AME-O OU DEIXE-O
Um dia fui ao Picasso, um café de King's Road, comprar cigarro e olhar as moças e o garçom do balcão me perguntou, num inglês com sotaque italiano, o nome do presidente do Brasil. Eu respondi tristemente: "Costa e Silva". Ele replicou: "Não. O presidente do Brasil não se chama Costa e Silva". Eu ri e disse que ele não podia querer saber melhor do que eu, que era brasileiro. Ele então insistiu, acrescentando que o nome do presidente brasileiro era Garrastazu. Eu disse que ele estava louco.
Ele riu mais do que eu e repetiu: "Garrastazu Mediei". Fiquei assustado. Eu via que aquele homem não estava louco, mas tudo o que ele dizia (aquele nome estapafúrdio!) me obrigava a pensar que sim. Foi assim que fiquei sabendo algo sobre o nosso novo presidente. Em casa, mais tarde, constatei que o cara do Picasso de fato não era maluco, e que o nome do homem era mesmo algo como aquilo que ele tentara pronunciar. Não adivinhei que sob esse nome sofreríamos a repressão mais terrível, que, no entanto, viria acompanhada do que pôde ser chamado de "milagre econômico", como que numa confirmação do destino sombrio da América de colonização católica. Quando meus pais iam fazer quarenta anos de casados, Bethânia conseguiu das autoridades militares brasileiras uma permissão especial para eu entrar no país. Ao desembarcar no Rio, fui separado de Dedé por três homens que saíram de
um fusca estacionado junto à escada do avião. Eram militares à paisana. Eles me levaram para um apartamento na avenida Presidente Vargas e ali me interrogaram e ameaçaram por seis horas. Tive muito medo, muita angústia. Diante de um gravador de rolo ligado (onde terão ido parar essas fitas?), os homens que me levaram - mais os que estavam à minha espera (todos se identificaram como oficiais, mas usavam roupas civis) exigiram que eu compusesse uma canção de propaganda da Transamazônica, a estrada que o governo militar começava a construir e que era um dos símbolos do "Brasil Grande", declinaram a lista dos artistas meus colegas que estavam colaborando com eles (inclusive, segundo eles, como denunciantes de subversivos), pediram esclarecimentos sobre minhas relações com Violeta Gervaiseau e os Arraes no exílio e, quando eu já tinha conseguido me desobrigar de compor sobre a Transamazônica, impuseram as condições de minha estada de um mês: eu teria que seguir logo para Salvador, onde devia permanecer (e de onde não podia sair) até a volta para Londres; estava proibido de cortar o cabelo ou fazer a barba enquanto estivesse em território nacional (temiam que parecesse obra deles); não podia recusar entrevistas com a imprensa, mas teria que dá-las por escrito e submetê- las a leitura prévia por parte de agentes federais que me vigiariam durante toda a estadia; finalmente, era obrigado a fazer duas apresentações na tv, uma no programa do Chacrinha e outra no Som Livre, Exportação, o novo musical da tv Globo, para que "tudo parecesse normal".
Enquanto eu sofria esse interrogatório (em que me diziam repetidas vezes que eu talvez não fosse liberado) Dedé me esperava em casa de Bethânia juntamente com Glauber e Luís Carlos Maciel. Bethânia morava num apartamento da rua Nascimento Silva em Ipanema e a caminhonete da Polícia Federal que me levava (agora já não era o fusca cheio de militares disfarçados, mas uma viatura policial cheia de policiais indisfarçáveis) fez uma volta pelo Jardim de Alá (ou terá sido pelo canal do Leblon?) e ali eu vi pela janela os componentes do
conjunto MPB4, que passaram bem perto de mim sem me ver. Senti uma emoção muito forte, uma emoção que se repete toda vez que falo ou penso nisso.
Eram as primeiras pessoas conhecidas que eu via nessa chegada ao Brasil, e o fato de vê-los sem ser visto, depois de tantas horas de reiteração da hostilidade com que a repressão me despachara do país, dava à visão um caráter de sonho que amplificava seu poder simbólico. Eram músicos, músicos da minha geração e tão brasileiros, e tinham institucionalizado a sigla mpb em seu nome de grupo - eu me sentia diante de uma essência, de uma realidade profunda - e um grande amor (não há outra palavra) pela história, pelo destino se acendeu em mim. Eu os amava como a gente imagina que alguém que já morreu pode amar os que ainda vivem: do ponto de vista da eternidade. Meus olhos se encheram de lágrimas. Não sei se chegaria à casa de Bethânia psicologicamente inteiro se não houvesse havido esse encontro secreto.
