RESUMO
Esta pesquisa apresenta uma análise acerca de uma parte da obra de Jackson do Pandeiro, situada entre os anos de 1953 e 1967. Tal análise busca apontar essa obra como um exemplo importante do hibridismo cultural existente na música popular brasileira. Para compreender melhor tal hibridação, perpassa a nossa análise a formação da identidade nacional e da nordestina, que foram sendo construídas, sobretudo, a partir da década de 1920. Compreendemos esse período da obra jacksoniana como uma contribuição para o redimensionamento das ideias de nacionalidade brasileira e de “nordestinidade”, para que possamos perceber como essas formulações de identidade são, antes, parte de um processo histórico, e não, um dado congelado no tempo e em espaços imóveis. Nesse sentido, este estudo corresponde à linha de pesquisa de História Regional, visto que nos auxilia a compreender a construção de uma dada região, o Nordeste brasileiro, a partir da sua articulação com os agentes e os espaços nacionais e globais. Palavras-chave: Jackson do Pandeiro. Hibridismo. Música popular brasileira. Nacionalismo. Nordeste.
1.3 A CONSTRUÇÃO DA
IDENTIDADE NORDESTINA NA MÚSICA POPULAR
A imagem clássica do Nordeste –
independentemente de ser o açucareiro ou o sertanejo – descreve-o como uma
região agrária, atrasada e avessa à modernização. Essas classificações
implicam, necessariamente, a existência de outra região, que é urbana, desenvolvida
e moderna.
Tentando traçar a trajetória na qual se
embasa tal percepção de Nordeste, Penna percebe que, com o desenvolvimento da
lavoura cafeeira, na segunda metade do século XIX,
a fração agrária regional tem consciência tanto da perda de valor das
Províncias do Norte no espaço nacional como de crise, embora atingindo
diferencialmente vários setores, afeta o regime de classe e as relações de
trabalho que lhes interessa preservar. A percepção é de que a crise econômica deve-se ao descaso do governo central, que favorece a
província do Sul. Configuram-se, assim, dois outros elementos fundamentais dos
discursos regionalistas: a oposição ao Sul, enquanto “espaço-obstáculo”, e ao
Estado, interlocutor ao qual são dirigidas as reivindicações (PENNA, 1992,
p.23).
Do ponto de vista geográfico, apesar de
o Nordeste não corresponder totalmente à classificação das Províncias do Norte
– que, nessa época, estendiam-se da Bahia ao Amazonas –
o discurso é bastante semelhante
àquele que se atribui posteriormente à Região Nordeste. Enquanto região
diferente do atual Norte, o Nordeste só foi assim classificado, oficialmente,
em 1942, no período do Estado Novo. Entretanto, segundo Albuquerque Jr., na
década de 1920, começaram a aparecer os discursos nos quais podemos encontrar
uma separação entre a área amazônica e a do atual Nordeste. Essa região surgiu,
portanto, como sendo um espaço nacionalmente abandonado em detrimento do Sul –
leia-se Sudeste, sobretudo os estados do Rio de Janeiro e São Paulo.
Ainda segundo Penna, essas
reivindicações regionalistas devem ser consideradas como algo articulador da
nação na medida em que “as categorias nação e região não se opõem, pois as
práticas e o projeto político são nacionalistas, e não separatistas, já que se
apela ao Estado para a solução da crise” (PENNA, 1992, p.26). Na década de
1950, por exemplo, ainda permanece a ideia de que o subdesenvolvimento da
Região Nordeste estava antes relacionado com as disparidades regionais, como
problema nacional a ser solucionado pelo Estado. É nesse sentido que vem do
governo federal o investimento nas políticas públicas destinadas ao
melhoramento das regiões “atrasadas” e cria-se, em 1959, e ainda no governo de
Juscelino Kubitschek, a SUDENE.
A perspectiva de atraso da Região
Nordeste, ao mesmo tempo em que coloca o Sul como opositor une, do ponto de
vista social, aquela região, porquanto os sujeitos causadores dos seus
problemas estão fora dela, “de modo que o processo de homogeneização interna é
reforçado, por sobre as diferenças de classe” (PENNA, 1992, p.26). Somando-se a esse “inimigo externo”, as causas das
agruras nordestinas também aparecem relacionadas às questões que estão para
além das possibilidades de uma ação humana que provoque uma mudança realmente
estruturante. É nesse sentido que os problemas ambientais aparecem como os grandes agentes da miséria e
precariedade da vida do nordestino. Não é à toa que a imagem atribuída a esse
Nordeste é a da seca, como deixa clara a preferência de Cascudo no seu poema Terra Roxa publicado em 1926:
Não gosto do sertão
verde,
Sertão de violeiro e de açude cheio, Sertão
de rio descendo,
l
e
n
t
o
[...]
