O culto a Sultão das Matas em casa de Edite era - ainda é - um exemplo do chamado "candomblé de caboclo", a forma de culto em que o Olimpo ioruba surge matizado de figuras indígenas. A figura do índio aparece ali não tanto como uma contribuição direta das culturas originais do Brasil, embora haja palavras tupis envolvidas e algum resquício do imaginário local: o "caboclo" desses terreiros de candomblé está mais próximo da figura idealizada primeiro pelos árcades e depois pelos românticos, a figura do índio genérico e heróico que passou a simbolizar a pátria nas lutas pela independência e nas fantasias de afirmação nacional. Quando Edite me apareceu em transe no corredor de sua casa, ela estava vestida como a imagem de barro da "cabocla" que é carregada em procissão todos os anos no dia 2 de julho, nas comemorações da Independência na Bahia. Esse é o tipo de candomblé que predomina nas cidades menores do recôncavo baiano, enquanto em Salvador a liturgia africana, conservada praticamente intacta, marca os grandes terreiros. Eu tinha medo do transe e amor pelo ritual. Quando me mudei para Salvador, hesitava em acompanhar os poucos amigos que, quase sempre por interesse cultural, iam às vezes ao terreiro de dona Olga do Alakêtu, ao Opó Afonjá ou ao Gantois. Também aqui o medo da possessão me impedia de admirar o ritual que me encantava: em geral eu saia correndo do lugar alguns minutos depois de ter chegado, supondo-me tonto e perscrutando todos os meus nervos para assegurar-me de que permanecia lúcido e desperto. Não sei se escolhi o titulo "Divino, maravilhoso" antes ou depois do auasca.
Suponho que foi antes. Mas não tenho tanta certeza quanto no caso do "É proibido proibir". Como quer que tenha sido, considero pelo menos igualmente significativo. Ter me decidido por um ateísmo intelectual (mas não só) antes de tentar enfrentar o medo de Deus e estar empenhado num projeto público que incluía a coragem de reassumir a religiosidade era o arranjo ideal para fazer da experiência psicodélica uma fonte de angústia - e um acontecimento pessoal de grande peso.
Quando, cerca de um ano mais tarde, saímos do Brasil rumo ao exílio londrino, passamos antes em Portugal. Meu amigo Roberto Pinho me pediu que o acompanhasse até Sesimbra, onde ele tinha um encontro com um senhor português que tomava conta do castelo medieval da colina e era tido como alquimista. Lembro de umas ovelhas de chifre revirado que se punham perto do velho como se fossem animais de estimação. E do mar muito azul rodeando de longe as muralhas de pedra. A uma certa altura, Roberto pediu que eu cantasse
"Tropicália" para o alquimista ouvir. Não lembro se cantei ou se apenas recitei as palavras da letra. Mas estou seguro de que comuniquei a integra do texto ao português. Ao final, este olhou-me com uma expressão exultante e, com uma piscadela cúmplice a Roberto, apresentou a mais insólita interpretação de "Tropicália" de que eu já tivera notícia. Tudo na letra era tomado à letra e valorado positivamente. "Eu organizo o movimento", por exemplo, significava que, não necessariamente eu, mas alguma força que podia dizer "eu" através de mim, organizava um importante movimento; e "inauguro o monumento no planalto central do país" era clara e meramente uma referência a Brasília como realização da profecia de são João Bosco. E pronto. Nenhum traço de ironia era notado, nenhum desejo de denúncia do horror que vivíamos então. Não lembro se sublinhei o trecho "uma criança sorridente feia e morta estende a mão" quando tentei explicar-lhe que minhas motivações para compor a canção tinham sido o oposto de um ufanismo, mas é certo que tentei discutir o assunto. Ele, que a princípio me parecera não imaginar outra razão possível para que eu escrevesse tal canção a não ser a certeza feliz de um destino grandioso para o Brasil, não se mostrou surpreso diante dos meus protestos e, rindo para Roberto e repetindo "eu sei, eu sei...", arrematou: "O que sabem as mães sobre os seus filhos?". Entendi que ele estava certo de conhecer melhor as intenções da minha composição do que eu. Isso não era novidade: eu já sabia então que as canções têm vida própria e que outros podem revelar-lhes sentidos que seu autor não teria suspeitado. Tampouco era-me de todo desconhecido o aspecto positivo que aquela canção dava à representação do Brasil. E, mais que isso, eu não era inocente do fato de que toda paródia de patriotismo é uma forma de patriotismo assim mesmo não eu, o tropicalista, aquele que antes ama o que satiriza, e não satiriza facilmente o que odeia. Mas que aquele homem não quisesse levar em consideração o fato de na minha canção eu estar descrevendo um monstro - e era um monstro que confirmara sua monstruosidade agredindo-me a mim-, era algo que, à medida que ia acontecendo, ia-se-me tornando mais fascinante do que irritante. Mas também eu não era de todo estranho aos interesses que uniam meu amigo Roberto e aquele suposto alquimista. O ponto de ligação entre eles era o professor Agostinho da Silva, o intelectual português que participou da formação da Universidade da Paraíba, da Universidade de Brasília, e que, como já contei, durante o período dos grandes projetos culturais da Universidade da Bahia no final dos anos 50 e início dos 60, organizou e dirigiu o Centro de Estudos Afro-Orientais em Salvador. Esse pensador heterodoxo disseminou uma forma de sebastianismo erudito de inspiração pessoana, e com isso atraiu algumas pessoas que me pareciam atraentes. Não foi sem pensar nelas que incluí a declamação do poema de Fernando Pessoa no happening da apresentação do "É proibido proibir".
