Rubel
Páginas
▼
domingo, 30 de junho de 2019
OS BASTIDORES DE "CHEGA DE SAUDADE", CLÁSSICO DE JOÃO GILBERTO QUE COMPLETA 60 ANOS... – PARTE 05
Lançado no dia 8 de março de 1959, o álbum começou a ganhar vida três anos antes no sítio da família de Tom Jobim, em Poço Fundo, na região serrana do Rio
Por André Bernardo
'É apenas um sujeito excêntrico e original'
Roberto Menescal é dos muitos amigos de longa data que, há anos, não tem notícias de João Gilberto. "Recluso ele sempre foi. Mas, nos últimos anos, chegou ao máximo da reclusão", lamenta.
Cravo Albin é outro que, para não soar invasivo, desistiu de procurar o amigo. "Há uns cinco anos, liguei para o João. Ele atendeu, mas disse que não estava. Respeitei. Dias depois, a pedido do Otávio Terceiro, seu antigo empresário, voltei a ligar. Ele atendeu de novo e disse que o João não estava. Pô, a voz do João é inconfundível!", resigna-se o musicólogo, que não sabe explicar o motivo de seu autoexílio voluntário. "Me recuso a dizer que João Gilberto é neurótico ou desequilibrado. Nada disso. É apenas um sujeito excêntrico e original."
Por essas e outras, ninguém cogita a hipótese de João Gilberto, hoje com 87 anos, voltar aos palcos ou aos estúdios.
Seu mais recente show – ou concerto, como ele prefere chamar 0 foi em 2008, por ocasião dos 50 anos da bossa nova. A turnê passou por Rio, Salvador e São Paulo e chegou ao famoso Carnegie Hall, em Nova York (EUA).
Já seu último álbum lançado no Brasil foi "João Gilberto in Tokyo" (Universal Music, 2004). "Devido à saúde fragilizada, acho praticamente impossível", diz Tárik de Souza.
Ruy Castro assina embaixo. E faz uma ressalva: "O que mais lamento é que, nos últimos 30 anos, enquanto ele teve gás para gravar inúmeros discos, isso não foi feito".
"Acho mais possível gravar um disco, talvez em casa mesmo, do que fazer um show", afirma esperançoso Nelson Motta. Cravo Albin vai além. Para ele, errado seria permitir que um homem sempre tão exigente quanto João Gilberto se apresente ao público com a saúde debilitada ou grave material de qualidade duvidosa. "Se, por acaso, algum empresário sugerir um absurdo desses, temos que ser contra! Uma lenda como João Gilberto precisa ser protegida."
sábado, 29 de junho de 2019
VERDADE TROPICAL (CAETANO VELOSO)*
Em linhas gerais, essas eram as relações que mantínhamos, no meio do período tropicalista, com as produções daquilo que era nosso pão e nosso circo: a música popular. Suponho que fui eu a decidir que devíamos fazer um disco-manifesto, um disco coletivo que explicitasse o caráter de movimento do nosso trabalho. De todo modo, uma vez lançada a idéia, assumi logo a liderança. Conversei com Gil, com Torquato, com Gal, com Bethânia, com Duprat. Gil vinha de sua experiência com Duprat e os Mutantes na feitura de seu primeiro LP tropicalista. Era um disco com muito mais unidade do que o meu e (como era de se esperar)
com maior domínio musical por parte do intérprete e autor das canções. Mas o meu tinha sido mais marcante "conceitualmente". Talvez apenas porque tivesse saído antes. Talvez porque, para compensar minhas carências propriamente musicais, eu tenha mesmo tido sempre que ser mais "conceitual". Eu amava o disco de Gil por sua concentração e seu pulso. Ele chegara a uma riqueza de sonoridades altamente sugestiva pela combinação madura de elementos tradicionalmente brasileiros com a música eletrificada. Eu adorava "Luzia Luluza", uma canção com uma letra remotamente beatlesesca, por ter como tema o cotidiano de uma pessoa comum (uma bilheteira de cinema, mas construída como uma trilha sonora de filme americano, terminando no Carnaval. Gil aparecia na capa do disco - projetada, como a do meu, por Rogério Duarte (aqui com a colaboração do pintor Antônio Dias) - trajando um fardão da Academia Brasileira de Letras, o que frisava a irreverência da atitude. Eu acreditava e não creio que estivesse errado - que a feitura do disco coletivo seria uma excelente oportunidade de somar as forças dos componentes do grupo para atingir resultados mais precisos. Sobretudo eu esperava poder assim fazer da perícia musical de Gil, de Duprat e dos Mutantes um veículo para minhas ideias. Queria pegar carona, tirar uma lasquinha: eu invejava o nível de resolução do disco de Gil. Embora não o considerasse satisfatório - se comparado ao dos discos de, por um lado, Jorge Ben e, por outro, ao dos de Roberto Carlos -, reconhecia-o muito superior ao do meu.
Bethânia tinha me encomendado uma canção para a qual ela já tinha o título e grande parte da idéia da letra: "Baby ", ela queria que a canção se chamasse. E fazia questão de que nela fosse feita referência a uma T-shirt em que se podia ler, em inglês, a frase "I love y ou". Ela dizia mesmo que a canção tinha que terminar dizendo: "Leia na minha camisa, baby, I love y ou". Era um modo de comentar, com amor e humor, a presença de expressões inglesas nas canções ouvidas - e nas roupas usadas - pelas pessoas comuns. Tratando-se de Bethânia, tenho certeza de que havia também uma razão factual e muito pessoal para tão precisas especificações. Fiz a música procurando recriar a cultura de cançonetas e camisetas, e, ao mesmo tempo, o clima pessoal de Bethânia. Julguei o resultado perfeitamente representativo da estética (e, dada a contribuição de Bethânia, da história) tropicalista, e combinei com ela que a canção entraria no disco coletivo em sua voz. Por sua vez, Nara Leão, cujas conversas conosco revelavam sua total independência em relação aos preconceitos anti-Tropicália exibidos por seus ex-companheiros de bossa-protesto e pela platéia de Pra Ver a Banda Passar (o programa que ela comandava ao lado de Chico Buarque na TV Record), encomendou-nos, a mim e a Gil, uma música que tivesse como tema ou inspiração um quadro do pintor Rubens Gerchman chamado Lindonéia, o qual representava, em traços distorcidos com dolorosa pureza, o que parecia ser a ampliação de um retrato três -por-quatro de uma moça pobre que - dizia o texto título - fora dada por perdida, emoldurada, à maneira kitsch dos retratos de sala de visitas suburbanas, por vidro espelhado com decoração floral. Gil fez a música – um bolero entrecortado de iê-iê-iê - e eu fiz a letra da canção, que manteve o nome "Lindonéia" e a história da suburbana desaparecida. O quadro de Gerchman, por ser uma espécie de crônica melancólica da solidão anônima feita em tom pop e metalingüístico, tinha parentesco direto com o tropicalismo musical, e a canção, nós supúnhamos, realimentaria sua carga poética. O quadro não fora o resultado de uma influência do tropicalismo sobre o pintor: este havia chegado ali resolvendo seus próprios problemas, dialogando com a arte pop. Nós tampouco conhecíamos o quadro antes de Nara nos chamar a atenção para ele.