Prefiro o sertão vermelho, bruto, bravo, com
o couro da terra furado pelos serrotes hirtos, altos, secos, híspidos
e a terra é cinza paolhando um sol de cobre e
uma luz oleosa e mole
e
s
c
o
r
r
e
como óleo amarelo de lâmpada de Igreja.
(CASCUDO, 1926 apud NEVES, 2004, p.102-103).
Segundo Penna, essa ideia de
“Nordeste-sertão” é um discurso que foi vencido dentro da disputa entre forças
político-econômicas existentes no próprio Nordeste, a saber, os latifundiários
da zona da mata açucareira e os do sertão algodoeiro-pecuário. Entretanto, para
além das disputas locais, cabe pensarmos no fato de que as dificuldades
existentes em uma região profundamente assolada pela seca foram fundamentais
para a consolidação desse olhar homogeneizado, que fez do Nordeste uma região
problemática, em virtude das suas condições ambientais. Isso fez com que as
desigualdades sociais, existentes não só na própria região como em seus estados
e municípios, ficassem em segundo plano.
Para um dos maiores representantes da
música popular produzida no Nordeste brasileiro, Luiz Gonzaga – nascido na
fazenda Caiçara, no sopé da Serra de Araripe e zona rural de Exu, sertão de Pernambuco – o Nordeste se
centrava no sertão, o que corrobora a perspectiva acima exposta.
Albuquerque Jr. aponta que, nas músicas
de Gonzaga, “o Nordeste era visto [...] como um espaço a ser salvo de seu
problema natural” (1999, p.163). A figura do Estado aparece como algo
salvacionista, e não, como partícipe de uma estrutura política que também ajuda
a construir a situação caótica em que se encontra o sertão nordestino. O homem
nordestino estabelecia, de acordo com tal perspectiva, uma estreita relação com
a natureza. Tal relação foi um dos principais eixos norteadores da ideia de
Nordeste, que era o lugar onde a relação homem/natureza permanecia,
diferentemente do Sul, cujo processo de urbanização não mais permitia essa relação.
O Nordeste seria eminentemente rural.
Do ponto de vista das manifestações culturais, o rural é aqui percebido
marioandradinamente, já que seria no sertão nordestino que poderíamos encontrar
o “verdadeiramente brasileiro, onde os meninos ainda brincam de roda, os homens
soltam balões, onde ainda existem as festas tradicionais de São João. Lugar
onde reina a sanfona [...]” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2011, p.162).
O caráter quase idílico do Nordeste só
era rompido quando as secas aconteciam, e elas surgem “como o único grande
problema do espaço nordestino” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2011, p.157). A cidade era
a corruptora de todos os tradicionais valores brasileiros, inclusive dos
patriarcais. O Nordeste gonzaguiano é rural, mas um rural bucólico, gostoso,
saudoso e parado no tempo. Essa perspectiva de Nordeste já existia no
pensamento freyreano, que, segundo Penna,
delineia um Nordeste que, ultrapassando os limites territoriais
político- administrativos, ganha unidade enquanto uma sociedade patriarcal e
agrária, caracterizada por elementos idealizados (com saudosismo) da economia
açucareira em tempos áureos (1992, p.25).
Em Freyre, assim como em alguns
romancistas como José Lins do Rego e José Américo, o Nordeste é sempre aquele
da zona da mata e da cultura canavieira. Já a seca do sertão é o elemento
importante na retratação do Nordeste em Graciliano Ramos e em Rachel de
Queiroz. Entretanto, seja o açucareiro, seja o sertanejo, o Nordeste nos
provoca, de acordo com essas reflexões, uma sensação muito semelhante. Nesse
sentido, Albuquerque Jr. corrobora a nossa reflexão quando afirma que
a música de Gonzaga vai ser pensada como representante dessa identidade
regional que já havia se firmado por meio da produção freyreana e do “romance
de trinta”. Dará a esse recorte uma sonoridade que ainda não possuía ao
realizar um trabalho de recriação comercial de uma série de sons, ritmos e
temas folclóricos dessa área do país (1999, p.155).
O Nordeste subdesenvolvido poderia
oferecer para um Sul desenvolvido e, portanto, moderno, além da mão de obra
barata e do mercado consumidor, um pedaço da autêntica cultura brasileira que a
cidade moderna estava, perigosamente, alterando. Lúcia Oliveira constata que “o
Nordeste vai ser apresentado tanto como lugar mais subdesenvolvido quanto como
o mais nacional, graças as suas tradições populares [...]” (2007, p.5).
