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sábado, 17 de agosto de 2019

VERDADE TROPICAL (CAETANO VELOSO)*

Verdade Tropical - Caetano Veloso

PARTE III

NARCISO EM FÉRIAS


O dia já estava nascendo e eu ainda não tinha conseguido dormir quando os agentes da Polícia Federal chegaram para me prender. O som da campainha em hora tão inesperada provocou maior irritação do que surpresa. Eu estava sob as cobertas e justamente ingressava num estado em que a entrega ao repouso parecia começar a se tornar possível: em que projetos entusiasmantes, medos inexplicáveis, alegrias inoportunas - e a costumeira inveja de Dedé que, como sempre, adormecera tão facilmente ao meu lado - começavam a se dissolver na doce aceitação do esquecimento de tudo, disfarçada em atenção concentrada numa imagem ilusoriamente nítida, numa lembrança enganosamente verídica ou numa ideia simuladamente precisa - em suma, experimentava a sensação de estar prestes a adormecer quando a campainha soou. Ou melhor: o som da campainha me pôs de repente consciente de que esse processo usual estava em curso. Como não era a primeira vez que isso se dava naquela noite (eu já tinha me aproximado do sono algumas vezes, mas campainhas internas tinham disparado - na forma de regozijo por pensar que afinal estava adormecendo, ou na forma do mero medo de adormecer, ou ainda na forma da inadequação, como indutor do sono, de algum aspecto da imagem, ideia ou lembrança convidada) pensei depois, e freqüentemente penso ainda hoje, que, se a polícia não tivesse ido me buscar, eu talvez tivesse adormecido exatamente naquele momento, o que deixa em mim uma impressão de ter experimentado o gosto secreto do destino.
Hilda, a empregada paraibana de quem tanto gostávamos, veio até a porta do nosso quarto para dizer, confusa e embaraçada, que havia uns homens querendo falar comigo. O sentimento que me dominou, ao chegar à sala e encontrar os policiais, foi de impaciência: vi-me diante de um incômodo que prometia durar um bom par de horas. Havia algo estranho no modo nervoso como aqueles homens sorriam, e a amabilidade exagerada não deixava de trair uma promessa de agressão. Pouco depois entendi que eles estavam na dependência da minha reação para decidir sobre sua conduta: qualquer tentativa de fuga ou resistência encontraria resposta imediata numa destreza e numa violência que estavam apenas cobertas por um tênue verniz de polidez. Eles diziam que as autoridades militares queriam me fazer algumas perguntas, e eu, muito mais ingênuo do que
eles podiam imaginar, acreditei. Parecia-lhes pouco provável, no entanto, que alguém levasse tal eufemismo ao pé da letra, e, enquanto eu tentava conseguir detalhes sobre o que ia se passar, eles iam abandonando relutantemente a expectativa de que talvez eu reagisse a uma prisão que nem sequer sabia que estava se efetuando.
Um deles, então, fez uma sugestão que primeiro me pareceu estapafúrdia mas logo me encheu de medo: "É melhor você levar sua escova de dentes". Ainda tentei pedir explicações para esse conselho, mas eles deram mostras de que já não queriam perder tempo. Uma repetida referência ao encargo de, ao saírem dali, irem buscar Gilberto Gil em casa dele, me trouxe à lembrança o fato de Gil estar possivelmente dormindo em algum outro cômodo do meu próprio apartamento. Ele começava um namoro com Sandra, a irmã mais velha de Dedé que tinha vindo da Bahia passar umas semanas conosco, e nós tínhamos ido deitar deixando os dois a sós na sala. Talvez a caminho do banheiro em busca da escova, decidi com Dedé que seria bom ela avisar Gil. Tenho certeza de que pedi a ela que o aconselhasse a voltar para sua casa e esperar os policiais lá. Gil morava numa extremidade da praça da República, que pode ser considerada uma continuação da avenida São Luís, onde fica o prédio em que Dedé e eu vivíamos. Para ir a pé do meu prédio ao dele era preciso somente atravessar a avenida Ipiranga e andar meio quarteirão. Por alguma razão, pareceu-me que os policiais considerariam suspeito o fato de um dos elementos que eles tinham saído para buscar estar na casa do outro.