Na verdade, o fato de eu ter pintado na infância e na adolescência terminou por afastar-me das artes plásticas com um misto de desencanto e timidez: a Tropicália é que me estava libertando para o convívio tateante com essa área da atividade artística, o interesse tendo ressuscitado - entusiasticamente - com a Bienal de São Paulo de 67, onde tomei contato com os artistas pop americanos - e com Edward Hopper -, que deram um sentido mais preciso às minhas caminhadas por supermercados e às conversas de Rogério e de Zé Agrippino.
Claro que Tropicália, o nome, tinha vindo de Hélio Oiticica, com quem, a essa altura, já tínhamos contato pessoal; e conhecíamos Antônio Dias, que já fizera a capa de Panamérica de Agrippino e colaborara com Rogério na feitura da capa do disco de Gil. Rogério, com quem eu sempre estava, era profissional de artes gráficas e ensinava na Escola de Desenho Industrial (tema sobre o qual escrevera um artigo importante na Revista Civilização Brasileira), tendo, portanto, contato permanente com toda a gente da área de artes visuais. Mas, se as conversas sobre literatura ou filosofia, cinema ou política (genérica) me soavam vivas, as referências a obras específicas ou aspectos técnicos das artes plásticas eram praticamente ignoradas por minha mente, que, quanto a isso, não se incomodava em ser ignorante. No auge do tropicalismo, nossas relações com os pintores foram fragmentárias e dispersas. Nosso intenso diálogo com Hélio Oiticica teve, a principio, as características generalistas das conversas de Rogério, pouco ou nada significando uma verdadeira assimilação, por nossa parte, das questões específicas da arte que ele elegera - e, o que é mais significativo, só nos anos 70 é que Hélio veio a fazer uma capa de disco para um de nós (Gal Costa). Assim, a sugestão de Nara forçou uma espécie de parceria interdisciplinar curiosa, sem precedente no tropicalismo. A idéia de incluir Nara no disco coletivo me pareceu certa não só porque ela havia feito essa ponte entre nós e a pintura de Gerchman, mas também por significar uma espécie de realização do sonho inicial de Gil de que o movimento fosse de toda a geração de músicos: Nara representava a bossa nova em sua origem e liderara a virada para a música participante - era, portanto, a música brasileira moderna em pessoa. Numa de minhas idas à Bahia - eu não passava mais de dois meses sem ir a Salvador - convidei Tom Zé para ir para São Paulo comigo. Tom Zé tinha sido nosso companheiro dos shows do Teatro Vila Velha. Quando comecei a frequentar os meios artísticos e boêmios de Salvador, ele já era uma figura conhecida dos estudantes universitários. Assim como Capinan - com quem, de resto, ele tinha colaborado em alguma peça do braço baiano do CPC da UNE -, Tom Zé tinha prestígio entre os artistas que eu conhecia: as pintoras Sônia Castro e Lena Coelho, a dançarina Laís Salgado, os professores Paulo e Rena Faria, todos me falavam dele. Quando afinal nos conhecemos, ele me cativou pelo seu ar de sertanejo, por suas observações pseudo-mal-humoradas expressas num sotaque rural que mais realçava do que escondia a elegância clássica de seu português culto e correto. Seu físico de duende mameluco, de personagem de lenda cabocla confirmava sua condição de pessoa especial. Tom Zé tem uns olhos muito vivos, como que a provar que uma intensíssima concentração de energia é a razão de ele ser tão miúdo. Essas indicações de excepcionalidade eram em parte confirmadas por suas canções satíricas feitas em tom deliberadamente folclórico. Consistindo em longas crônicas da vida urbana de Salvador e em retratos de personagens típicos ou de exceção, essas composições de sua primeira fase mostravam-se a um tempo atraentes e insatisfatórias aparentemente pela mesma razão de não estarem em sintonia com os interesses estéticos da bossa nova. Sua inteligência e originalidade pessoal asseguravam que sua produção não fosse simplesmente antiquada. E ele, diferentemente de mim e de Gil, estava estudando nos Seminários Livres de Música - que é como o reitor Edgar Santos e o professor e maestro Koellreutter decidiram chamar a escola de música - da Universidade da Bahia. Essa escola, como todas as escolas de arte fundadas por aquele reitor, trouxera para Salvador as informações da vanguarda internacional - o que, como já contei, nos modelou a todos os membros da geração. Tom Zé (como Djalma Correia e Alcivando Luz) decidira ter contato direto com o currículo, enquanto Bethânia e eu éramos apenas habitués dos concertos semanais no salão nobre da reitoria - e Gil e Gal, nem isso. Com a virada tropicalista, achei que a sofisticação anti-bossanovística de Tom Zé, a ligação direta que ele insinuava entre o rural e o experimental, encontraria lugar no mundo que descortinávamos. Um músico superdotado harmonicamente como Alcivando Luz, também um admirável companheiro do Vila Velha, não saberia se mover nesse novo ambiente. Diversas vezes pensei, nesses últimos anos, que,
se me fosse dado o talento e o temperamento para fazer algo como o que fizeram, nos anos 70, Milton Nascimento e seus companheiros do Clube da Esquina, e não o escândalo tropicalista, eu teria convidado Alcivando, em vez de Tom Zé, para ir para São Paulo.