Desse modo, o atraso desse Nordeste
rural torna-se dialeticamente problema e solução, uma vez que o mundo urbano –
leia-se a região Sul – desvirtuava a verdadeira cultura
nacional. Assim, “o percurso do nacional e do regional
passa pela defesa do popular, incorporado enquanto autêntico e tradicional
[...]” (PENNA, 1992, p.26). Coube ao Nordeste fazer a ponte entre o regional e
o nacional, para que fosse garantido um espaço para essa região no concerto da
nação brasileira. Se, de forma dialética, o Nordeste se integrava culturalmente
ao Brasil moderno – através do quinhão de tradição que representava –, o
regional não excluía o nacional, ao contrário, ele ajudava na elaboração da
nacionalidade.
Do ponto de vista político, no entanto,
o governo Vargas se esforçou para minar os poderes regionais em prol da
construção nacional. Francisco de Oliveira apontou como essa unificação da
nação brasileira acelerou a derrocada econômica do Nordeste. Para ele, o
agravamento das disparidades regionais inicia-se
[...]
pela destruição dos capitais do “Nordeste”: são fábricas que não conseguem
competir em preço e qualidade, são atividades antes protegidas pelas barreiras,
são as próprias formas anteriores de reprodução do capital, nos “Nordestes”,
que são postas em cheque; suas circularidades específicas de reprodução são
ultrapassadas e dissolvidas pela nova forma
de reprodução do capital da “região” em expansão, tendo em vista o
caráter cumulativo que os aumentos da produtividade do trabalho imprimem ao
processo de geração de valor; nisto reside a metamorfose da imposição do
equivalente geral a todo o conjunto da economia, isto é, na troca de valores
iguais ganha o que tem em si maior produtividade do trabalho (1981, p.76).
Esse movimento, contudo, não é apenas
econômico, pois os acordos políticos exerceram um papel crucial nessas novas
formas de produção. Assim, os próprios nordestinos são participantes ativos do
estabelecimento das novas relações de poder
no âmbito nacional. A respeito do discurso elaborado pelo nordestino de
que seria ele o maior exemplo da opressão exercida por uma dada região,
Albuquerque Jr. nos alerta:
Ora,
não existe essa exterioridade às relações de poder que circulam no país, porque
nós também estamos no poder, por isso devemos suspeitar que somos agentes de
nossa própria discriminação, opressão ou exploração. Elas não são impostas de
fora, elas passam por nós. Longe de sermos seu outro lado, ponto de barragem,
somos ponto de apoio, de flexão (2011, p.32).
Ainda devemos considerar que, se
econômica e politicamente, o Nordeste torna-se ator coadjuvante diante da
plateia nacional, culturalmente, ele não deixa de ser uma grande referência de
produtividade. Do ponto de vista cultural, alguns representantes do governo
Vargas buscavam nas manifestações nordestinas as fontes de nacionalidade a fim
de, através do seu manancial cultural, fortalecer-se nos outros âmbitos
nacionais. Essa reflexão entrava em consonância com a de Agamenon Magalhães, interventor de
Pernambuco entre 1937 e 1950, que pode ser compreendida tendo em vista a
colocação de McCann: “De qualquer modo, nem todas as regiões se formaram
igualmente e, no processo de consolidação nacional, algumas regiões,
inevitavelmente, pareceriam mais „brasileiras‟ do que outras” (2004, p.101,
tradução nossa). De modo semelhante, podemos afirmar que Andrade corroborava a
ideia de que o Nordeste é o celeiro cultural brasileiro, para onde deveria
estar voltada a necessidade de exploração da brasilidade. Segundo Albuquerque
Jr., para os modernistas, a música nacional “não deveria ser atravessada pelos
ruídos dissonantes do meio urbano, e, por isso, a música nacional seria a
música rural, a música regional” (2011, p.173).
No que diz respeito à produção musical,
o Nordeste conseguiu, ao longo do século XX, figurar entre as grandes produções
brasileiras. Assim, contrariando as expectativas marioandradinas, se o samba
conseguiu se firmar como o som de maior representatividade nacional, a música
popular nordestina seguiu os seus rastros, aliando-se também à produção musical
de massa. Essa aliança fez da música produzida no Nordeste também um importante
elemento de representação de brasilidade. A música nordestina passou a
significar, de certa forma, aquilo que Mário de Andrade prescrevia. Se Andrade
foi um estudioso das manifestações produzidas no Nordeste e, portanto, uma
figura central no processo de valorização da sua música nos âmbitos político e
científico, Luiz Gonzaga, através da aliança acima citada, foi, ao mesmo tempo,
formador e divulgador de uma consciência identitária nacional-regionalizada.
