Páginas

terça-feira, 17 de setembro de 2019

LENDO A CANÇÃO

Por Leonardo Davino*




Canção amiga


Texto de Camila Novaes Maia, graduanda em Letras (ILE/UERJ), voluntária PIBIC no Projeto de Pesquisa Poesia e Transdisciplinaridade: a vocoperformance, de responsabilidade do professor Leonardo Davino de Oliveira (CULT/ILE/UERJ).


Em 2015, o cantor, compositor e poeta Tibério Azul participou do projeto Mil Tom, uma coletânea de artistas brasileiros interpretando canções de Milton Nascimento. A “Canção amiga” foi escolhida exatamente por ser um poema de Carlos Drummond de Andrade musicado por Milton, inserindo-se na pesquisa desenvolvida por Tibério da relação entre música e poesia
Na versão de Tibério, destacam-se os elementos de frevo na melodia. Um frevo – maracatu atômico – mais lento, remetendo-se a sua terra natal Pernambuco. Pode-se notar pelos instrumentos utilizados uma grande diferença da versão de Milton Nascimento: enquanto na versão deste a combinação do violão, flauta e violoncelo tornaram o canto mais melodioso, o uso de bateria, baixo, teclado e violão da versão de Tibério tornam o canto mais falado e com muitos ataques consonantais, tematizando a canção do título. Ainda assim, há a passionalização na interpretação de Tibério, mesmo que ela surja aos poucos, à medida que as estrofes vão sendo vocalizadas, até sua quase predominância no final.
Os ataques consonantais durante a canção tematizam o preparo da canção, o seu fazer poético, materializando a própria ideia da “Canção amiga”, o próprio fazer cancional. Enquanto na interpretação de Milton o destaque é o sujeito cancional poeta-cantor, cantando sobre o preparo íntimo e lírico de sua canção e sua meta, na interpretação de Tibério o destaque é a própria canção, o seu preparo, o embate entre cantor e meta, a “canção amiga” em si dizendo seu objetivo.
Na primeira estrofe podemos sentir os ataques das consoantes p, c, ç (com som de s), q, m e r tematizando o trabalho da construção da “Canção amiga”. Enquanto na interpretação de Milton, a ênfase na primeira estrofe era na palavra “minha” – no verso “em que minha mãe se reconheça”, na interpretação de Tibério, a ênfase está na expressão “como dois olhos” – no verso “e que fale como dois olhos”.
Ou seja, a ênfase aqui é na meta da canção, uma canção que traga identificação universal, e para isso ela deve ser tão expressiva a ponto de dispensar palavras, com a imagem sinestésica auditivo-visual – “fale como dois olhos”. Destaca-se a passionalização nesse verso, podendo se sentir a vogal o na frase “fale como dois olhos”, enfatizando ainda mais sua meta: trazer a mensagem de amizade e união.
Na terceira estrofe, Tibério Azul canta Eu distribuo segredos em vez de Eu distribuo um segredo, não sendo a única mudança que ele faz nessa estrofe. Ele canta De um jeito mais natural em vez de No jeito mais natural; e dois caminhos se procuram em vez de dois carinhos se procuram. Como a ênfase não está no sujeito cancional (“Eu preparo”) e sim o processo (“Uma canção”), aqui temos a ideia de generosidade da própria canção, que distribui palavras, seus segredos mais íntimos, com a meta de unir os povos (ouvintes). Não à toa o desejo de união é mais uma vez presente nessa estrofe com a troca de carinhos porcaminhos.
A construção da poesia e a ideia de união persistem na quarta estrofe: com a primeira pessoa do singular (minha) dando lugar a primeira pessoa do plural (nossas) e ambas “formam um só diamante”. As palavras se tornaram mais belas, depois de sua construção durante toda a canção; a fala foi se tornando mais melodiosa no decorrer de cada estrofe, com os ataques consonantais se tornando menos frequentes sendo sobrepostas pelo alongamento das vogais.
Noutras palavras, ao longo da interpretação, temos um jogo entre tematização (ataques consonantais) e passionalização (prolongamento das vogais). Essas oscilações de tessitura estruturam a ideia de união sendo confirmada na construção da própria canção, onde aos poucos a construção das palavras se une com a melodia, construindo assim a poesia em si.
A canção cumpre sua meta: “acordar os homens” para a possibilidade de inseri-los nesse mundo solidário e cheio de comunhão entre todos; e “adormecer as crianças” permitindo que a próxima geração nunca deixe de sonhar, de ter esperança.


***
Canção amiga
(Carlos Drummond de Andrade)


Eu preparo uma canção
em que minha mãe se reconheça,
todas as mães se reconheçam,
e que fale como dois olhos.

Caminho por uma rua
que passa em muitos países.
Se não me vêem, eu vejo
e saúdo velhos amigos.

Eu distribuo um segredo
como quem ama ou sorri.
No jeito mais natural
dois carinhos se procuram.

Minha vida, nossas vidas
formam um só diamante.
Aprendi novas palavras
e tornei outras mais belas.

Eu preparo uma canção
que faça acordar os homens
e adormecer as crianças.








* Pesquisador de canção, ensaísta, especialista e mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e doutor em Literatura Comparada, Leonardo também é autor do livro "Canção: a musa híbrida de Caetano Veloso" e está presente nos livros "Caetano e a filosofia", assim como também na coletânea "Muitos: outras leituras de Caetano Veloso". Além desses atributos é titular dos blogs "Lendo a canção", "Mirar e Ver", "365 Canções".

Nenhum comentário:

Postar um comentário