Na Tropicália, Tom Zé mostrou-se, de fato, em casa. Inicialmente, no entanto, ele resistiu muito ao convite. Lembro de uma conversa nossa perto do Cine Guarany (atual Glauber Rocha), na praça Castro Alves, em que ele me dizia que a ideia era uma loucura. Eu e seu desejo profundo de assumir seu destino de músico o convencemos. A simples viagem de avião com Tom Zé de Salvador para São Paulo já deu o tom do que seria sua atuação. O Caravelle da Cruzeiro do Sul - aeronave cuja modernidade de linhas me encantava como um samba de Jobim ou um prédio de Niemey er -, voando em céu azul, parecia que ia explodir com a vibração da presença de Tom Zé. E isso chegou a exteriorizar-se até o conhecimento da aeromoça e quem sabe de outros passageiros. Não que ele se mostrasse nervoso por estar voando - embora sua ostentação de estranheza em relação a tudo o que se passava no avião indicasse (talvez enganosamente) que ele nunca tinha voado -, mas seu sotaque e suas expressões arcaicas pareciam agredir a realidade tecnológica da aviação e o conforto burguês dos "serviços" de consumo: ele estava me dizendo - e dizendo a si mesmo e ao mundo - que ia, sim, para São Paulo, mas que permaneceria irredutível quanto a certos princípios e certos traços de caráter. Ele lidava de modo inventivo - e bizarramente elegante
-com o medo da mudança de situação. Referia-se ao avião em que estávamos como "essa caravela", indicando intimidade e estranheza ao mesmo tempo, e, por trás dessa ironia, comentando o sentido de partida para outro continente que essa viagem tinha para ele. Quando a aeromoça se aproximou para perguntar o que queríamos beber, ele respondeu cortantemente: "Cachaça". Havia humor na obviedade de seu conhecimento de que não deviam servir cachaça a bordo. Mas a sinceridade de seu ar desafiador - embora não impolido - levava a pensar em como era ridícula a pretensão de refinamento da freguesia desses serviços (não havia, por exemplo, uma só aeromoça preta em qualquer companhia de aviação brasileira) tornados amorfamente "internacionais", e em como Tom Zé estava disposto a não contemporizar com isso. A esperada resposta da aeromoça - "Desculpe, não temos" - ele começou a desapertar o cinto de segurança e, fazendo menção de levantar-se, disse - dirigindo-se a mim, não a ela: "Então eu vou-me embora. Mande parar essa caravela". A verdade com que essas palavras foram ditas assustou-nos, a mim e à moça, pois, embora soubéssemos impossível obedecer a tão absurda ordem, sentíamos, na determinação com que esta fora dada, que ela se imporia de alguma maneira. Claro que Tom Zé não criou um caso dentro do avião, mas tampouco desconcertou-se ou deixou seu movimento se retrair: ele, que parecera por um instante que ia sair dali custasse o que custasse, agora desistia educadamente irritado, como quem achasse inútil o gesto, mantendo total independência até o fim.
Tudo isso sem que se perdesse o humor distanciado de quem diz ao mesmo tempo que tudo é uma brincadeira - e de quem sabe que tem charme. O disco coletivo era o veículo natural para as canções que Tom Zé tivesse trazido da Bahia ou viesse a compor em São Paulo. Eu tinha feito e dado para Gil musicar uma letra a que pus o nome de "Panis et circensis". Pensei em usar isso como subtítulo do disco que se chamaria - assumindo o titulo usurpado pela canção à obra de Oiticica como nome geral do movimento (mas, naturalmente, rejeitando o ismo) - Tropicália. Não fui verificar (àquela altura nem saberia onde) se a expressão "panis et circensis" estava na forma latina correta. Eu tinha uma vaga lembrança de uma conversa com Wanderlino Nogueira Neto, que foi quem, no curso clássico, me ensinou a famosa expressão, em que julguei ter aprendido que se tratava de dois substantivos no genitivo com função partitiva (como no francês "du pain et du cirque"). Tenho uma memória vívida desse solilóquio silencioso no 2002 e muitas vezes me envergonhei mais com essa lembrança do que com a constatação do erro em si. (Na verdade, a forma em que a expressão se fez famosa é "panis et circenses", esta última palavra sendo um adjetivo que, no plural, substantiva-se no significado de "coisas de circo").
Afinal, em meio à iconoclastia tropicalista, a reverência às letras clássicas era a última das exigências a ocorrer a alguém. Mas o reconhecimento íntimo de que a intenção seria a de sobrepor à colagem pop de uma letra de música banal - e, agora, de um disco de canções pop - uma citação latina (ademais muitíssimo conhecida) cuja correção deveria contribuir para o efeito de contraste, empresta uma dimensão de atroz ridículo ao momento de reflexão devotado à questão. Havia, no entanto, orgulho nesse desleixo. Sempre cri numa espécie de organicidade da assimilação de informações, e faço questão de tratar com naturalidade a acumulação de cultura, retendo dos livros, das aulas, das canções, somente o que me for congenial, e transmitindo somente o que já estiver por mim incorporado.
Uma vez disse a Maria Esther Stockler, a propósito das referências presentes no filme que dirigi já nos anos 80 (O cinema falado): "Só tem ali o que sai na urina". Lembro de Duda, em 65 em Salvador, me contando uma entrevista de Godard em que este dizia que, ao terminar de ler um livro, jogava-o pela janela. Eu me identificava com essa exibição de desprendimento intelectual. Quando menino ouvi louvarem muito os maus alunos inteligentes e ridicularizarem os cus-deferro. Hoje, embora eu mesmo não possa mais mudar substancialmente quanto a isso, valorizo os adolescentes estudiosos e os espíritos metódicos - e tento, na feitura deste livro por exemplo, assegurar um mínimo de precisão para além da atingida espontaneamente.
Tropicália ou Panis et circensis (o mau latim - que Décio Pignatari, nos anos 70, já chamava de "delicioso provincianismo de vanguarda" - agora soa cheio de charme "histórico"), nosso disco-manifesto, saiu em 68, contando com a participação de Nara e Tom Zé, além, é claro, do grupo-núcleo formado por Gil, Gal, Mutantes, Duprat e eu, mas sem a presença de Bethânia, que, por rejeitar intimamente a confusão de sua pessoa com grupos ou movimentos, deixou a canção "Baby ", que ela própria encomendara, para ser gravada por Gal, o que resultou no primeiro grande sucesso desta. Um sucesso, aliás, merecidíssimo, pois a faixa revelou-se, por causa da voz de Gal e do arranjo de Duprat, uma obra-prima do tropicalismo (se não há uma contradição absoluta entre esses termos) - e uma verdadeira realização dos sonhos de Guilherme (e dos meus planos com Rogério em relação a Gal. Minha alegria ao ouvir, no estúdio, a adequação do estilo de Gal à canção (sendo a um tempo bossa nova e rock'n'roll, mas sendo algo diferente disso) e, sobretudo, a graça e a inteligência do arranjo de Duprat, levou a um incidente profundamente desagradável. Nós saímos do estúdio para o Patachou, o restaurante com nome de cantora que freqüentávamos na rua Augusta, para jantar em clima comemorativo. Geraldo Vandré, que estava em outra mesa, veio até a nossa e, ao perceber nosso entusiasmo pela gravação, pediu que Gal lhe cantasse a canção recém-gravada. Quando tinha ouvido o suficiente para ter uma ideia do que era, ele a interrompeu bruscamente, batendo na mesa e dizendo: "Isso é uma merda!". Gal calou -se assustada e eu, indignado, disse a ele que saísse dali. Ele ainda quis argumentar dizendo que nós estávamos traindo a cultura nacional, mas não permiti que ele concluísse o discurso e, gritando, exigi que nos deixasse, ressaltando que ele ao menos deveria ter sido cortês com Gal, cujo canto suave ele interrompera de forma tão grosseira. Isso inaugurou uma inimizade pessoal que traduzia nossa divergência ideológica - mas não houve nenhuma outra discussão agressiva nem a desavença ganhou publicidade.