Quando cheguei, Glauber me olhou com uns olhos muito penetrantes que logo se tornaram desconcertados por causa da resposta incisiva dos meus (eu quis transmitir-lhe, nessa resposta, todo o conteúdo dos encontros com os milicos e com o MPB 4: seus olhos me disseram que isso não era possível). Maciel estava sereno e carinhoso, Bethânia mostrando o máximo de alegria por ter conseguido reunir todos os irmãos para as bodas de nossos pais (só eu faltaria, não fosse por ela). Todos estavam tentando minimizar - ou destruir - o peso das horas angustiosas de espera: agora estávamos juntos, era o que contava. Dedé é que, modestamente, fazia com que isso fosse de fato possível.
O programa Som Livre, Exportação, filho do tropicalismo (a expressão "som livre" - para não falar na idéia oswaldiana de "exportação" - foi lançada por mim no programa Divino, Maravilhoso) e dos festivais, neto do Fino da Bossa e da bossa nova, era comandado pelos talentosíssimos (e então recém lançados) Ivan Lins e Gonzaguinha.
Na verdade, essas minhas aparições televisivas foram combinadas, não sei exatamente em que termos, entre Benil Santos e alguns oficiais. Benil era, então, empresário de Bethânia (e do humorista Chico Any sio, que, logo em seguida à nossa saída do Brasil, tinha oferecido, por carta, uma ponte de negociação com as autoridades militares para minha volta - negociação que eu recusara). Tudo fazia com que eu me sentisse bastante mal, mas fiz as apresentações com o coração aberto (uma delas ao lado de Bethânia, que, lindíssima, cantou "Janelas abertas", na 2ª e "A tua presença, morena", as duas músicas novas que eu tinha feito para ela gravar). A platéia do Som Livre era constituída de jovens cariocas que nada sabiam a respeito de minha prisão e tinham uma ideia pop-rock da contribuição que eu dera à modernização da mpb. Era bem uma plateia sintonizada com essa sigla, tal como ela se afirmara naquele momento. Tinha se passado pouco mais de um ano da minha saída e eu me via frente a frente com o pós-tropicalismo. Os garotos nus da cintura para cima e as garotas de cabelos longos e lisos ovacionaram meu nome. Eles mostraram esperar de mim uma versão mais madura e mais sofisticada daquilo que estavam aprendendo a cultuar: uma fusão do pop inglês com o samba-jazz carioca. Entrei apenas com meu violão e cantei "Adeus, batucada", o genial samba de Sinval Silva que fora a mais bela gravação de Carmen Miranda. Nada podia ser mais fiel à história tropicalista: um contraste gritante com o samba-jazz e com a fusion, uma referência a Carmen Miranda (e justamente com um samba em que a grande exilada da música popular brasileira dizia que ia "embora chorando, mas com o coração sorrindo", pois ia "deixar todo mundo valorizando a batucada"): a garotada ficou perplexa e decepcionada. Passou despercebido o fato de que era a primeira vez que eu me apresentava na tv brasileira tocando meu violão.
Nunca esqueço o momento em que, na Bahia, tendo aceitado uma carona do noivo de Cláudia, a irmã mais nova de Dedé, percebi, ao sair do carro, o adesivo no vidro traseiro com os dizeres "brasil, ame-o ou deixo- o". Cheguei a sentir uma dor física no coração. Era o slogan triunfante da ditadura. Suponho que copiado de uma campanha americana, o conselho se dirigia aos opositores do regime, confundindo de uma vez por todas este com o país. Eu, que amava o Brasil a ponto de quase não ser capaz de viver longe dele, e que me via obrigado a isso pelo regime que ditara aquele slogan, considerei a amarga ironia de ter circulado pelas ruas de Salvador num carro que grosseiramente o exibia aos passantes. Não briguei com meu concunhado por causa disso. Ainda hoje nos damos bem e ele, que então era pouco mais que uma criança, tem uma visão diferente da política.
Mas foi uma horrível tristeza constatar que meus problemas de amor com o Brasil eram mais profundamente complicados do que eu era capaz de admitir. Com efeito, muitos dos meus amigos mais queridos e admirados estavam entrando ou saindo de manicômios e prisões, numa espécie de introjeção da violência sagrada dos que partiram para a luta armada e da violência maldita dos que detinham o terrorismo oficial. Rogério esteve internado um longo tempo e não estou seguro de que não lhe tenham dado eletrochoque.