Segundo afirma Gilberto Gil, no prefácio da biografia sobre Gonzaga, “o baião
[...] passa a se constituir no principal gênero da nossa música popular, depois
do samba” (DREYFUS, 2007, p.9). No entanto, enquanto o samba vinha trazendo o
conceito de música popular para o universo urbano, na sanfona de Luiz Gonzaga,
tal conceito se associava à romântica ideia de cultura popular.
Diante da vitória do Nordeste-sertão
nas disputas políticas internas do Nordeste, Luiz Gonzaga, um filho do sertão,
tornou-se o símbolo máximo da representação da cultura nordestina. Para além
dessas disputas, compreendemos que o sucesso de Gonzaga deveu-se também ao
respaldo histórico que as suas canções tinham. As migrações ocorridas desde a
década de 1920 e acentuadas entre 1940 e 1960 foram o grande mote da obra de
Gonzaga. Elas permitiram a aceitabilidade, por parte do público, do modo
gonzaguiano de ler o Nordeste e o nordestino. Dessa maneira, os emigrantes
nordestinos se sentiam confortados por terem de volta um pouquinho do Nordeste,
ao ligar o rádio e escutar o som inconfundivelmente anasalado de Gonzaga. Os
paulistas e cariocas aprendiam, com as canções
de Gonzaga, sobre
a vida pregressa de um povo que passava a fazer parte do seu cotidiano. Por fim, até os habitantes do Nordeste que não
haviam emigrado, enchiam-se de satisfação ao se ouvirem retratados em músicas
de sucesso nacional e, por mais que tais canções falassem de um estrato social
menos abastado, todos os outros se sentiam – e se sentem – um pouco
gonzaguianos.
A respeito do impacto que as migrações
nordestinas tiveram para o Brasil, McCann, partindo da análise das canções de
Dorival Caymmi e de Luiz Gonzaga, afirma: “Como ambos os compositores
reconheceram mais adiante, a migração nordestina estava transformando a cultura
popular do Rio e São Paulo e, por extensão, a do próprio Brasil” (2004, p.97,
tradução nossa). A migração nordestina foi fundamental para a consolidação
desse “ser nordestino”. Sobre isso, McCann aponta: “Não é nenhuma surpresa que
a jornada para fora do Nordeste venha à tona no trabalho tanto de Caymmi quanto
de Gonzaga, os dois músicos populares nordestinos mais proeminentes da época
(2004, p. 97, tradução nossa)”.
As músicas de Luiz Gonzaga são percebidas
como autênticas e tradicionais, como descreveu Humberto Teixeira em 1950: “O
Baião é tão antigo quanto o sertão nordestino.” (TEIXEIRA, 1950 apud McCANN,
2004, p.115, tradução nossa). Entretanto foi justamente o processo migratório
que possibilitou a articulação da identidade nordestina, pois, na verdade, são
os choques culturais que permitem uma recriação de modos de ver o mundo. Nesse
sentido, a criação identitária é, por si só, uma recriação identitária, na
medida em que a autorreflexão só tem sentido quando confrontada. No entanto,
mais do que confronto, a cultura nordestina expressada na voz do Rei do Baião
significava uma tradução do Brasil para os brasileiros. Gonzaga fazia uma ponte
entre diferentes culturas brasileiras, já que ele narrava a migração tão
[...] festejada pelo discurso nacionalista como um fator de integração
nacional, um fator de encontro e interpenetração dos “dois Brasis” que
ameaçavam se distanciar irremediavelmente. As grandes cidades do Sul seriam
enfim o lugar onde se gestaria a cultural nacional de há muito perseguida
(ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2011, p.172).
Foi o Sudeste a região destinada a
amalgamar um país cuja estrela guia era, justamente, o fato de ter sido
amalgamado por diferentes culturas no processo de colonização. Luiz Gonzaga
utilizou-se, pois, de todo o arcabouço propagandístico do moderno Sudeste para
fazer da tradição nordestina mais tradicional do que nunca, já que o Brasil e,
sobretudo, os nordestinos de todas as classes sociais passavam a se perceber
tanto como tradição, quanto como parte da nação. McCann afirma que, embora boa
parte do público de Luiz Gonzaga não o associasse à lógica mercadológica, o
próprio artista nunca negou a sua vinculação
com as empresas
que buscavam comercializar os seus produtos, utilizando-se, para tal, da
carreira do músico.
Foi, sem dúvida, a utilização de
recursos modernos que fez do baião uma sonoridade característica do Nordeste,
um verdadeiro guardião da cultura da região. Sobre Gonzaga, Caetano Veloso
assim se expressa:
A
formação de Luiz Gonzaga é pop, uma
solução que ele, emigrante, morando no Rio, tentando a vida, descobriu, ali na
Rádio Nacional e gravadoras. Ele inventou algo que funcionou. É algo pop, como os Beatles, assim. Luiz
Gonzaga para mim, é um grande artista pop
(VELOSO, 1988 apud DREYFUS, 2007, p.254).