Nós sabíamos da rejeição que nossas idéias e ações encontravam por parte da esquerda nacionalista. Vandré estava apenas externando francamente o que muitos sentiam a nosso respeito. Mas isso foi possível, no seu caso, não apenas por uma natural combatividade apaixonada que o enobrece. Um aspecto tristemente mesquinho de sua personalidade contribuía igualmente para tais explosões. Tendo assumido o papel do cantor de protesto por excelência - depois de fazer conhecidas algumas belas canções "de amor" em parceria com o grande Carlos Lyra -, sobretudo agora que sua brilhantemente escrita (sobre música de Théo de Barros) "Disparada" tornara -se um marco na história dos festivais, Vandré desejava tornar-se a bola da vez com uma contrafação da música participante de língua espanhola, principalmente a chilena. O que nos parecia um atraso, se se levasse em conta a originalidade da canção de protesto brasileira tal como a iniciara - antes da onda internacional e com características totalmente diferentes - o próprio Vinicius de Moraes, e como a desenvolveram Nara e Ly ra. Nós, de nossa parte, queríamos, entre outras coisas, acabar com o hábito de se ter uma "bola" a cada vez, apostando numa pluralidade de estilos concorrendo nas mentes e nas caixas registradoras.
Uma das marcas da Tropicália - e talvez seu único sucesso histórico indubitável - foi justamente a ampliação do mercado pela prática da convivência na diversidade, alcançada com o desmantelamento da ordem dos nichos e com o desrespeito às demarcações de faixas de classe e de graus de educação. Essa saudável destruição de hierarquias está na origem do que alguns críticos chatos chamam de "complacência cínica pós-60". Ela explica também a "generosidade" exagerada que, nos anos 70, Augusto de Campos, de um lado, e Glauber, de outro, achavam tão difícil aceitar em mim: um e outro, enfatizando aspectos diferentes, exerciam alguma pressão para que eu fosse menos receptivo e mais discriminatório. Glauber chegava a ser demasiado cruel em seus comentários sobre colegas meus – coisa que Augusto nunca foi. Mas não só esses dois: vários outros amigos demonstravam impaciência semelhante. O próprio João Gilberto, quando passamos a nos falar, estranhava minha tolerância. No entanto, foi o grande esforço de superação da visão estreita de mercado que dominava a produção e o consumo de música no Brasil que me levou, não a ser tolerante, mas a me tornar sensível a virtudes de naturezas as mais diversas. Mais tarde, me
vi desaprovando Gil por achar que ele tinha deixado isso levá-lo a considerar de múltiplos pontos de vista qualquer questão que fosse, a ponto de anular a possibilidade de definir uma posição. (Embora, paradoxalmente, Gil tenha sido sempre mais seletivo em relação ao que ouvir, ao que aprender e do que gostar). No nascedouro desses problemas, Vandré tentava estancar a correnteza - que era, afinal, uma exigência da força da MPB - propondo a Guilherme, nosso empresário, que nos dissuadisse de entrar no páreo; alegava que o Brasil necessitava daquilo que ele, Vandré, estava fazendo (ou seja: canções "conscientizadoras das massas") e que, como o mercado não comportava mais de um nome forte de cada vez, nós todos deveríamos, para o bem do país e do povo, jogar todas as cartas nele. Essa estranha proposta de renúncia foi feita de fato a Guilherme por Vandré - e muitas vezes eu me perguntei se não seria isso um esboço dos prestígios oficiais de que gozam, em nome da história, figurões insossos de países comunistas.
Livres do perigo vermelho desde que nossos inimigos militares tomaram o poder, nós não víamos a mais remota probabilidade de realizar-se esse desejo de Vandré. E assim achávamos apenas maluco seu raciocínio e continuávamos admirando tudo o que nele era admirável. Eu, principalmente, apesar de ver Chico Buarque muitíssimo acima de Vandré - musical, poética e eticamente – tinha preferido de longe (e o manifestava) "Disparada" a "A banda". Gil se mostrou menos entusiasmado do que eu com os resultados das gravações do Tropicália ou Pan is et circensis. Suponho que ele, saindo de um disco em que experimentara tantas combinações sonoras com Duprat e os Mutantes, desejasse seguir em frente em suas buscas, e o disco coletivo o segurava em terreno já explorado. Por outro lado, como eu estivesse na liderança e, ao contrário dele, deslumbrado com o mero fato de trabalhar com essa turma, eu não fazia as exigências de pureza técnica nas execuções e gravações que ele não tinha ânimo (ou tinha pudor) de cobrar de mim. Assim, quando o disco ficou pronto eu exultava de orgulho - e Gil só fazia se queixar dos metais desafinados logo na música de abertura.
É preciso, para entender essas minhas suposições, que se saiba melhor quem é, para mim, Gilberto Gil. Eu teria que me deter, mais cedo ou mais tarde, na apreciação dessa figura - tão central nesta história e tão unida à minha que, de certa forma constituímos, juntos, uma espécie de entidade - e eis que descubro que é aqui o lugar de fazê-lo.
Por volta de 62, 63, vi na TV Itapoan (a televisão só chegara a Salvador em 60) um rapaz preto que cantava e tocava violão como os melhores bossanovistas. Sua musicalidade exuberante, sua afinação, seu ritmo e sua fluência me entusiasmaram. Era excitante que pudesse haver por perto alguém tão especial. A TV dava a ilusão de distância, mas eu pensava, com o coração batendo, que, dado o tamanho da cidade - e, sobretudo, do grupo de pessoas da classe artística ou mesmo da classe média -, era provável que eu encontrasse em Salvador esse genial músico de sorriso alegre e sobrancelhas bem desenhadas. Minha mãe, que sempre gostou de música - e sempre gostou que eu gostasse de música -, me ouviu elogiá-lo, e, toda vez que ele aparecia na televisão, me chamava para vê-lo. Lembro com muito gosto o modo como ela se referia a ele (pelo menos ela o fez uma vez e isso ficou marcado muito fundo) dizendo: "Caetano, venha ver o preto que você gosta". Isso de dizer "o preto", sorrindo ternamente como ela o fazia (ou fez), tinha - teve, tem - um sabor esquisito que intensificava o encanto da arte e da personalidade do moço no vídeo. Era como se se somasse àquilo que eu via e ouvia uma outra graça, ou como se a confirmação da realidade daquela pessoa, dando-se assim na forma de uma bênção, intensificasse sua beleza. Eu sentia alegria por Gil existir, por ele ser preto, por ele ser ele - e por minha mãe saudar tudo isso de forma tão direta e tão transcendente. Era evidentemente um grande acontecimento a aparição dessa pessoa - eu via que se tratava de um músico de primeira linha, desde já um grande entre os grandes - e minha mãe festejava comigo a descoberta.