Mas não estou seguro dos motivos que me dei para, em vez de sugerir ao Gil que sumisse, aconselhá-lo a ir para seu apartamento esperar a prisão. De todo modo, foi com um recado nesse sentido que Dedé foi ao seu encontro onde quer que ele estivesse dentro do meu apartamento, e ele saiu sem que os policiais sequer notassem o nosso esforço de comunicação. É claro que nem Gil nem eu imaginávamos que seríamos presos. Não havia expectativa de que nada de grave pudesse acontecer conosco. Exceto o comentário (privado) feito pelo humorista Jô Soares e aquela profecia saída da boca de um conhecido supostamente em transe e que nos tinha sido relatada meses antes por Roberto Pinho (profecia esta que afinal se revelou assustadoramente precisa quanto às datas e às circunstâncias), nós não tínhamos muito por que pensar que os militares quereriam nos prender. Estávamos tão habituados a hostilizações por parte da esquerda, éramos tantas vezes acusados de alienados e americanizados, que quando me vi diante daqueles policiais, imaginei que me estavam levando para uma conversa com algum oficial de São Paulo, o qual nos trataria como rapazes interessados apenas em divertir o público, e, no máximo, exigiria explicações sobre nossa participação na famosa passeata dos 100 mil. Essa passeata contara com a quase-totalidade da classe artística brasileira, de modo que não nos seria difícil explicar nossa adesão como resultado de uma natural pressão de grupo.
Mas quando decidi mandar dizer a Gil que fosse para casa esperar a Polícia Federal, a sugestão de levar a escova de dentes já me tinha sido feita. E eu já estava com medo. Não era, de modo nenhum, um medo que correspondesse ao tamanho do que de fato estava começando a acontecer. Mas era suficientemente grande para me fizer ver à frente longos momentos de desconforto, dos quais estava em minhas mãos poupar Gil. Em nenhum momento, até que nós estivéssemos presos e em péssimas condições, me ocorreu, de fato, fazer isso. Foi tinha a firme certeza de que era perfeitamente natural que Gil vivesse tudo aquilo junto comigo.
Essa certeza pareceu-me menos firme diante da situação tão pouco natural que se estabeleceu à porta do prédio de Gil, com os policiais preparando-se para a eventualidade de este não estar em casa ou de, diferentemente de mim, reagir à prisão. De dentro da caminhonete em que eles me trouxeram até ali, eu procurava não deixar escapar nada - nem um gesto, nem um olhar - que revelasse meu conhecimento do fato de que ele estava em casa e que viria em boa paz. A sensação de que eu liderava a cena falsa da chegada de Gil à caminhonete, quando ambos fingimos que não nos tínhamos sequer visto na noite anterior, foi o auge do meu mal-estar, mas isso não chegou a me fazer ver que eu tinha tido o poder de poupá-lo e, portanto, o dever de pelo menos tentar fazê-lo.
No entanto, como nossa combinação tinha se dado através de Dedé - e, portanto, eu ainda não tinha visto Gil desde que tudo começara -, vê-lo surgir à porta do edifício me fez sentir como se eu é que estivesse trazendo os policiais para prendê-lo. A estranheza que causava a visão do centro de São Paulo àquela hora da manhã intensificava a vertigem, e tudo em mim se perguntava o que estávamos fazendo naquela cidade, naquela profissão, naquela vida. Gil andando pela calçada vazia em direção à caminhonete; os homens que tinham ficado em minha guarda comentando entre aliviados e decepcionados que ele também não tinha resistido à prisão ("Pronto, vamos"); eu próprio olhando através do vidro – tudo parecia estar sendo visto de fora e de longe por uma consciência minha muito límpida e muito limitada. Eu como que via tudo com uma clareza exagerada e, no entanto, não era capaz de ir longe em nenhum tipo de encadeamento de idéias: não me ocorreu que talvez fosse melhor para Gil que ele fugisse e, no fundo, como eu agia por medo, fantasiava vagamente que eu o impedia de ter, ele próprio, essa ideia. De todo modo, ainda hoje sinto que estava naquele momento mais cônscio do que Gil de que nós estávamos correndo um risco maior com os militares da direita do que as agressões dos estudantes da esquerda nos teriam permitido imaginar. Tempos depois, quando ouvi contar como nosso colega Geraldo Vandré - contra quem o ódio dos militares era ilimitado por causa de uma sua canção que aparentemente os desrespeitava - conseguiu fugir, esconder-se e, finalmente, sair do país sem que a repressão lhe tocasse um dedo, pensei que, na verdade, eu tinha prendido Gil.
