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sábado, 15 de fevereiro de 2020

ALMANAQUE DO SAMBA (ANDRÉ DINIZ)*

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Sinhô

Jura, jura, jura
pelo senhor,
jura pela imagem
da santa cruz do Redentor
pra ter valor a sua jura
SINHÔ, “JURA”


Com alcunha de “Rei do Samba”, José Barbosa da Silva foi o mais popular compositor de samba das primeiras décadas do século XX. Conhecido pelo público como Sinhô, era filho de um pintor apaixonado por choro, que tinha adoração pelos flautistas Joaquim Callado e Patápio Silva. Seu pai gostaria muito de vê-lo flautista, mas o rapaz preferiu mesmo o piano e o violão.
Frequentando os principais redutos musicais da época – a Festa da Penha, as casas das baianas, as sessões de capoeira, as batucadas na Praça Onze –, Sinhô foi adquirindo, ao piano, um jeito muito pessoal de criar melodias. Vivia se apresentando em lojas musicais, gafieiras, bailes, grandes sociedades (Clube dos Democráticos e dos Fenianos, por exemplo) e casas familiares.


A vaidade de Sinhô

Cronista carnavalesco do Jornal do Brasil e autor do pioneiro livro Na roda do samba, João Guimarães (mais conhecido como Vagalume) foi convidar Sinhô, em maio de 1920, no Teatro São José, em plena temporada de sucesso da revista Pé de Anjo, para tocar nas bodas de ouro de um amigo. O diálogo entre os dois é um perfeito exemplo da vaidade do compositor de samba mais famoso da primeira geração:
– Sinhô, meu amigo. Preciso de você.
– Pois não, meu tio. Dê suas ordens.
– Organizei uma festinha na casa do nosso amigo F., que completa bodas de ouro, e você tem que ir comigo para animar a brincadeira, pois temos lá um bom piano.
– Não há dúvida, Guima do coração. Você manda neste mulato.
– Então vamos. O automóvel está esperando.
– Ah, querido, já... É impossível. Só depois de acabar o espetáculo.
– Por quê?!
– Porque eu sou o autor da música!
– E o que é que tem Frei Tomás com Isabel de Godói? O que tem uma coisa a ver com a outra?
– O que é que tem? E se de repente os espectadores me chamarem à cena?
– Mas Sinhô, a peça já está com 174 apresentações!
– É, mas o povo é exigente. De repente cisma e começa a chamar: “Sinhô à cena! Sinhô à cena!” E se eu não estiver no teatro, olha o fuzuê formado...

Numa dessas apresentações, em festa particular, ocorreu um fato curioso.
Uma jovem, entusiasmada com o pianista, pediu que ele executasse “Élégie”, do compositor erudito Massenet. Conta-se que Sinhô, autodidata por natureza e incapaz de ler uma nota sequer, teria se livrado da tarefa respondendo à senhorita que não tocaria a peça porque não se dava com o autor.
Vaidoso, boêmio, antenado com seu tempo e compositor inspirado, tinha como temática de sua obra as relações amorosas, a crítica social e as rixas pessoais, além de um assunto recorrente: dinheiro. Sinhô encaixava com muito jeito as melodias nos versos pitorescos. E foi, com sua perspicácia, um privilegiado fornecedor de composições para Aracy Cortes, Francisco Alves, Mário Reis e Carmen Miranda.

Seu primeiro sucesso data de 1918 e nasce de uma rixa com China, Pixinguinha, Donga e sua turma. “Quem são eles?” (“A Bahia é terra boa/ ela lá eu aqui”) fez grande sucesso no carnaval e gerou uma forte resposta de Pixinguinha e seu irmão China, que retratava aspectos de Sinhô na música “Já te digo”: “...ele é alto, magro e feio/ é desdentado/ ele fala do mundo inteiro...” Após sua primeira polêmica pública, Sinhô começa a compor músicas que caem ainda mais no gosto popular, mas que com freqüência provocam querela com alguém. Em “Pé de anjo” (“Eu tenho uma tesourinha/ que corta ouro e marfim/ serve também para cortar/ línguas que falam de mim”) ele briga com Hilário Jovino. Já Heitor dos Prazeres acusa-o de ter plagiado a música “Ora, vejam só”, de melodia viva e ritmo saltitante. Aliás, as brigas com Heitor eram recorrentes. Como já vimos, Heitor acusou Sinhô de ter roubado os seus sambas “Gosto que me enrosco” (“Não se deve amar sem ser amado/ é melhor morrer crucificado/ Deus me livre das mulheres de hoje em dia/ desprezam o homem só por causa da orgia”), de um lirismo malandro, e “Dor de cabeça”. Heitor respondeu à suposta afronta de Sinhô com dois sambas, “O rei dos meus sambas” e “Olha ele, cuidado!”. O primeiro diz assim: “Eu lhe direi com franqueza/ tu demonstras fraqueza/ tenho razão de viver descontente/ és conhecido por bamba/ sendo rei dos meus sambas”. O imbróglio entre os dois compositores acabou por inspirar a frase de Sinhô que entrou para os anais do samba, caracterizando de forma lapidar os primórdios do gênero: “Samba é como passarinho: é de quem pegar.”
Do vasto repertório de Sinhô destacam-se ainda “Fala baixo”, “Amar a uma só mulher”, “Que vale a nota sem o carinho da mulher”, “A medida do Senhor do Bonfim”, “Não quero saber mais dela”, “Carinho da vovó”, “Sai da raia” e “Jura”, seu maior clássico, gravado pelo cantor Mário Reis, seu aluno de violão. Apesar de dever a todos e de mudar de casa como passarinho pula de galho, Sinhô era muito consciente do seu trabalho de compositor. Organizou um grupo de músicos que, no período pré-carnavalesco, saía pela cidade divulgando suas novas composições, o que ajudou em muito na popularização de seu repertório.
Além disso, também pagava músicos de bailes para tocar seus sambas – um jabá à moda antiga. Outro dado interessante em relação a sua carreira é que ele foi provavelmente o primeiro a exigir, de forma direta, o reconhecimento de sua autoria, com um carimbo nas partituras e uma assinatura personalizada nos discos. Sendo o teatro de revista o melhor meio de divulgação do compositor popular, Sinhô acabou consolidando na Praça Tiradentes, reduto dos teatros, sua fama de divulgador do samba urbano. E foi realmente ele, nessa primeira leva de compositores, o fixador de estilos que se perpetuariam no samba carioca. De certa forma, o título de “Rei do Samba” que José do Patrocínio Filho queria lhe conferir em uma festa – o que acabou não acontecendo – caiu como uma luva na vaidade, sagacidade e musicalidade de José Barbosa da Silva. Circulando pela elite, pela intelectualidade e pelas camadas mais simples da sociedade, Sinhô foi um privilegiado ator cultural. Sua biografia é um retrato do ser carioca, com aqueles indiscutíveis elementos simbólicos que se tornariam características de nossas brasilidades. “Ele era o traço mais expressivo ligando os poetas, os artistas, a sociedade fina e culta às camadas profundas da ralé urbana”, finalizou o poeta Manuel Bandeira.




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