Falei sobre ele com todas as pessoas com quem eu encontrava na noite. Quase ninguém assistia televisão (eu próprio tivera a sorte de ver Gil porque a TV ficava ligada na sala de jantar durante as refeições). Seguramente a turma da crítica de cinema - Orlando Senna, Geraldo Portela, Carlos Alberto Silva - nunca tinha ouvido falar de "Beto". (O nome Gilberto Gil não é menos real do que Gal Costa. Sua eufonia algo pop - um tanto à Diana Dors, Marily n Monroe ou Brigitte Bardot - sugeria um pseudônimo inventado numa agência de publicidade para um pretendente a substituto de João Gilberto na crista da onda da bossa nova. Mas, sendo a escolha inevitável a partir dos quatro nomes constantes de seus documentos - Gilberto Passos Gil Moreira -, também revelava-se delicadamente belo em outro plano, mais nobre, em que a sílaba gil - um nome português com ecos arcaicamente literários por causa de Gil Vicente, o grande autor teatral do medievo lusitano - se repetia exata e limpidamente como que a prefigurar, para mim, o verso misterioso escrito no século XIX por Sousândrade e que eu só leria depois de 68: "Gil engendra em Gil rouxinol"). Acho que Laís Salgado e a turma da Escola de Dança já o tinham visto uma ou outra vez. Roberto Santana é que com certeza o conhecia pessoalmente. Santana - de uma família tradicionalmente de esquerda originária da cidade sertaneja de Irará - era um sarará da minha idade, machão e muito ativo, amigo de todo o mundo em Salvador. Ele prometeu que me apresentaria a Gil: "Você não conhece Beto? Ele é muito bom" (nessa época não havia as gírias "legal" ou "gente fina" ou "gente boa", e se dizia que alguém era "bom" num tom de leve desvio semântico, tanto para significar que esse alguém tinha boa posição política como para sugerir talento ou firmeza moral), "ele é bacana, você vai adorar ele". Fiquei intimidado com a possibilidade real do encontro: que graça poderia ter eu para "Beto"? E, dadas minhas limitações musicais e meu desinteresse por futebol ou outros temas masculinos, que assuntos em comum eu poderia ter com ele para sustentar uma conversa? Temi um encontro combinado resultando em minutos de silêncio constrangedor.
* A presente obra é disponibilizada por nossa equipe, com o objetivo de oferecer conteúdo para uso parcial em pesquisas e estudos acadêmicos, bem como o simples teste da qualidade da obra, com o fim exclusivo de compra futura. É expressamente proibida e totalmente repudiável a venda, aluguel, ou quaisquer uso comercial do presente conteúdo.
OS BASTIDORES DE "CHEGA DE SAUDADE", CLÁSSICO DE JOÃO GILBERTO QUE COMPLETA 60 ANOS... – PARTE 04
Lançado no dia 8 de março de 1959, o álbum começou a ganhar vida três anos antes no sítio da família de Tom Jobim, em Poço Fundo, na região serrana do Rio
Por André Bernardo
Por André Bernardo
'Quase um sussurro ao pé do ouvido'
O jornalista e crítico musical Tárik de Souza explica que não foi fácil a João convencer a todos de sua proposta inovadora. Principalmente os músicos da percussão. "João não queria a estridência da bateria e, reza a lenda, recorreu a um catálogo telefônico para abafar o ressoar das baquetas", diz.
Aos 72 anos, Tárik pode se orgulhar de ter sido um dos poucos jornalistas a conseguir uma exclusiva com João Gilberto. A proeza aconteceu em 1971, no Hotel Glória, para a revista Veja. "Conversamos por mais de quatro horas, sem que ele me deixasse ligar o gravador ou fazer anotações. Dois dias depois, lá estava eu na redação, em São Paulo, redigindo a mais importante entrevista da minha vida", recorda. Do álbum em si, o que mais lhe chama a atenção é a "transparência vocal absolutamente confidente". "Quase um sussurro ao pé do ouvido", define.
Terminada a gravação, João ainda tinha que posar para as lentes de Chico Pereira, o fotógrafo da Odeon. A roupa que ele usa na capa, a propósito, é de Roberto Menescal. "Um dia, o João me pediu uma ou duas camisas emprestadas. Em casa, levou o armário inteiro e eu fiquei só com a roupa do corpo. Nunca mais devolveu", entrega, bem-humorado, o autor de "O Barquinho".
Fora de catálogo desde 1990, "Chega de saudade" só pode ser encontrado em sebos ou sites de compra e venda. No site Mercado Livre, uma cópia pode custar até R$ 900. Em 2014, o engenheiro de som André Dias foi contratado para remasterizar seus três primeiros LPs: "Chega de saudade" (1959), "O amor, o sorriso e a flor" (1960) e "João Gilberto" (1961). A epopeia, calcula, levou cinco meses. Na dúvida sobre o resultado do trabalho, João ouviu uma segunda e terceira opinião: a dos produtores Moogie Canazio e Shigeki Miyata. Os dois aprovaram a remasterização.
Dias não perde a esperança de, um dia, João Gilberto autorizar o relançamento. "Gostaria que isso acontecesse com o João ainda vivo. Queria muito que ele se orgulhasse e visse que foi feita justiça com sua arte. Será a grande realização da minha vida."
sexta-feira, 28 de junho de 2019
CANÇÕES DE XICO
VERBO AMAR E VERBO MENTIR
Verdades e mentiras andam encangadas na mesma cangalha, abraçadas no mesmo caçuá. Às vezes a carga pende pra um lado e a gente mente verdades que no dia seguinte soam falsas, como na verdade são; outras vezes verdadeirizamos mentiras de uma forma tão real que elas terminam por confundir quem as ouve. Mas bom mesmo é quando todas as verdades nos apraz e satisfaz a quem amamos. Aí até esquecemos o que é a mentira. Pra quê, se recitar o verbo amar é muito mais doce que declamar o verbo mentir?