Estávamos numa caminhonete robusta, na companhia daqueles homens a quem nunca tínhamos visto e cujas maneiras e aparência eu nunca imaginara que viesse um dia a ver de perto. Nenhum deles usava farda ou qualquer outro signo exterior que revelasse sua função. Tampouco a caminhonete era uma viatura de polícia que pudesse ser reconhecida como tal. Isso emprestava aos seus modos decididos mas vulgares um ar sinistro. Depois de rodarmos por muito tempo por ruas de São Paulo, vimo-nos pegando uma grande estrada. Quando pedimos explicação para esse fato, eles nos disseram com rudeza que não tínhamos o direito de fazer perguntas. Mas conversavam entre si sem procurar esconder o fato de que rumávamos para o Rio. Naturalmente eles tinham me mostrado carteiras de policiais ao falar comigo em meu apartamento. Mas eu apenas fingi que olhei: não tinha me ocorrido pôr em dúvida a legitimidade daquela visita; eu tinha mais que tudo pressa de que o episódio terminasse, e, de todo modo, não saberia reconhecer a autenticidade de um documento de identificação de policial.
Assim, nós nos sentíamos como vítimas de um sequestro comum, embora de certo modo soubéssemos que estávamos exatamente inaugurando um período em que, no Brasil, cada vez mais pessoas sentiriam medo das autoridades e não dos delinquentes, culminando com o refrão de Chico Buarque nos anos 70: "Chame o ladrão!".
Mal entramos na estrada, adormeci sem que precisasse me distrair ou enganar para isso. Quem leu os primeiros períodos deste capitulo pode ter se perguntado com um riso de mofa, em face das longas digressões sobre o sono (que juro ter me esforçado para reduzir ao mínimo), se afinal era Marcel Proust quem aqui relatava sua prisão. Anos antes dessa manhã em que fui preso, Rogério Duarte me disse, com aquele seu poder de me impressionar, que não sei quem tinha dito que a primeira regra para escrever bem era não imitar Proust. Eu não tinha lido Proust então e nem mesmo pensava em fazê-lo. Foi um deslumbramento quando o fiz e esse deslumbramento dura até hoje. Não teria a coragem de sequer pensar que ousaria tentar imita-lo. Mas acontece que gosto dos períodos longos e, na verdade, acho que não sei me expressar, mesmo em conversas, de outra maneira. E o tema do sono, da dificuldade de dormir, das sutilezas do adormecer, se é relevante para a apreciação de todos os aspectos da minha vida, é fundamental para a narrativa deste episódio da prisão. Adormeci ao lado de Gil, no banco de trás da caminhonete da Polícia Federal, de um modo irresistível e incontrolavelmente agradável, o que, apesar de eu gastar muitas horas todas as noites na cama tentando conciliar o sono, não me era desconhecido absolutamente. Muitas vezes, no fim da tarde ou, já manhã avançada, depois de ter desistido de tentar dormir, eu via coincidirem em mim a certeza e o desejo de adormecer. Aproximar a ideia de dormir da ideia de morrer é um lugar-comum.
Mas é incomum que alguém confunda essas coisas a ponto de tornar-se incapaz de encontrar prazer em saber que, cansado e sonolento, tem o tempo, o espaço e o conforto necessários para um longo sono que lhe reafirmará a vida. Fui um bebê que não queria dormir: minha mãe conta - e, na verdade, eu bem me lembro - que permanecia excitado e atento a tudo o que se passasse e, mais que isso, a tudo o que pudesse vir a se passar. Sempre achei difícil acreditar que eu, o mesmo que estava ali lúcido falando, ouvindo, agindo e pensando, estaria, dali a alguns minutos, inconsciente, sendo visto sem ver, ouvido sem ouvir, presente para os outros e ausente de mim. Por muitos anos atribuí isso a um apego à vida