RESUMO
Esta pesquisa apresenta uma análise acerca de uma parte da obra de Jackson do Pandeiro, situada entre os anos de 1953 e 1967. Tal análise busca apontar essa obra como um exemplo importante do hibridismo cultural existente na música popular brasileira. Para compreender melhor tal hibridação, perpassa a nossa análise a formação da identidade nacional e da nordestina, que foram sendo construídas, sobretudo, a partir da década de 1920. Compreendemos esse período da obra jacksoniana como uma contribuição para o redimensionamento das ideias de nacionalidade brasileira e de “nordestinidade”, para que possamos perceber como essas formulações de identidade são, antes, parte de um processo histórico, e não, um dado congelado no tempo e em espaços imóveis. Nesse sentido, este estudo corresponde à linha de pesquisa de História Regional, visto que nos auxilia a compreender a construção de uma dada região, o Nordeste brasileiro, a partir da sua articulação com os agentes e os espaços nacionais e globais. Palavras-chave: Jackson do Pandeiro. Hibridismo. Música popular brasileira. Nacionalismo. Nordeste.
1.2 A CONSTRUÇÃO DA
IDENTIDADE MUSICAL NACIONAL
Ao mesmo tempo em que o modernista
Mário de Andrade refletia sobre a música nacional e, consequentemente, sobre a
música popular produzida no Brasil, a indústria fonográfica brasileira começava
a trilhar a sua trajetória na história do Brasil.
Data de 1902 o primeiro disco gravado no país – pelo
compositor e cantor Xisto Bahia –
e em 07 de setembro de 1922, foi
realizada, na comemoração do centenário da independência, a primeira
transmissão radiofônica. Na ocasião, foi transmitido o discurso do então
presidente da República, Epitácio Pessoa, assim como algumas óperas. Esses acontecimentos
modificaram o sistema de comunicação no Brasil, inserindo-o na lógica da
modernização ocidental. Assim, a implantação do rádio no país não estava
distante das ideias de modernização, tão em voga no Brasil na década de 1920,
encontradas, inclusive, na perspectiva de Andrade.
Apesar de Mário de Andrade ter
percebido as Regiões Nordeste e Norte como as mais frutíferas, do ponto de
vista da música popular brasileira – por estarem diretamente associadas ao
“mundo rural” – e como a maior fonte de brasilidade, e de os modernistas terem
influenciado diversos intelectuais na década de 1930, que se encontravam para
além da Região do Sudeste, foi nessa região que primeiro se instalou todo o
aparato fonográfico brasileiro, como também o mais significativo meio de
comunicação do início do século XX, o rádio. Isso está associado ao fato de que
todo o processo de modernização brasileira ocorrido nesse século foi
extremamente concentrado nessa região que, ressalte-se, já vinha concentrando
os lucros da riqueza nacional desde o século XVIII com a descoberta das minas.
Com a intensificação do processo de modernização do país, na década de 1920,
houve um aumento no processo migratório. Assim, além da concentração da riqueza
e do domínio político nacional, o Sudeste passava a absorver, com a crescente
urbanização e industrialização, um grande contingente populacional.
Do ponto de vista da música popular,
foram as manifestações populares urbanas da capital nacional que tiveram mais
acesso às novas tecnologias que ajudavam a difundir determinadas práticas
culturais. Na música popular urbana, já na década de 1920, sobretudo na década
de 1930, o gênero do samba passava a ser o seu representante máximo a ponto de
tornar-se, em 1930, um elemento de brasilidade. Assim, “dada à influência
cultural e econômica da capital
do país, o samba deixou
de ser apenas carioca, para se tornar „brasileiro‟, „ nossa parte na sinfonia musical‟”
(NAPOLITANO, 2007, p. 31). Por isso o processo que levou o samba a angariar o status de nacionalidade, na década de
1930, não pode aparecer dissociado das
contingências históricas que fizeram com que os sambistas tivessem – do ponto
de vista geográfico – um acesso relativamente fácil às novas tecnologias
divulgadoras das suas músicas.
Não queremos negar os embates sociais
que ocorreram nesse processo, mas apenas deixar claro que o gesto que
possibilitou a ascensão de setores populares do Rio de Janeiro advém de uma
série de acontecimentos importantes na configuração histórica brasileira. Em
nossa investigação, é importante atentar para isso, já que a música popular
produzida no Nordeste brasileiro – aqui analisada a partir das obras de Jackson
do Pandeiro – estabeleceu um importante diálogo com as produções nacionais.
Esse diálogo se deu, portanto, pelo fato de que, a partir da década de 1930, as
músicas urbanas passaram a ser veiculadas pelo rádio, tornando-as assim, “um
fato social cada vez mais relevante” (SANDRONI, 2004, p.27).
Mais do que as gravações realizadas no
gramofone, instrumento a que a música popular urbana tinha acesso, o rádio foi
um elemento de transformações da realidade brasileira. Na década de 1930, desenvolveu-se de modo mais
sólido. O governo Vargas foi perspicaz em perceber as contribuições que esse
meio de comunicação teria na aplicação dos preceitos nacionalistas. Assim,
sobretudo no Estado Novo, o rádio teve um importante papel na política
getulista, não só na divulgação da música urbana como também na integração da
nação. Capelato afirma que “muito se insistia no fato de que o rádio devia estar
voltado para o homem do interior, contribuindo para o seu desenvolvimento e
integração na coletividade nacional” (1999, p.177). Então, apesar de as
políticas para o rádio, no Estado Novo, não terem exercido um controle tão
forte, se comparado ao fascismo alemão e ao italiano, não se pode menosprezar a
importância de sua propaganda política.