Mas eu não tinha embarcado na viagem desses sebastianistas, nem como estudioso nem como, digamos, militante. Apenas me pareceu excitante que houvesse gente falando no Reino do Espírito Santo e numa futura civilização do Atlântico Sul numa época em que todo o mundo tentava falar em mais-valia e em teses científicas de transformar o mundo por meio da classe operária. Eu conhecia o Fernando Pessoa do "Poema em linha reta" e da "Ode marítima". Também o do poema do outro Menino Jesus e, naturalmente, o do poeminha do "fingidor" ("O poeta é um fingidor! Finge tão completamente! Que chega a fingir que é dor! A dor que deveras sente"): eram os poemas que as meninas citavam, que muita gente lia em voz alta para mim, cujos trechos eram repetidos de cor e que uma ou outra vez eu mesmo lia no exemplar de algum colega de faculdade. Sabia dos heterônimos e de algum folclore sobre sua vida, e juntava aqueles poemas ao repertório de poesia brasileira moderna (Vinicius, Drummond, Bandeira e Cecília, depois também Cabral) e isso era (com os negros de Castro Alves e os índios de Gonçalves Dias mais os ciganos de Lorca) toda a poesia que eu conhecia. Com Mensagem era o Pessoa do poeminha do fingidor que se adensava. Cada peça curta era um Labirinto de formas e sentidos, e, mais importante que tudo, não me parecia possível que se demonstrasse mais fundo conhecimento do ser da língua portuguesa do que nesses poemas. Meu poeta favorito - e o que mais extensamente li – era João Cabral de Melo Neto. E diante dele tudo parecia derramado e desnecessário.
Assim também os poemas de Álvaro de Campos - que eram os mais queridos das meninas. Mas com Mensagem eu me sentia em presença de algo mais profundo quanto a tratar com as palavras, por causa de cada sílaba, cada som, cada sugestão de ideia parecer estar ali como uma necessidade da existência mesma da língua portuguesa: como se aqueles poemas fossem fundadores da língua ou sua justificação final.
Todo começo é involuntário
Deus é o agente
O herói a si assiste vário
E inconsciente
À espada em tuas mãos achada
Teu olhar desce:
"Que farei eu com esta espada?"
Ergueste-a e fez-se.
O fato de esse livro - o único que Pessoa publicou em vida na nossa língua - ter como tema a volta de d. Sebastião e da grandiosidade de um adiado destino português, enobrecia, a meus olhos, os interesses daquele grupo de pessoas que cultivavam tais mitos. De modo que, em Sesimbra, passei gradativamente do espanto de ver minha canção "Tropicália" resgatada por uma visão que anulava sua contundência crítica, à relativa adesão à perspectiva dessa visão: comecei a ver "Tropicália" - e a pensar o tropicalismo - também à luz da minha versão do sebastianismo. De fato, muito de Deus e o Diabo na Terra do Sole e de Terra em transe ganhava sentido nesse contexto. (Glauber depois me confirmaria essa observação confessando-me que "o sebastianismo é o segredo do Cinema Novo".)