Aquilo que favorecia a popularidade de
Luiz Gonzaga era, além do respaldo da própria história dos movimentos internos
da população nacional, o sentimentalismo expresso em suas canções. É no apelo
saudosista que esse sentimentalismo apareceu fortemente marcado em sua obra.
Albuquerque Jr. aponta que Gonzaga fez do Nordeste um espaço de saudade.
O nordestino descrito na obra de Luiz
Gonzaga é aquele que não se adapta às mudanças da vida moderna urbana. Ele
próprio nos transmite essa sensação quando a sua indumentária nos remete,
sobretudo, aos cangaceiros. A partir de 1947 e inspirado no artista gaúcho
Pedro Raimundo – que se apresentava com trajes típicos –, Luiz Gonzaga passou a
compor seu personagem se apresentando, primeiramente, com um chapéu que lembrasse
Lampião, mas, aos poucos, usaria o figurino completo do cangaceiro, cuja figura
fez com que ele transmitisse a imagem de nordestino inadaptado e, portanto,
eternamente saudoso.
O nordestino de Gonzaga é aquele que,
apesar de não morar mais no Nordeste, rejeita qualquer referencial cultural
novo. Na verdade, o que há é um retrato do nordestino que precisava se fechar
para o diferente, sobretudo se esse diferente fosse justamente a região que
representava a motivo pelo qual o Nordeste vinha perdendo o seu espaço
político-econômico. Nesse sentido, o nordestino é, “antes de tudo, um forte”.
Só que aqui esse “forte” traz o sentido de fortaleza, isto é, ele é a
personificação de uma construção fortificada de dificílima invasão, isolada,
impenetrável. No Ceará não tem disso não é
uma canção, encontrada no LP 50 anos de
chão (1988) que exemplifica bem tal visão:
[...]
Nem que eu fique
aqui dez anos Eu não me acostumo não
Tudo aqui é
diferente Dos costumes do sertão
Num se pode comprar nada
Sem topar com
tubarão Vou vortá pra minha terra No primeiro caminhão Vocês vão me adescurpar
Mas arrepito essa expressão:
No Ceará não tem disso
não,
Não tem disso não,
não tem disso não Não, não, não,
No Ceará não tem
disso não
Desse modo, embora Gonzaga propagasse
essa figura quase que monolítica do nordestino, ele próprio não trazia tais
referenciais no início de sua carreira. Apesar de Dreyfus tomar um
direcionamento que chega a nos fazer crer que Gonzaga sempre teve dentro de si
um nordestino autêntico, à espera de um espaço midiático para que pudesse
desabrochar, não é isso que o início de sua carreira nos faz crer. Depois de
passar nove anos servindo ao exército e tendo morado em diversos lugares do
país, Luiz Gonzaga chegou até mesmo a perder boa parte do seu sotaque – como
indica Dreyfus. Ainda de acordo com Dreyfus, foi somente quando assumiu o papel
do cantador, capaz de transmitir as dores, os horrores e as alegrias do
nordestino, que o seu sotaque retornou. Gonzaga, no entanto, terminou trazendo
para si próprio a imagem do Nordeste:
Ele
próprio é a fonte, a origem de suas criações. O sertão é ele. A paisagem
pernambucana...tempos perdidos nas pequenas cidades revivem nas suas canções,
para cantar e sofrer quando ele coloca seus dedos na sanfona (CASCUDO, 1981
apud McCANN, 2004, p.99, tradução nossa).
A popularidade de Luiz Gonzaga ajudou
na consolidação dessa imagem do Nordeste rural e árido. Tal imagem se tornou
tão forte que, na década de 1960, ainda podemos senti-la, quando o
representante do mundo rural João do Vale, no show do teatro Opinião, cantou Carcará, ao lado de Nara Leão e Zé Keti.
Gonzaga tornou-se, portanto, no final da década de 1940 e início da de 1950, um
ícone nordestino sem o qual fica quase impossível analisar as produções
musicais advindas dessa região – sobretudo se essas produções são praticamente
contemporâneas às dele, como o são as canções de Jackson.