OS BASTIDORES DE "CHEGA DE SAUDADE", CLÁSSICO DE JOÃO GILBERTO QUE COMPLETA 60 ANOS... – PARTE 03
Lançado no dia 8 de março de 1959, o álbum começou a ganhar vida três anos antes no sítio da família de Tom Jobim, em Poço Fundo, na região serrana do Rio
Por André Bernardo
'Chet Baker brasileiro'
Dois meses depois do lançamento de Canção do Amor Demais, João Gilberto decidiu, ele mesmo, gravar Chega de Saudade. Mas não foi fácil convencer Aloysio de Oliveira, o todo-poderoso da Odeon, a investir na produção de um LP daquele ilustre desconhecido.
Antes de lançar seu primeiro disco, em março de 1959, João gravou dois compactos de 78 rpm: o primeiro, em julho de 1958, trazia "Chega de saudade" e "Bim Bom", e o segundo, em janeiro de 1959, "Desafinado" e "Hô-bá-lá-lá". Todos os arranjos levaram a assinatura de Tom Jobim.
Quando regressou aos estúdios Odeon, na Cinelândia, para gravar seu LP de estreia, 4 das 12 faixas já estavam prontas. Para finalizar o álbum, gravou "Brigas nunca mais" no dia 23 de janeiro, "Morena Boca de Ouro" no dia 30 de janeiro e "Lobo bobo", "Saudade fez um samba", "Maria Ninguém", "Rosa Morena", "Aos pés da cruz" e "É luxo só" no dia 4 de fevereiro.
"O repertório era superior ao dos maiores cantores da época, como Nelson Gonçalves, Cauby Peixoto e Anísio Silva", avalia o jornalista e pesquisador Ricardo Cravo Albin. "Em 1959, eu gostava de ouvir jazz e, por essa razão, senti um prazer imediato ao ouvir "Chega de saudade". João Gilberto era uma espécie de Chet Baker brasileiro", compara, em alusão ao cantor e trompetista americano.
As gravações de "Chega de saudade" duraram de 10 de julho de 1958 a 4 de fevereiro de 1959. Ao longo de sete meses, João conseguiu se desentender com todo mundo: técnicos, músicos e até Tom Jobim, o produtor musical do LP. A primeira vítima foi Z. J. Merky, o diretor técnico da gravação, que não entendeu quando João pediu dois microfones: um para a voz e outro para o violão. Exigência atendida, ele passou a interromper a gravação sempre que identificava algum erro da orquestra.
"Numa das incontáveis interrupções, alguns músicos se amotinaram e saíram batendo portas. Quando concordaram em voltar, era o cantor que já não queria gravar", conta Ruy Castro em Chega de Saudade. "Tom Jobim não sabia se tocava piano, se regia a orquestra ou se corria de um lado para o outro, com os panos quentes". Lá pelas tantas, sobrou até para ele. "Você é brasileiro, Tom, você é preguiçoso!", foi obrigado a ouvir.
quinta-feira, 27 de junho de 2019
GRAMOPHONE DO HORTÊNCIO
Por Luciano Hortêncio*
Canção: Maria
Composição: Raul Marques - Carlos Rego Barros de Sousa
Intérprete - Jorge Veiga
Ano - Junho de 1945
Álbum - Continental 15.236-A
Álbum - Continental 15.236-A
* Luciano Hortêncio é titular de um canal homônimo ao seu nome no Youtube onde estão mais de 10.000 pessoas inscritas. O mesmo é alimentado constantemente por vídeos musicais de excelente qualidade sem fins lucrativos).
OS BASTIDORES DE "CHEGA DE SAUDADE", CLÁSSICO DE JOÃO GILBERTO QUE COMPLETA 60 ANOS... – PARTE 02
Lançado no dia 8 de março de 1959, o álbum começou a ganhar vida três anos antes no sítio da família de Tom Jobim, em Poço Fundo, na região serrana do Rio
Por André Bernardo
'Nunca levei uma surra assim'
Lançado no dia 8 de março de 1959, o álbum "Chega de saudade" começou a ganhar vida no sítio da família de Tom Jobim, em Poço Fundo, na região serrana do Rio. Foi lá que, em 1956, o maestro, então com 27 anos, compôs ao violão uma espécie de samba-canção em três partes. Ao regressar ao Rio, confiou a melodia aos cuidados do poeta Vinícius de Moraes.
O poetinha gostou do que ouviu, "uma música nova, original, tão brasileira quanto choro de Pixinguinha ou samba de Cartola", mas, demorou a escrever a letra. "Nunca levei uma surra assim", admitiu em crônica publicada no jornal "Diário Carioca", em 1965. Quando deu a letra por encerrada, soltou um berro de alegria. Lila, sua mulher, não pareceu tão animada. "Rimar peixinhos com beijinhos, que coisa mais boba", fez pouco caso. No mesmo dia, Vinicius correu para mostrá-la a Tom, que morava na rua Nascimento e Silva, a poucos quarteirões de distância.
João Gilberto não foi o primeiro a gravar a mais recente obra-prima da dupla de Orfeu da Conceição. A cantora Elizeth Cardoso incluiu a música em seu álbum "Canção do amor demais", gravado em abril de 1958 nos estúdios da Columbia, no Rio, e lançado, um mês depois, pelo selo Festa.
João acompanhou Elizeth ao violão em 2 das 13 faixas: "Chega de saudade" e "Outra vez". Mesmo assim, fez questão de participar dos ensaios no apartamento de Tom. "Rolou um mal-estar quando João, um violonista até então desconhecido, tentou ensinar a Divina Elizeth a cantar "Chega de saudade". Queria que ela cantasse como ele cantava. Foi uma audácia", comenta Zuza.
quarta-feira, 26 de junho de 2019
QUANDO A TÔNICA VAI MUITO ALÉM DO GÊNERO
Cantora prestigiada com entusiasmo pelo Rei do Marrocos retoma a bem sucedida ode a um dos nomes mais expressivos da música popular brasileira de todos os tempos.