Voltei para Londres apavora do. Julguei que talvez muitos anos se passassem antes de me ser possível voltar para o Brasil de vez. Não me parecia mesmo provável que tão cedo eu pudesse sequer visitar outra vez o país. Ralph Mace estava animado com nosso trabalho e completamos o primeiro disco. A princípio Lou Reisner era o produtor (e fez faixas fundamentais como "London, London" e "In the hot sun of a Christmas day "), mas ele e Mace se desentenderam e este último tomou as rédeas. Até hoje esse disco me desagrada por lembrar-me demais minha depressão e minhas limitações pessoais. Mas foi um sucesso de estima brasileiro e a faixa "Asa- Branca", uma versão pessoal e harmonicamente pobre do clássico de Luiz Gonzaga, justificava para mim a existência do disco. A vinda ao Brasil, no entanto, tinha me reanimado de algum modo. Apesar do pesadelo do dia da chegada, o mero fato de ter revisto coisas, pessoas e lugares do Brasil conferia ao país uma realidade que a perspectiva do exílio sem retorno já estava diluindo. Gal tinha ficado no Brasil como uma espécie de representante do grupo baiano tropicalista. Seu show Fa-Tal/ Gal a todo vapor, concebido e dirigido por Waly, era o dínamo das energias criativas brasileiras - e todos os artistas, cineastas, jornalistas e jovens em geral reconheciam isso. Bethânia iniciava sua parceria com Fauzi Arap - o show Rosa dos Ventos é um marco na história dos espetáculos de música no Brasil, sendo o mais bem-sucedido desse gênero exclusivamente brasileiro que é o show de longa temporada com um artista solo, feito de canções e textos, com belas imagens teatrais, a que se assiste como a um grande filme de arte. Em suma, o Brasil, apesar de tudo, existia e parecia exibir recursos de recuperação. Toda a minha "torcida" passou a ser nesse sentido. Isso me animava. Macalé tinha lançado uma canção em parceria com Capinan no festival da Globo no Rio (o tal Festival Internacional da Canção) chamada "Gotham City " em que ele revivia o clima das apresentações tropicalistas - e recebeu as vaias (e o acompanhamento jornalístico) correspondentes. Escrevi convidando-o para tocar comigo em Londres.
Ele aceitou. Minha idéia era fazer um grupo que tocasse a partir do meu próprio modo de tocar violão. Tuti Moreno já estava morando em Londres e Áureo de Sousa tinha chegado para passar algum tempo. Juntamente com Tuti, ele se encarregaria da bateria e da percussão. Escrevi para a Bahia chamando Moacir Albuquerque, o belo e talentoso irmão de Perinho, para trazer "um contrabaixo baiano" para a minha banda. Ele também aceitou. Daí é que nasceu Transa, um dos meus discos preferidos. Não que eu o ponha hoje para ouvir (não faço isso com nenhum dos que fiz, a não ser que haja um motivo especial para isso, o que faço como trabalho pouco prazeroso), mas a simples lembrança de que ali se deu minha primeira tentativa de criar um som a partir de minhas próprias ideias me enche de alegria. Entreguei a direção musical a Macalé, que era um violonista de verdade, mas o que nós criamos juntos em nossos ensaios no Arfs Lab só poderia ser criado para um trabalho meu. Gravamos o disco como se fosse um show, em duas ou três sessões. Mace ficou entusiasmado (até hoje se orgulha de tê -lo produzido), mas um telefonema de João Gilberto mudou o rumo da minha vida. Violeta Arraes Gervaiseau me punha, na medida do possível, a par da situação no Brasil. As esperanças de voltar de vez oscilavam. Eu nem precisava me prometer que era o que faria tão logo soubesse que isso era possível, uma vez que tinha essa certeza bem tranqüila no fundo do meu coração. Mas os trabalhos de Transa e as lembranças recentes do Brasil me deixaram mais receptivo para o que há de bom em Londres e passei a amar o verde dos parques, a calma das ruas em forma de crescente, das vielas, os musgos e as flores, enfim, a sabedoria de vida que há ali, de uma forma genuína e intensa, como nunca sonhara antes que poderia. Eu respeitava os jardins públicos e privados com verdadeira reverência, mas cada dia roubava uma rosa em algum deles para trazer para
Dedé. Raspei a barba e deixei de me sentir sempre triste. Fizemos uma apresentação de Transa no Queen Elizabeth Hall, organizada por Mace e pela gravadora. O teatro se encheu de brasileiros residentes e de amigos ingleses e o show foi muito bonito.
