos
A Mangueira teve muitos sambas-enredos que fizeram história. Este, de 1967, quando a Verde-e-rosa foi campeã, exalta a figura do escritor MonteiroLobato, o genial criador dos personagens do Sítio do Pica-Pau Amarelo – ainda tão atual, mais de 80 anos depois de sua criação. Seus escritos para adultos, a exemplo de Urupês, imortalizaram figuras como Jeca Tatu, um caipira ignorante que não tinha ânimo para trabalhar. Esse personagem representou a luta do cidadão Monteiro Lobato pela universalização da educação.
“O mundo encantado de Monteiro Lobato”, de Darci da Mangueira, Batista, Jurandir da Mangueira e Dico: “Quando uma luz divinal/ iluminava a imaginação/ de um escritor genial/ tudo era maravilha/ tudo era sedução/ quanta alegria/ e fascinação/ relembro/ aquele mundo encantado/ fantasiado de dourado/ Oh! doce ilusão/ sublime relicário de criança/ que ainda guardo como herança/ no meu coração/ Glória a esse grande sonhador/ que o mundo inteiro deslumbrou.../ E assim.../ neste cenário de real valor/ eis o mundo encantado/ que Monteiro Lobato criou.”
Cartola era um lorde: na fala, na música e no jeito de se vestir, com postura de rei africano. Enquanto trabalhava em obras, para que o cimento não lhe caísse sobre o cabelo, resolveu usar um chapéu-coco, que os colegas diziam parecer uma cartola – daí o apelido.
Ainda quando estava à frente da criação da Estação Primeira, Cartola já compunha sambas antológicos. Em 1928, compôs “Chega de demanda”; quatro anos depois, o renomado Francisco Alves gravaria do jovem compositor o samba “Divina dama” (um forte prenúncio de seus dotes românticos que apareceriam definitivamente em “As rosas não falam”) e “Que infeliz sorte”; Carmen Miranda lançou “Tenho um novo amor” e “Não quero mais amar a ninguém”, composto com Zé da Zilda e Carlos Cachaça; no começo dos anos 1940, o maestro americano Leopold Stokowski gravou “Quem me vê sorrindo” para um estudo que realizava sobre a música popular brasileira. Essas músicas, e tantas outras não citadas, já o colocariam na galeria de bambas. Porém a vida se encarregou de aproveitar muito mais de sua genialidade. O espaço do Zicartola o pôs em contato com artistas mais jovens advindos da bossa nova e que procuravam uma aproximação com sambistas como Ismael Silva e Nelson Cavaquinho, contemporâneos de Cartola. Era o caso de Nara Leão, cantora bossa-novista importantíssima na divulgação da obra de Cartola, inserida tanto em sua discografia quanto no show Opinião, apresentado ao lado de Zé Kéti e João do Vale. A gravadora Marcus Pereira, ao lançar seus primorosos LPs, consolidou definitivamente o talento do mestre mangueirense na composição e na interpretação.
Com J.C. Botezelli, o Pelão, na produção, os LPs reuniram obras-primas de Cartola e um time de instrumentistas de primeiro naipe. No segundo LP, lançado em 1976, o sucesso do álbum foi puxado pela faixa “As rosas não falam”, incluída na trilha sonora de uma novela da Rede Globo. A popularidade obtida pelo samba deu a Cartola uma grande oportunidade de divulgar seu trabalho, e ele passou a fazer shows pelos quatro cantos do país.
Enquanto a primeira fase de Cartola, nas décadas de 1930 e 1940, se caracterizava pela construção de sambas corridos, batucados, de quadra, a composição “As rosas não falam” consolidou seu estilo de uma fase mais madura. São músicas de linha melódica refinadíssima e de construção poética muito trabalhada: “O mundo é um moinho”, “O inverno do meu tempo”, “Peito vazio”, “Tive sim”, entre outras.
A presença de Cartola é tão forte no meio do samba que gerações e gerações creditam a ele fortes influências em sua formação musical. Em crônica publicada no Jornal do Brasil, intitulada “Cartola, no moinho do mundo”, Carlos Drummond de Andrade comenta o lirismo que a poesia de Cartola, muito reconhecida pelo poeta, expressa em sua música: “Cartola sabe sentir com a suavidade dos que amam pela vocação de amar, e se renovam amando. Assim, quando ele nos anuncia: ‘Tenho um novo amor’, é como se desse a senha pela renovação geral da vida, a germinação de outras flores no eterno jardim. O sol nascerá, com a garantia de Cartola. E com o sol, a incessante primavera...”
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