Por Bruno Negromonte
A música do Brasil não precisa de tradução para ser apreciada lá fora. Ela tem uma vocação natural para ser exportada e pode ser considerada como um dos produtos mais bem sucedidos no mercado internacional. Não são poucos os casos de músicos brasileiros fazendo sucesso em diversos países ao redor do mundo. Do tchica-tchica bum às múltiplas variações do bate estaca da música eletrônica, passando pela cadência do samba e as levadas inconfundíveis da bossa nova só são capazes de sintetizar uma única afirmação: o mundo adora a música brasileira como podemos observar desde os anos de 1940 quando nossa MPB "infiltrou-se" em definitivo no show business americano através da emblemática de Carmen Miranda, símbolo internacional da música brasileira no exterior na época. Nossa “The Brazilian Bombshell” (a bomba brasileira, em tradução livre) chegou a ser a mulher mais bem paga do show business norte-americano, apresentou-se na Casa Branca, em uma festa para o Presidente Roosevelt, e somou, ao longo de sua carreira, cerca de 19 filmes, diversos shows na Broadway e uma marca: ser a única artista que tem gravada suas mãos e seus famosos sapatos de salto plataforma no cimento da Calçada da Fama, em frente ao Chinese Theatre, em Los Angeles. Com as portas abertas pela pequena notável, a música brasileira obteve uma relevante credencial para estar presente não apenas nos Estados Unidos, mas ao redor do mundo, em particular a partir dos anos de 1960 quando a bossa nova (que este ano completa seis décadas de existência) impulsionou ainda mais a música brasileira a partir de características que abriram as portas para artistas brasileiros em ambientes tradicionalmente voltados para o jazz, por exemplo. A sofisticação melódica das criações de nomes como Tom Jobim, Vinicius de Moraes, Carlos Lyra, Oscar Castro Neves, Sérgio Mendes, Luiz Bonfá, Roberto Menescal e tantos outros abriram portas como a do Carnegie Hall, uma das mais famosas salas de espetáculos dos Estados Unidos.
Por falar em Bossa Nova, o gênero vem comemorando seis décadas de existência contabilizadas a partir do lançamento do álbum "Canção do amor demais", da cantora Elizeth Cardoso. O disco que é considerado um dos marcos iniciais desse movimento musical que conquistou o mundo além de apresentar composições de Vinicius de Moraes e Antônio Carlos Jobim conta também com a presença de João Gilberto tocando violão em duas faixas, delineando a partir dali uma sonoridade que traria como resultado "Chega de saudades", álbum de estreia do cantor e compositor baiano que em 1959 arrebatou e influenciou toda uma geração e modificou, até certo ponto, os rumos musicais brasileiro como é possível perceber ao ouvir relatos de expressivos nomes da nossa música que surgiram posteriormente como é o caso da cantora e atriz Hanna, que nascida em Maceió, começou muito cedo a incursionar no meio artístico a partir da Rádio Difusora, onde foi eleita a "Rainha do Rádio". Tempos depois, no Rio de Janeiro fez o seu primeiro registro em disco a partir da trilha sonora do filme "Xavana a ilha do amor", no qual também atuou como atriz. Entre os anos de 1980 e 1990 fez alguns registros fonográficos hora pela gravadora Som Livre, hora de modo independente como foi o caso do álbum "Eu te amo", divulgado dentre diversos canais no "Jô onze e meia". Os anos 2000 serviram para sedimentar a carreira da artista (principalmente no mercado internacional), onde vem acumulando elogios e um notável reconhecimento em clubes de jazz da Itália, Suíça, Grécia, França, entre outros países como, por exemplo, o Marrocos onde em Marrakesh foi saudada com entusiasmo pelo Rei do país.
Quatro anos após o lançamento do primeiro e bem sucedido volume (O disco foi indicado em diversas categorias ao Grammy Latino e também ao Premio da Música Brasileira como melhor álbum à época), a cantora alagoana nos presenteia agora com o segundo volume do projeto "O Amor É Bossa Nova - Homenagem a João Gilberto", um projeto que reitera a importância não apenas do movimento em si, mas também do cantor e compositor de clássicos do gênero como "Ho ba la la" e "Bim bom"(canção que faz parte do repertório deste lançamento). Por falar em setlist o álbum duplo conta com 23 canções que abrange autores como Dorival Caymmi ("O samba da minha terra") Caetano Veloso ("Desde que o samba é samba" e "Avarandado"), Gilberto Gil ("Eu vim da Bahia"), Ary Barroso ("Aquarela do Brasil"), Haroldo Barbosa e Janet de Almeida ("Pra que discutir com madame", "Eu quero um samba"), Geraldo Pereira ("Falsa baiana"). Merecendo destaque há Tom Jobim, autor mais gravado nesse projeto, assinando nove das 23 faixas. De lavra do saudoso maestro soberano faixas como "Corcovado", "Águas de março", "Triste", "Lígia", "Eu Sei Que Vou Te Amar" (parceria com Vinicius de Moraes), "Retrato em branco e preto" (composta a quatro mãos com Chico Buarque), entre outras.
Em tempos de efemeridade, o canto e a interpretação de Hanna faz-se capaz de mostrar o porquê de um movimento majoritariamente composto por universitários e integrantes da alta sociedade carioca acabou alcançando distintas classes sociais e fez-se perene e respeitado ao redor do mundo. O apuro estético do gênero somado ao talento, sensibilidade e agudeza de uma cantora com uma carreira internacional digna de elogios (vale o registro de que, ao longo dos anos de carreira, vem somando ao seu currículo apresentações em clubes de jazz da Itália, Suíça, Grécia, França entre outros espaços). "O Amor É Bossa Nova - Homenagem a João Gilberto - Volume 02" não apenas contribui para repaginar a placidez da musicalidade de um dos nomes mais expressivos da música brasileira de todos os tempos, mas também para reiterar a importância de um legado singular pontuado por características marcantes daquele que é considerado um dos pais da Bossa Nova a partir da batida de violão que a caracterizou. Em tempos em que João Gilberto pouco é lembrado pela placidez e perfeccionismo de sua irrepreensível obra, Hanna busca outro viés para voltar os holofotes para o ícone baiano: a música.
Maiores Informações:
IMMUB - https://immub.org/album/o-amor-e-bossa-nova-volume-2-homenagem-a-joao-gilberto
OS BASTIDORES DE "CHEGA DE SAUDADE", CLÁSSICO DE JOÃO GILBERTO QUE COMPLETA 60 ANOS... – PARTE 01
Lançado no dia 8 de março de 1959, o álbum começou a ganhar vida três anos antes no sítio da família de Tom Jobim, em Poço Fundo, na região serrana do Rio
Por André Bernardo
"Vai minha tristeza / E diz a ela / Que sem ela não pode ser...". Sessenta anos depois, a emoção de ouvir pela primeira vez os versos iniciais de "Chega de saudade" continua praticamente indescritível.
O jornalista Zuza Homem de Mello fala em um momento "impactante" e "enlouquecedor". Aos 86 anos, o autor de "João Gilberto" (Publifolha, 2001) seguia rumo ao parque do Ibirapuera quando "Chega de saudade" tocou no rádio da perua Dodge: "Na mesma hora, encostei e fiquei ouvindo aquilo, extasiado. 'Chega de saudade' era uma novidade em todos os sentidos".
Autor de "Chega de saudade" (Companhia das Letras, 1990), Ruy Castro lança mão de uma referência bíblica para ilustrar a sensação dos que ouviram "Chega de saudade" pela primeira vez: "Charlton Heston descendo do Sinai com os 'Dez Mandamentos' debaixo do braço".