A trajetória pessoal de Jackson do
Pandeiro, entretanto, diferencia-se da de Luiz Gonzaga. Comecemos por este
último. Em 1912, Luiz Gonzaga do Nascimento nasceu em uma família pobre do
sertão de Pernambuco, politicamente vinculada ao poderoso clã dos Alencar. Essa
relação de dependência refletiu em seu próprio engajamento político que, de
maneira geral, tendia mais para um assistencialismo mantenedor das estruturas
sociais existentes do que para uma ruptura substancial das práticas
político-sociais. Serviu ao Exército brasileiro entre 1930 e 1939, em plena
Revolução de 30, o que lhe rendeu certo caráter autoritário que viria a
dificultar muitas de suas relações pessoais. Em 1939, Gonzaga se encontrava no
Rio de Janeiro, já que fora para lá que o exército lhe enviara, a fim de que
ele pegasse um navio de volta ao sertão pernambucano. Apesar de a música ter
sido algo constante em sua infância e juventude, já que o pai, Januário, era
sanfoneiro, sua carreira musical no Rio de Janeiro começou quase que por acaso.
Aceitando a sugestão de um soldado, ele começou a tocar em vários bares do
Bairro do Mangue e, aos poucos, foi se assentando na capital. Após o sucesso da
música Asa Branca, lançada em 1947 e
composta em parceria com Humberto Teixeira, Luiz Gonzaga transformou-se na
referência da música nordestina, cujas características já dissecamos.
José Gomes Filho, mais conhecido como
Jackson do Pandeiro, nasceu em 1919, no engenho denominado Tanques, na cidade
de Alagoa Grande, região do brejo paraibano. Mudou-se aos 11 aos para Campina
Grande. Por causa da morte do pai, Jackson teve de trabalhar como ajudante de
padeiro e até mesmo limpador de fossas. Assim, sua vivência difere da de Luiz
Gonzaga pelo caráter urbano das suas experiências, já na adolescência. Entre 1936 e 1937, Jackson começava a
frequentar a zona de baixo meretrício, a se relacionar com os músicos que circulavam
por tal ambiente e a afinar o seu ouvido musical. Se com dezoito anos Luiz
Gonzaga estava começando a servir ao Exército, Jackson do Pandeiro já era
figura garantida nos cabarés campinenses. Não que Gonzaga não tivesse tido uma
vasta experiência com as chamadas “mulheres da vida” e sido, assim como
Jackson, namorador. No entanto
[...] a maioria das namoradas ficou anônima, e até esquecida. Seja
porque a memória do sanfoneiro falhou no assunto, seja, o que parece mais
provável, por motivos morais. Luiz Gonzaga sempre fez questão de preservar uma
imagem de homem de bem, abstendo-se habilmente em tudo o que dizia respeito à
sua vida amorosa, ou melhor, contando apenas o que o valorizava. E o tremendo
namorador que foi a vida inteira não encaixava bem com a sua idéia de
moralidade (DREYFUS, 2007, p.47).
Jackson chegou a casar em 1938, com
Maria da Penha, cuja mãe era prostituta. Entretanto, o casamento – fruto de uma
pressão social, já que ele havia tido relações com uma moça menor de idade –
teve vida curta. De qualquer modo, o seu primeiro relacionamento duradouro foi
com uma artista, Almira Castilho, enquanto que Gonzaga nunca pretendeu se
relacionar seriamente com alguém do seu meio, onde a liberdade era algo mais
apreciado. O fato de Jackson ter ficado órfão de pai muito cedo, fazendo
com que ele exercesse a função de patriarca da família, talvez tenha
contribuído para que passasse a ter certa autonomia no que diz respeito às suas
relações familiares e, portanto, às suas escolhas matrimoniais.
A formação musical de Jackson foi
diversificada, assim como veio a ser a de Gonzaga quando ele se estabeleceu no
Exército. O rádio propiciou, em larga medida, essa diversidade sonora a que
ambos foram expostos. Gonzaga, quando iniciou a sua carreira na capital
nacional, tocava polcas, tangos e sambas, já que executava os ritmos que o
público solicitava. Foi apenas quando um grupo de cearenses – que lhe escutava
em um bar – pediu-lhe para que tocasse algum som do Nordeste, que o artista começou
a sua empreitada em defesa da região. Se Gonzaga, a princípio, gravou esses
diferentes ritmos, não foram essas as gravações que o consagraram.
Jackson, ao contrário, ficou conhecido
justamente por ser o Rei do ritmo. Ele demonstrou suas diferentes referências
musicais através da sua versatilidade rítmica, ao menos no que se refere ao
período estudado. Essa diferença é perceptível não só por causa dessa
versatilidade, como também pelo modo como se utilizou dessa sua capacidade
rítmica. Dessa maneira, esse artista não somente gravou vários sambas, como
conseguiu uma hibridação rítmica entre o samba e seus derivados – como a bossa
nova – e os ritmos ditos nordestinos. Luiz Gonzaga atestara essa capacidade de
Jackson e considerava-a problemática, na medida em que o primeiro “[...] não se
furtava a ironizar sobre a dose de samba que o pandeirista colocou,
conscientemente, nos ritmos nordestinos [...]” (DREYFUS, 2007, p.227). Jackson,
apesar de ter nos ritmos tradicionalmente nordestinos a referência básica da sua
formação musical, dialogou bastante com a cultura carioca, seja atendendo às
exigências nacionalistas hegemônicas seja porque essas exigências já não eram
tão destoantes das suas próprias.