"Deus está solto!", "Divino maravilhoso", o auasca, tudo isso tem que ser entendido também levando-se em conta esse namoro com o misticismo. Minha irreligiosidade é sinceramente feroz: ela foi vivida desde a infância como uma alegria corajosa de arrancar a vida das sombras em que se teima em mantê- la. Reagir contra ela só se justificava como ato preventivo contra o risco de que a irreligiosidade ela própria se tornasse uma nova sombra. O problema é que o medo e as angustiosas dúvidas cresciam nesse processo. Além disso, há também a vaidade de se viver o inexplicável. Pretendemos testemunhar cadeiras semoventes, copos falantes, discos voadores - assim como premonições e telepatias -, na melhor das hipóteses, para experimentar a ventura de, como me disse Antônio Cícero, ver-nos livres da cadeia da causalidade; na pior das hipóteses, por vaidade infantil. É a alegria do corpo - com o sexo no centro - que se opõe às outras vidas, a Deus e aos deuses: portanto, ao destino. Foi com os sentimentos mais ambíguos que assimilei o aspecto claramente premonitório do episódio da fazenda, quando "senti" que Bethânia precisaria de mim e que isso definiria seu - nosso - futuro profissional.
Quando criança, sonhei que passeava levado por minha irmã Clara pela praça da Purificação. Nós andávamos com muita dificuldade e medo pois o chão era feito de longas tábuas suspensas sobre o infinito vazio. Sentada num banco no outro extremo da praça, estava Norma, uma moça com quem Clara estava de mal. Estranhei que minha irmã fosse lhe falar. Os bancos, as árvores, as casas, a igreja, tudo estava precariamente elevado sobre o vazio. Ao chegarmos junto de Norma, ouvi muito bem o diálogo que se deu entre elas, embora eu, bem pequeno ainda, fosse tratado como quem nada vai entender: "Norma, o que é que você quer falar comigo?", pergunta Clara. E Norma responde: "Eu quero lhe dizer que eu vou me matar". Fui acordado por ruídos em casa no meio da noite.
Levantei e perguntei o que estava acontecendo, por que as pessoas estavam todas acordadas. Ninguém quis de imediato falar comigo claramente. Mas em pouco tempo fiquei sabendo que Norma, filha de seu Quinzinho, aparecera morta no corredor de entrada da casa dela, ao lado do namorado que jurava que ela havia se matado com um revólver em sua presença. Todos suspeitavam do namorado. Não tive forças para dizer que sabia que não tinha sido ele. Tive medo, mas senti também a excitação de ter vivido algo sobrenatural. Não fui muito veemente quando afinal contei: tinha vergonha de exibir minha excitação e tinha dúvidas sobre se aquilo pareceria crível. Passei anos analisando esse caso. Terminei por acalmar-me com a constatação de que é muito freqüente que ouçamos conversas enquanto dormimos e, num truque para não acordar, criamos sonhos com fragmentos do que ouvimos. De fato, toda a gente em minha casa estava falando (talvez pensando que eu, pequenino, não ouviria e, se ouvisse, não entenderia - como, aliás, acontecia no próprio sonho) no possível suicídio de Norma. Não encerrei o caso, mas fiquei observando por anos: nada de semelhante me aconteceu mais, ao passo que sonhos sugeridos por estímulos exteriores se multiplicaram.
Não longe do final de 68, Roberto Pinho veio a São Paulo justamente para contar-nos que um nosso amigo tinha entrado numa espécie de transe e, nesse estado, tinha profetizado que a situação política endureceria no Brasil até o final do ano e que Gil e eu estávamos fadados a sofrer violentamente em conseqüência. Eu dava um grande peso às palavras de Roberto: não apenas a mitologia dos sebastianistas tinha ganho status dentro de mim, mas o próprio Roberto tem uma personalidade muito impositiva. Além disso, cremos nas predições más, se não por culpa, ao menos por instinto de autodefesa. Mas o amigo que entrara em transe era desses em quem aquela vaidade infantil do sobrenatural fica por vezes à mostra. De todo modo, Roberto dizia que não havia como evitar: Gil e eu tínhamos de passar por isso. Fiquei angustiado. Em poucos dias, porém, essa angústia era apenas uma lembrança.