desperta, à vigília e à consciência. "É muita perda de tempo, dormir", dizia. E, embora muitas vezes fosse tomado, na cama, por uma angústia surda que me deixava gelado, e, mais freqüentemente ainda, por pensamentos carregados de uma ansiedade que não se manifestava à luz do dia, eu não atribuía conscientemente ao sono um caráter mórbido. Dormir me parecia antes "chato" do que terrível. Mas era como algo terrível que eu vivia a aproximação da hora de ir deitar. Viciei-me, desde menino, a iniciar, tão logo estivesse na cama, uma longa sessão de pensamentos: fantasias dirigidas, planos, meros jogos lógicos, apreciação retardada de atos e palavras meus e dos outros etc. De modo que nunca me deitava para dormir, e sim para entregar-me a uma demasiadamente ativa "vida interior". Lembro que Rodrigo, meu irmão mais velho, às vezes adormecia na mesa do jantar sem terminar de tomar o café. E Nicinha, às dez horas da noite, em plena praça da Purificação durante as festas da padroeira, comentava com delícia que estava caindo de sono e que, de tanto desejo de dormir, via sua cama "passar diante dos olhos". Eu a um tempo invejava e desprezava essas pessoas capazes de antegozar algo que me parecia um estorvo. Mas não desconhecia de todo o prazer do sono: em horas impróprias, ou melhor, quando não havia o compromisso de adormecer, sempre foi possível saborear a aceitação do repouso, inclusive com a consciente indagação sobre por que não acontecia assim nas horas convencionais. Foi assim que aconteceu na caminhonete da polícia - e eu dormi todas as cerca de cinco horas de viagem de São Paulo até d Rio. Com uma única interrupção para o almoço num restaurante de estrada de que, embora tenha tido tudo para ser uma cena de grande relevância - pois Dedé, que seguira a caminhonete, conseguiu dos policiais que nos deixassem almoçar juntos numa mesa separada da deles -, guardo uma lembrança mortiça, como se todos os meus atos ali fossem os atos de um sonâmbulo. Isso ganhou maior significado por eu não ter tido nenhum tipo de insônia - ao contrário - durante todo o período da prisão, como contarei depois. Acordei ao chegarmos ao pátio de estacionamento da Polícia Federal no Rio. Não lembro com clareza quase nada desse dia. Só sei que ficamos ali até depois de o sol se pôr. E que começamos a ficar impacientes para saber quem nos interrogaria e quando. Os homens que nos tinham vindo buscar simplesmente desapareceram. E só víamos caras novas que, com risos ou grosserias, desencorajavam qualquer pergunta da nossa parte. Tenho a vaga lembrança de ter visto uma moça que eu conhecia da casa de Macalé, de quem ela era vizinha de prédio em Ipanema, e da surpresa desagradável por sabê-la da Polícia Federal. Possivelmente ela exercia um cargo meramente burocrático ali, mas a presença entre os meus algozes de uma moça que eu vinculava a outro tipo de ambiente dava um ar ainda mais sombrio aos acontecimentos. Na verdade, não sei se foi nesse dia da chegada ou se foi quando passamos pelo mesmo estabelecimento no caminho de volta, dois meses depois, que vi essa vizinha de
Macalé. Mas lembro que pensei com desagrado sobre alguma coisa pouco clara que se dizia dela, envolvendo sangramentos por todo o corpo durante as menstruações. Isso me volta à memória com assiduidade ainda hoje, compondo a confusa lembrança da central carioca da Polícia Federal, onde Gil e eu passamos o dia sentados lado a lado em cadeiras, primeiro numa sala grande cheia de agentes atarefados, depois nalguma sala menor cuja porta era guardada por dois policiais. Mas era mesmo uma sala, talvez com carteira e armários, não era uma cela.