Apesar da existência da força da
hibridação musical jacksoniana, não se deve desconsiderar a influência de
Gonzaga em seu repertório. Outros artistas nordestinos importantes também já
haviam feito sucesso nacionalmente, a exemplo dos Turunas da Mauriceia e da
dupla Jararaca e Ratinho. Os primeiros surgiram na década de 1920 e
influenciaram até mesmo os músicos do Bando Tangarás, composto por Almirante,
Noel Rosa e João de Barro, “mas logo depois o bando subiria o morro, em busca
dos batuques da Mangueira” (NAPOLITANO, 2007, p.17). Diferente dos Turunas, a
dupla iniciada em 1923, entre rompimentos e acertos, teve vida longa. Ela
terminou, definitivamente, com a morte de Jararaca em 1977. Essa dupla também
foi bastante relevante para a divulgação das músicas nordestinas, tanto o é
que, em entrevista concedida a Grande Othelo, no programa da TVE denominado Othelo e
os cantores, Jackson concorda com o entrevistador quando ele sugere a
importância da dupla para a música nordestina. No entanto, foi Gonzaga que se
consagrou como a maior referência da música nordestina e, portanto, foi o baião
que abriu as portas para muitos artistas nordestinos na cena nacional.
O sucesso de Luiz Gonzaga, no final da
década de 1940 e início da de 1950, deu passagem ao de Jackson do Pandeiro em
1953, quando ele gravou Sebastiana.
Apesar de o Rei do Baião já ter feito uma sólida carreira, na segunda metade da
década de 1950, ele entrou na fase do ostracismo. Dreyfus aponta, no entanto,
que tal ostracismo não ocorreu em “suas bases”, o Nordeste. Ainda durante essa
fase, Gonzaga gravou a canção de João do Vale e Sebastião Rodrigues, Pronde tu vai, baião? (1963), em resposta a tal momento de sua
carreira:
Pronde tu vai, baião? Eu vou sair por aí...
Mas por que baião?
Ninguém me quer mais aqui
Sou o dono do cavalo De garupa monto não
Eu vou pro meu pé de serra Levando o meu
matulão
Lá nos forró sou o tal Eu sou o rei do sertão
Nos clubes e nas boates Não me deixam mais
entrar
É só twist,
rock, bolero e chá-chá-chá Se eu
estou sabendo disso
É bom
me retirar
(GONZAGA, 1963 apud SANTOS, 2004, p.70-71)
Na segunda metade da década de 1950, o
baião teve que concorrer com o samba carioca, com a bossa nova e com os ritmos
internacionais como o jazz, o bolero,
o mambo, entre outros. Essa concorrência contribuiu, naquele momento, para a
marginalização de Luiz Gonzaga, que pode ser atribuída, segundo Albuquerque
Jr., ao fato de a música de Gonzaga
[...] ter se identificado como uma música regional, como expressão de
uma região que era vista como um espaço atrasado, fora de moda, do país; região
marginalizada pela própria forma como se desenvolveu a economia do país e como
foi gestada discursivamente (1999, p.159)
Dessa forma, a ideia de progresso tão
difundida pelo desenvolvimentismo nacionalista de Juscelino Kubistchek não
coadunava com as composições musicais que descreviam um Nordeste avesso à
modernização que, desde a década de 1930, já vinha sendo moldada:
Num
período relativamente curto de cinquenta anos, de 1930 até o início dos anos
80, e, mais aceleradamente, nos trinta anos que vão de 1950 ao final da década
de 1970, tínhamos sido capazes de construir uma economia moderna, incorporando
os padrões de produção e de consumo próprios dos países desenvolvidos (MELLO;
NOVAIS, 2010, p.562)
Se a tradição propagada pelo estilo
gonzaguiano foi a grande responsável pela ascensão musical de Gonzaga, foi
justamente ela que, posteriormente, relegou-lhe um menor espaço na indústria
fonográfica. O baião passava, portanto, a figurar entre os ritmos arcaicos da
música brasileira.
O que justificaria então o sucesso de
Jackson do Pandeiro, considerado – junto com Luiz Gonzaga – um dos artistas que
figuram no panteão da música brasileira e nordestina, na segunda metade da
década de 1950? Partimos do pressuposto de que a música de Jackson descortinou
outro Nordeste – o brejeiro, o litorâneo – tanto nas letras quanto no ritmo.