Leslie Gould, o chefe de Mace na Famous Records, me chamou para conversarmos e, para minha surpresa, começou a referir-se ao que ele dizia ser minha beleza física. Me olhava de frente, depois de perfil e - sem nada que indicasse interesse sexual - parecia feliz por confirmar uma opinião. Ele estava apenas agindo como um executivo de empresa interessado num projeto para o qual me supunha útil. Era o filme que Zeffirelli iria começar a rodar sobre são Francisco de Assis, Irmão Sol, irmã Lua.
Gould julgava que eu tinha a cara ideal para o papel - e isso servia aos propósitos da gravadora em relação a mim. Queria que eu fizesse as canções para o filme (na verdade Donovan já tinha feito várias, mas eles queriam mudar isso), cantasse-as, e fizesse o papel do santo. Eu mal podia crer que tudo isso fosse a sério. Mas pouco tempo depois estávamos embarcando para Roma - Dedé, Guilherme e eu - ao lado de Gould. Depois de uma primeira noite assombrosa (deslumbrados com Roma, que não conhecíamos, Dedé e eu fomos com Guilherme à fonte de Trevi e ali, certamente por causa do meu cabelo grande, policiais nos prenderam, pois o Hotel Excelsior da via Veneto tinha retido nossos passaportes por algumas horas, como é de praxe na Itália: só fomos soltos ao nascer do dia), fomos à casa de Zeffirelli na via Ápia. Era uma mansão impressionante, cheia de esculturas e peças bonitas, obras de arte e mobílias fantásticas, mas tudo parecia um tanto artificioso. O dono da casa nos recebeu animadamente e foi logo pegando no meu rosto e examinando-o para concluir que eu era parecidíssimo com Florinda Bolkan, a brasileira que estava fazendo uma carreira de atriz na Itália. Mas já estava lá um garoto inglês de olhos claros que faria o papel de são Francisco. Restou a conversa sobre a música. Zeffirelli pediu que eu cantasse qualquer coisa ao violão. Cantei o samba ''Escurinho", de Geraldo Pereira. Ele comentou alguma coisa sobre uma canção de Erasmo e Roberto Carlos que tinha ganho uma versão italiana e que ele achava parecida com "La paloma". Não era. Ou o era tanto quanto eu sou parecido com Florinda Bolkan. De algum modo ficou decidido que eu cantaria as canções de Donovan e comporia as restantes. Eu ria por dentro ao pensar que o cara da Paramount (Gould) é que estava propondo um mulatinho brasileiro magricelo para o papel de são Francisco, enquanto o diretor do filme queria um inglês convencionalmente bonito e de olhos azuis. Voltamos para Londres com as canções de Donovan numa fita. Cheguei a fazer uma primeira gravação de "Brother Sun and sister Moon", mas vim ao Brasil nesse meio tempo. João Gilberto ligou tarde da noite. Estávamos em nosso apartamento de Notting Hill Gate. A princípio não acreditamos que fosse ele realmente, mas logo percebemos que era verdade. Ele me chamava para juntar-me a ele e a Gal num especial de tv que já estava sendo rodado em São Paulo. Descrevi para ele todos os tormentos que tinha sofrido quando de minha vinda para o aniversário de meus pais. Ele assegurava que nada disso iria acontecer mais: "É Deus quem está me pedindo para eu lhe chamar. Ouça bem: você vai saltar do avião no Rio, todas as pessoas vão sorrir para você. Você vai ver como o Brasil te ama". Tinham se passado apenas alguns meses desde minha vinda angustiosa e eu não podia acreditar, mas não me dava o direito de descrer da palavra de João. Sobretudo não poderia desobedecer a ele. Amedrontado, me vi decidido a embarcar com Dedé no dia seguinte. Ao desembarcar no Rio, tudo se deu como João Gilberto tinha profetizado. As pessoas da alfândega e da imigração nos trataram como se nunca tivesse havido problema comigo no país. Dedé me olhava estupefata. Nós nos sentimos reaconchegados no mundo e chegamos a São Paulo com outra perspectiva do futuro. João e Gal nos esperavam no estúdio de televisão. Eu olhava para João com um assombro multiplicado. Ele sempre fora meu herói brasileiro, meu artista preferido na música popular moderna, mas essa ligação mágica com minha volta ao Brasil dava a ele um caráter quase sobrenatural. É indescritível o impacto que teve sobre mim a riqueza de sua arte quando vivida na intimidade: ele cantando e tocando "Retrato em branco e preto" e "Estrada branca", de tom Jobim, e "Quem há de dizer", de Lupicínio Rodrigues, nessa noite - e tantas outras canções nas noites subsequentes - são momentos inesquecíveis para mim. Eu não conseguia falar. Ele não calava um segundo. Sua inteligência e inspiração para conversar eram tão grandes quanto para cantar e tocar. A ideia que eu sempre fizera dele como um artista de visão abrangente e reveladora não apenas se confirmou: cresceu imensuravelmente, pois ele o era com maior intensidade do que eu poderia ter suposto - e muitas vezes isso se mostrava de modos totalmente surpreendentes para mim.