O programa Divino, Maravilhoso estreara com um sucesso de estima muito grande, mas não sei qual foi a audiência em números. Fizemos um atrás de grades e dentro de gaiolas (o proscênio era tomado por uma grade de madeira imitando ferro; outras jaulas menores, dentro da grande jaula que era o palco, guardavam os Mutantes, Gal, Tom Zé etc.; Jorge Ben cantava dentro de uma jaula que pendia do teto): no final, eu vinha do fundo do palco berrando o sucesso de Roberto Carlos "Um leão está solto nas ruas" e quebrava as grades, convidando todo o elenco de participantes a colaborar comigo nessa destruição. A platéia de jovens identificados com nossa onda respondia com entusiasmo. Num outro programa, nos distribuímos um pouco à maneira de Cristo e os apóstolos na Santa Ceia - lembrando o Buñuel de Viridiana -, mas sobre a mesa havia apenas bananas. Cantávamos e comíamos bananas. Os Mutantes fizeram o "enterro" do tropicalismo. As senhoras católicas protestavam contra essas ousadias em cartas vindas da cidade de São Paulo mas também do interior, o que talvez significasse que o programa estava sendo mais visto do que imaginávamos. Mas que certamente queria dizer que o que fazíamos era tomado como ofensivo por algumas pessoas. Não nos intimidávamos. Apesar do susto da conversa de Roberto, nós - eu sobretudo - estávamos orgulhosos e confiantes demais para nos entregarmos ao medo.
No dia 13 de dezembro de 1968, um golpe interno no governo militar lançou o Ato Institucional nº 5, suspendendo o habeas-corpus, dando poderes à policia de invadir domicílios, enfim, instaurando um regime policial truculento que fez, em retrospecto, os primeiros quatro anos que passáramos sob os militares parecerem razoáveis e amenos. Eu estivera em Salvador por uns dias e viajei para São Paulo exatamente no dia 13. Ao chegar em casa fiquei sabendo do que ocorrera. Não medi a extensão e a profundidade das mudanças anunciadas pelos noticiários da TV. Claro que a linha dura tomara o poder. Mas nós justamente éramos vistos com hostilidade pelas esquerdas mais barulhentas. Nossa simpatia íntima e mesmo secreta por Marighella e os iniciadores da luta armada - embora nossa admiração por Guevara tivesse sido sugerida na canção "Soy loco por ti, América" - não era do conhecimento nem dos radicais nem dos conservadores.
O humorista Jô Soares nos disse ter ouvido que corria entre os militares uma lista de nomes de artistas da Record (onde Jô trabalhava e onde nós trabalháramos até havia pouco) da qual constavam o nome de Gil e o meu entre os possíveis intimados para interrogatórios.
Imaginei que, no máximo, eles poderiam nos perguntar por que participáramos da passeata dos 100 mil. Para o que tínhamos a resposta de que praticamente todos os artistas brasileiros também o fizeram. Tínhamos um programa já escrito para ser exibido na semana do Natal. Eu próprio, numa homenagem ao grande compositor suicida Assis Valente, e numa desmistificação das róseas sentimentalidades natalinas, cantaria a linda e triste canção "Boas festas" daquele autor ("eu pensei que todo mundo fosse filho de Papai Noel...") apontando um revólver para minha própria têmpora. E assim fiz. A canção, originalmente uma marchinha - e que no Brasil está tão identificada com o Natal quanto "Jingle bell" (embora a letra proteste contra o fato de que alguns recebem presentes de Natal e outros não) -, fora despojada de seu ritmo e era apresentada como um adágio com as sílabas da letra escandidas. O resultado (que ainda vi no vídeo) era assustador. Fiquei orgulhoso porque considerei que ali havia densidade "poética", mas intimamente arrependido por crer ter talvez - mais uma vez – ido longe demais. No dia 27 de dezembro, Gil e eu fomos presos. Guilherme Araújo tinha embarcado para a Europa, onde preparava a iminente apresentação de Gil no Midem (um congresso-festival anual promovido na cidade de Cannes, na França, pelos homens de negócios das gravadoras). Guilherme, excitado com o que seria a estréia internacional de um de seus contratados, recebeu com revolta a notícia da nossa prisão e propôs aos organizadores do evento que se fizesse um protesto e uma denúncia. Eles se recusaram terminantemente a se envolver: se Guilherme tinha uma queixa política a fazer, que a fizesse em seu próprio nome. Este então atendeu à de escrever próprio punho um manifesto assinado e distribuí-lo pessoal mente à entrada da sala de espetáculos. Esse gesto corajoso de repúdio público à opressão da ditadura brasileira custou a Guilherme um auto-exílio forçado que o aproximou ainda mais de nós nos anos subsequentes. O Divino, Maravilhoso ainda teria mais duas ou três edições, comandadas por Tom Zé: esperavam que voltassem para retomar o programa. Mas não voltaríamos.
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