Esse Nordeste foi justamente aquele que, nas disputas regionais, ecoou menos
fortemente no discurso nacional e para o qual não se destinaram projetos
políticos nacionais, como ocorrera com o sertão. Isso contribuiu para que, em
sua obra, Jackson não tomasse para si o papel de porta-voz dessa região, ao menos
de forma tão veemente. A questão regional não tinha um peso tão forte para
Jackson, até porque, como ele não era o representante máximo desse discurso no
âmbito musical – como o era Gonzaga –, não preservar plenamente tal perspectiva
em suas escolhas musicais não significava uma ruptura, mas uma marca de
singularidade frente ao seu concorrente.
Acreditamos que a inexistência de uma
discussão nacional mais forte – no que se refere aos problemas dessa região
brejeira e litorânea – não foi o único fator que possibilitou Jackson de,
musicalmente, a se expressar de um modo diferente do de Gonzaga. A sua
trajetória de vida o fez um sujeito menos atrelado às amarras sociais,
permitindo-lhe desenvolver a sua versatilidade musical e trazer para a sua obra
um caráter híbrido que, como canta Lenine, fez “o samba embolar” e o “coco
sambar” (1999). É claro que tal hibridação foi também possível porque o samba
já havia garantido um público nacional cativo.
Apesar de o diálogo que a obra de
Jackson estabeleceu com o samba ter sido para nós a porta de entrada, para que
percebêssemos as conjugações culturais realizadas pelo artista, consideramos importante fazer desse processo
hibridatório apenas um subitem do segundo eixo temático: Incursões
culturais diversas, porque as canções nos levaram para outras reflexões que
reforçam o que aqui pretendemos defender: que, embora a identidade regional
tenha sido a leitura mais frequente que se estabeleceu acerca do artista, a
obra jacksoniana demonstra uma constante relação não só com aquilo que
musicalmente se passou a considerar nacional, mas também com os traços de
modernidade cada vez mais marcantes no Brasil da época. Como exemplo disso,
apontamos algumas canções que se centram em uma temática extremamente vinculada
às discussões modernas que se travavam na época, sobretudo, nos centros
urbanos: as modificações do comportamento feminino.
Contudo não podemos deixar de perceber
que a incursão que Jackson realizou no universo do samba fez dele um sujeito
mais cosmopolita, se comparado com Luiz Gonzaga. “Carioquizando-se”, Jackson se
nacionalizou. A questão nacional era fundamental para a sua consagração e, para
isso, ele seguiu um duplo caminho. Se Mário de Andrade já havia considerado o
coco como algo que fazia parte da autêntica música popular brasileira, ele não
havia “massificado” tal interpretação. Então, o primeiro caminho de Jackson
nessa empreitada era a tentativa de nacionalizar o coco no imaginário
brasileiro, como analisaremos no segundo tópico do primeiro eixo: As delimitações do híbrido. A segunda
maneira que ele encontrou para essa nacionalização foi “dançar conforme a
música” e a trilha sonora dessa “dança” era o samba. Mostraremos, portanto, em
um dos itens do capítulo quatro, que foi o samba o sujeito utilizado,
inclusive, para dialogar com a cultura importada.
Antes de dissecar a aproximação de
Jackson com as tendências nacionais, procuramos apresentar o caminho por ele
trilhado para delimitar o seu espaço enquanto nordestino. A sua identidade
nordestina estava estritamente relacionada à de Luiz Gonzaga. É em virtude
dessa aproximação que ele estrelou o filme Cala
a boca, Etelvina, em 1959, cantando nada menos do que a música Baião. Como ele mesmo afirmara: “„Quando
eu vi Luiz Gonzaga cantando
„A moda da mula preta‟, pensei: „Ué, a minha mãe cantava
coco, que é mais pra frente, então eu vou cantar coco também[...]‟” (PANDEIRO,
1972 apud MOURA;VICENTE, 2001, p.166). Mas não foi somente no “cantar mais pra
frente” que ele se diferenciou de Gonzaga. A maneira como Jackson alinhavou a
sua identidade nordestina não foi importante unicamente para diferenciá-lo do
Rei do Baião, mas também para fazer da sua obra “a síntese de traços
compatíveis e a coexistência ou justaposição de elementos considerados
incompatíveis ou conceitualmente ilegítimos” (CANEVACCI, 1996, p.22).
* Dissertação apresentada ao Programa de Pósgraduação em História do Centro de Ciências Humanas Letras e Artes da Universidade Federal da Paraíba – UFPB, em cumprimentos as exigências para obtenção do título de Mestre em História, Área de Concentração em História e Cultura Histórica.
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