Todas as palavras heideggerianas de Rogério sobre o Ser - sobre estar-se aberto para o Ser e ser Seu guardião - pareciam tomar corpo naquele homem mais louco que os loucos e mais lúcido que os sãos; aquele sedutor que encantava avassaladoramente sem possuir uma gota de glamour; aquele artista que se provava ainda mais artista quando não estava exercendo sua arte, pois ficava patente que esta é que o levava a chegar a si mesmo; aquele santo demoníaco, a um tempo dominador e desprotegido, compassivo e sarcástico. A bossa nova fora ele, era ele - e para isso fora preciso que ele fosse muito mais do que ela. Tal como tantos outros músicos, João se refugiava em alguma espécie de misticismo (ioga, não sei), mas a impressão que me ficava era a de que ele sabia tanto quanto eu que o que ele produzia era algo maior do que quaisquer misticismos. De todo modo, eu não podia deixar de atribuir algum valor mágico às suas profecias referentes àquela minha vinda ao Brasil.
Voltamos para a Inglaterra com novo ânimo. A partir daí, minha vida em Londres ficou luminosa - e, à medida que as gravações e os shows com a banda de Transa iam cada vez melhor, eu e Dedé só cogitávamos de preparar a volta definitiva para o Brasil. Mace tentou persuadir-me a ficar: por que deixar Londres justamente quando seus (nossos) esforços pareciam começar a dar frutos? Mas eu apenas procurei reconfirmar com Violeta e outros brasileiros em Paris - e no Brasil a possibilidade de aceitação tranquila de minha presença no país. Entregamos a casa alugada em Golders Green, no Norte de Londres, e deixamos a Inglaterra de uma vez. Não senti nem o mais ínfimo e remoto esboço de tristeza, arrependimento ou saudade de lá. Eu era todo vontade de voltar para o Brasil. Afinal, esse era o momento de libertação da prisão, momento pelo qual eu tanto esperara e que, a rigor, nunca tinha se dado. Chegamos no Rio em janeiro de 72. Eu decidira que apresentaríamos o show de Transa imediatamente. Tínhamos o Teatro João Caetano agendado para o dia seguinte ao da nossa chegada. Fizemos ali o show por duas ou três noites seguidas.
Depois o repetimos em São Paulo, Recife e, finalmente, Salvador. O show era mais ou menos o mesmo que havíamos feito no Queen Elizabeth Hall. Até o equipamento de som (que eu comprara por sugestão - e sob a orientação - de Ralph Mace) tinha vindo comigo de Londres, juntamente com o técnico, Maurice, um inglês que não falava uma palavra de português e que nunca mais saiu do Brasil. O show era muito mais longo do que o do Queen Elizabeth Hall, porque eu queria dizer muitas coisas e estava com muita saudade de cantar em casa. As plateias em geral ficaram bem impressionadas.
Mas, apesar de as pessoas também estarem com saudades de mim, houve casos de espectadores saírem antes de o show terminar (mas creio que só em São Paulo), quando, ao cantar "Quero que vá tudo pro inferno", de Roberto Carlos, numa versão ralentada, eu repetia o refrão (..."e que tudo mais vá pro inferno") por cerca de cinco minutos. Mas Áureo e Tuti tocando duas baterias em uníssono sincrônico, as sutilezas do violão de Macalé em contraponto com o meu e o baixo sexy de Moacir nos enchiam a todos - executantes e espectadores - de prazer. Tal como já fizera em Londres e em Paris, ao cantar "O que é que a baiana tem» , de Cay mmi, eu imitava os trejeitos de Carmen Miranda, torcendo as mãos e revirando os olhos. Era uma imitação distanciada ("brechtiana", dir-se-ia no Brasil de então), com paradas bruscas e desarme do tipo, num comentário da situação do exílio e das relações do Brasil com o mundo exterior. Mas ainda assim era uma imitação - e isso contava como ousadia antimachista, reforçando a minha ambigüidade sexual já comentada antes de nossa saída do Brasil. Em Salvador, a platéia do Teatro Castro Alves cantou comigo "Eu e a brisa" de johnny Alf (cuja harmonia me tinha sido ensinada por Moacir Albuquerque) de modo tão bonito que até hoje lembro disso como sendo um dos momentos mais altos de minha vida na música.
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