Só à noite fomos conduzidos a uma outra viatura que nos levaria não nos diziam aonde. As primeiras fardas que vi mudaram o tom das coisas em minha cabeça. Senti-me a um tempo mais seguro e mais amedrontado: por um lado, via que os policiais à paisana não mentiram sobre estarem obedecendo a ordens militares, o que tirava a impressão de sequestro e, sobretudo, fazia renascer a esperança de que afinal íamos ser interrogados; por outro lado, a visão de soldados fardados portando armas grandes e negras, o próprio tom escuro dos uniformes, e, mais que tudo, os semblantes impenetráveis (os olhares e os gestos dos federais pareciam amigáveis em comparação), tudo instaurava uma atmosfera lúgubre e, pela primeira vez, tive a impressão de estar num pesadelo. Era realmente terrível que fosse noite. Os civis sumiram. Fomos entregues a soldados cujos gestos ríspidos, combinados com as caras fechadas, deixavam claro que não havia diálogo possível. A própria homogeneidade da roupa dá aos militares uma aparência (e não só aparência) de entidade extra - humana. Estávamos no prédio do antigo Ministério da Guerra, sede do I Exército, bem no centro do Rio, ao lado da estação de trens da Central do Brasil, na avenida Presidente Vargas. Passamos por algumas situações intermediárias das quais nada lembro, antes de sermos colocados na sala de um general que deveria ocupar um alto posto no Exército talvez um homem de grande poder dentro do novo período em que entrava a "Revolução". Lembro de um elevador em que fomos levados por soldados armados até o andar onde ficava essa sala. Puseram-nos ali sem nos dizer uma palavra. Apenas indicaram cadeiras encostadas à parede, onde sentamos lado a lado. A sala era grande, atapetada, mobiliada com o que exigiria uma descrição nos termos algo paradoxais de austera pompa. Estávamos exatamente de frente para uma grande mesa de jacarandá à qual sentava-se o general. A visão era frontal mas afastada, pois a mesa ficava no outro extremo da sala. De modo que o espetáculo do general calado e sério atrás de sua mesa ganhava, do nosso ponto de vista, um ar teatral. Esperamos que aquilo fosse, afinal, ser o interrogatório, embora já tivéssemos começado a perder a cabeça com as esperas inexplicadas, e já pressentíssemos que estávamos sendo roubados às nossas vidas. O general, de fato, passou muito tempo olhando fixamente para nós, sem dizer uma só palavra ou esboçar o menor gesto. Na verdade, se se tratasse do interrogatório, seria preciso um considerável esforço vocal de todos para que a comunicação entre ele e nós se desse, dada a distância que nos separava. Mesmo na lembrança, o tempo que ficamos nos olhando em silêncio parece uma eternidade. Seu primeiro movimento, quase imperceptível, depois desse longo confronto mudo - que, tenho certeza, não durou poucos minutos, foi o de apertar um botão que fez soar uma campainha nalgum lugar de onde veio um soldado a quem ele falou sem que ouvíssemos. Passaram-se mais muitos intermináveis minutos antes que chegassem dois soldados trazendo bandejas com o jantar do general. Era galinha.
Ele fez calmamente sua refeição na nossa frente, como se estivesse num palco. Ou melhor, a disposição da cena e a distância entre os espectadores e o ator sugeriam isso, mas, na verdade, o general portava-se com grande sobriedade e concentração, como se estivesse sozinho, sem, no entanto, deixar de, por vezes, olhar-nos de relance mas com tranquila firmeza. Dir-se-ia que ele desempenhava meticulosamente o papel da solidão despreocupada, entremeando-o de acenos discretos aos assistentes, como se dissesse: "Eu sei que vocês estão ai e me é indiferente a sua presença quanto a sentir-me à vontade para comer, mas é significativo que vocês me vejam fazer isso e que nada possam dizer a respeito: isto aqui diz tudo sobre nossas relações e muito sobre a condição em que vocês se encontram de agora em diante". Nós sentimos apenas cansaço. Não achamos ridículo, nem nojento, nem cômico, nem odioso: achamos chato. Tampouco tivemos fome ou inveja do general. Estávamos cansados de tantos incômodos incompreensíveis.
Queríamos uma trégua do absurdo: que alguém falasse conosco, ou nos levasse a algum lugar para que pudéssemos dormir. Já não nos arriscávamos a pôr em jogo a esperança de voltar logo para casa: essa era uma ansiedade que nossas mentes não podiam aguentar. O general acabou de jantar, tocou de novo a campainha, os soldados vieram e levaram as bandejas. Ele nos olhou mais alguns minutos, apertou outra vez o botão, outros soldados entraram - possivelmente os mesmos que nos haviam trazido - e nos levaram embora. Tinha se passado mais de uma hora desde que chegáramos àquela sala. Nunca consegui reproduzir na minha mente a cara desse general. É curioso como a memória pode guardar tantos atributos psicológicos - e tantos sutis detalhes de comportamento - observados numa pessoa cuja imagem física desapareceu. É como se ficassem os adjetivos e o substantivo se evaporasse. Não sei se Gil tem uma lembrança mais nítida da figura desse homem que teve um contato tão estranho conosco.
Tampouco sei que utilidade teria esse contato para os militares. Estivemos naquela sala apenas para esperar? O general queria nos conhecer? Era uma encenação para nos desestruturar e assustar? Nada disso pôde ser comentado por mim e por Gil enquanto éramos levados, numa viatura do exército, do antigo Ministério da Guerra para o quartel da Polícia do Exército na rua Barão de Mesquita, na Tijuca.





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