Quem também não se esquece da primeira vez em que ouviu o samba-canção composto por Tom Jobim em parceria com Vinicius de Moraes é o jornalista, escritor e letrista Nelson Motta. Foi nas férias de 1958, em São Paulo, num radinho de pilha. Nelson tinha, à época, 14 anos.
"Foi como um raio. Aquilo era diferente de tudo que eu já tinha ouvido", relata no livro "Noites tropicais" (Objetiva, 2000). "Fiquei chocado, sem saber se tinha adorado ou detestado. Mas, quanto mais ouvia, mais gostava". Hoje, aos 74, solta uma risada ao se intitular um "gilbertômano terminal". "'Chega de saudade' é um dos discos mais influentes de nossa história", afirma. "Não houve propriamente uma ruptura. O samba-canção já produzira muitas canções que antecipavam a bossa-nova. Só faltava a batida revolucionária do João".
terça-feira, 25 de junho de 2019
LENDO A CANÇÃO
Por Leonardo Davino*
Música contra o fim da música
Num ano em que temos, entre outros tantos exemplos do vigor da música brasileira, da sereia do mangue Elza Soares, aquela que vai cantar até o fim, à selvática Karina Buhr, passando pela Gal Costa sem medo nem esperança, pelo “barulho feio” de Mariana Aydar (a gente no meio), pela soledade de Cida Moreira, pela patrya yndia de Ava Rocha, pela mama kalunga de Virginia Rodrigues e pelo canto a Atôtô do Metá Metá; sem contar o rá de Ogi, o canto de Danilo a Dorival, os niños heroes de Negro Leo, as conversas com toshiro de Rodrigo Campos, a macumba de Johnny Hooker, o estado de poesia de Chico Cesar, o baile solto de Siba, o carbono de Lenine, o blam blam de Jonas Sá... (a lista é ampla e múltipla)... escrever que a música chegou ao fim, que não tem mais papel relevante, é algo que nem mereceria comentários. Mas é por demais forte simbolicamente para eu não me abalar.
Repisar a mal interpretada afirmação de Chico Buarque sobre o “fim da canção” - Chico falava, com lucidez, de um certo modo de fazer e consumir canção no Brasil - é, no mínimo, querer provocar um frisson cafona na leitura do diário matinal. Para não me estender, evoco a afirmação do mestre Luiz Tatit a respeito do tema. Algo mais ou menos assim: “enquanto houver humano, haverá canção”. E música. E isso já deveria dizer tudo. E diz. Mas a gente gosta de polêmica, o mercado precisa da polêmica. O espetáculo precisa continuar.
No atual momento de descentralização das produções culturais, os complexos mecanismos de legitimação do artístico não passam mais pelos caducos sistemas. E os sistemas se ressentem disso. Como pesquisador, bem sei que dar conta da criação estilhaçada em torno da canção brasileira é mesmo tarefa sisífica. É bem mais fácil negar tudo e dizer que a música chegou ao fim. Assim faz a TV, por exemplo, com suas trilhas sonoras repletas de “roupas novas” para “canções velhas”, ou seja, já devidamente testadas e aprovadas pelo consumidor. O rádio segue o mesmo ritmo.
A questão é que não há mais UMA ideologia cultural a ser musicada. Se é que já existiu. As ideias de horizontalidade e polifonia (finalmente) caracterizam nossa nacionalidade. Penso que a música continua a ser a linha de frente do debate cultural. Porém, encontrando-se com parceiras de outras linguagens, agregadas a ela pelo menos desde a tropicália, passando pelo manguebeat, pelo funk carioca e rap paulista, além do tecnobrega paraense, (para ficar no exemplo de alguns dos grandes movimentos), a música não é mais (apenas) grito de alerta. A música é coletivos, é colaborativa. Basta ir a qualquer atividade “de rua” para ver, ou melhor, ouvir: a música está lá – quente, ritmando, forjando-se. "Ouça como canta louve como conta prove como dança", sugeriu Haroldo de Campos em suas Galáxias. A música aceitou o desafio. E a canção.
Querer uma música (ou uma canção) que represente o nacional no atual estado de subjetividades é uma querência, no mínimo, pueril. Como distinguir a margem do centro hoje? Margem é quem vende pouco? É quem não aparece na TV? Centro é quem vende muito? Quem lota estádios? Portanto, mantemos a perspectiva do mercado para pensar a arte e os afetos? Emicida está aí problematizando a tal “inserção social”.
Oswald de Andrade anotou no manifesto antropófago: “Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros”. É por aí que passa a construção do espaço social hoje. Parece que a música entendeu muito bem que uma reconciliação das populações como uma "identidade nacional" é inviável. “Brasil, braseiro de rosas”, escreveu Sousândrade. Constantes globais? Qual o quê? Passamos de povo à multidão. E a multidão é a aglomeração (barulhenta) de individualidades. Nega-se a ideia de massa e do apagamento das diferentes em benefício de um “bem comum”; e afirma-se o cartaz pessoal e intransferível, o choque multicolorido das diferenças. Ao preservar as especificidades micro-coletivas internas à multidão, a atual música brasileira dá vigor à diversidade macro-coletiva do povo novo. Bem como à nossa imagem de país, de sociedade e de afetos.
Querer resgatar as imprescindíveis imagens de Villa-Lobos e Mário de Andrade como argumento é, no mínimo, falta de informação. Afinal, grande parte dos cancionistas aqui citados é ouvinte-leitora desses mestres da ideia de nacionalidade. Cabe lembrar que o próprio Mário preferia trabalhar o termo "entidade", no lugar de "identidade", para pensar o país. Ouça quem tiver ouvidos para ouvir. Estão lá, na música atual: as culturas marginais (folclóricas?) e a pesquisa instrumental. Mas está tudo tão devidamente e esteticamente (antropofagicamente) trabalhado e disseminado que dá mesmo muito trabalho de ouvir.
Não vou me dar à labuta de discutir a indistinção entre popular e erudito. Aliás, note-se que usei os termos canção e música de forma propositalmente misturada também. Agora, dê-me licença, que vou ali ouvir o “Anganga” de Juçara Marçal e Cadu Tenório.
* Pesquisador de canção, ensaísta, especialista e mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e doutor em Literatura Comparada, Leonardo também é autor do livro "Canção: a musa híbrida de Caetano Veloso" e está presente nos livros "Caetano e a filosofia", assim como também na coletânea "Muitos: outras leituras de Caetano Veloso". Além desses atributos é titular dos blogs "Lendo a canção", "Mirar e Ver", "365 Canções".