Nesse sentido, verifica-se que o rádio
fez com que a música popular urbana – representada, sobretudo, pelo gênero do
samba produzido no distrito federal – invadisse o cotidiano da população
nacional e colaborasse para que houvesse uma mudança efetiva na concepção da
música popular brasileira da época.
Napolitano aponta que, a partir de 1930, “o samba deixou de ser apenas um
evento da cultura popular afro-brasileira ou um gênero musical entre outros e
passou a significar a própria idéia de brasilidade” (2007, p.23). O governo de
Vargas, especialmente no Estado Novo, teve uma importância salutar nesse
processo, na medida em que incorporou “uma maneira de pensar o gênero samba como música brasileira que grassava entre parte considerável
dos intelectuais, jornalistas e mesmo sambistas comunitários desde o início da
década” (NAPOLITANO, 2007, p.40).
Do ponto de vista musical, o rádio
alterava a maneira de se apreciar a música, porquanto modificava a forma de
escuta, já que abarcava um maior número de ouvintes, fazendo com que as
pessoas, cada vez mais individualizadas de acordo com os preceitos modernos,
ficassem coletivamente sintonizadas. Sevcenko descreve assim esse processo dialético
trazido pelos meios de comunicação de massa:
[...] é fenômeno [...] notável como essas pessoas que não conseguem ou
não toleram estabelecer comunicação entre si, se entregam uma a uma
embevecidas, se o fluxo da comunicação vier, por exemplo, por meio do rádio.
Partindo cada um do seu isolamento real, se encontrarem todos nesse território
etéreo, nessa dimensão eletromagnética, nessa voz sem corpo que sussurra suave,
vinda de um aparato elétrico de um recanto mais íntimo do lar, repousando sobre
uma toalhinha de renda caprichosamente bordada e ecoado no fundo da alma dos
ouvintes, milhares, milhões, por toda parte e todos anônimos (2010, p.
584-585).
Fruto das descobertas científicas do
início do século XX, o rádio acentuou, na “sociedade dos indivíduos”, a
preocupação com aquilo que poderia agradar um público cada vez maior. Do ponto de vista musical, ao mesmo tempo em que
o número de ouvintes aumentava, crescia também o número de produtores. Assim,
os novos elementos tecnológicos modificam tanto as formas de apreciação quanto
as de produção.
No Brasil, a década de 1930 foi marcada
justamente por uma mudança na articulação da produção musical popular urbana,
com a massa de ouvintes. Com o rádio, antes de buscar apenas o aval das elites,
essas produções se direcionavam, sobretudo, para os anônimos ouvidos, que
possibilitavam um lucro cada vez maior e mais fácil para o rádio. Isso não quer
dizer que os embates e acordos realizados com as elites não estivessem mais
presentes na época de Noel Rosa. Até porque “ainda não era possível reconhecer
uma indústria cultural, racionalizada e padronizada, naquele momento da
história brasileira” (NAPOLITANO, 2007, p. 26).
Entretanto os sambistas vinham
conseguindo, desde a década de 1920, sobretudo na década de 1930, adequar-se às
exigências da indústria fonográfica. Essa relação que os sambistas passaram a
estabelecer com essa massa de ouvintes está estritamente relacionada à
legislação brasileira que, em 1932, autorizou, oficialmente, a veiculação de
anúncios no rádio, seguindo o modelo estadunidense. O rádio deixou de ser
utilizado apenas para fins educativos e passou a entrar na lógica comercial
ainda no início do governo nacionalista de Vargas. O fato é que isso deu aos
sambistas uma relativa liberdade frente a uma elite que se dividia entre
aceitar um samba – desde que higienizado e disciplinado – ou não, já que, “para
o bem e para o mal, o rádio estava mais para uma cacofonia musical, através do
lucro fácil de que para um coro domesticado” (NAPOLITANO, 2007, p.45).
A adequação dos sambistas às exigências
comerciais ocorreu de tal forma que modificou a própria estrutura melódica das
suas músicas. Tatit aponta que
o pacto dos representantes da casa de Tia Ciata com os representantes
da Casa Edison, e de outras gravadoras que chegariam ao Rio de Janeiro logo em
seguida, nunca mais se desfez se considerarmos que o estilo de canção praticado
naqueles fundos foi progredindo e se adaptando cada vez mais às condições
básicas de um bom registro sonoro para o mercado. Nesse sentido, era notória a
tendência de transformação da mentalidade do improviso para a concepção do
produto acabado e destinado à veiculação comercial (2004, p.151-152).
Ainda segundo Tatit, o improviso
musical brasileiro – advento de uma tradição oral – foi saindo de cena, e a
produção popular urbana foi transferindo o seu caráter de improvisação para
outra tradição da música popular brasileira, cuja principal característica é a
composição das letras musicais com uma linguagem coloquial. O discurso
coloquial existente na música popular,
uma vez vestido com o traje da tradição, contribuiu para que essa peculiaridade
musical popular brasileira se desenvolvesse mais, já que propiciou o
aprimoramento de
[...]
uma técnica que rapidamente traduzisse idéias “faladas” em soluções “cantadas”.
Isto significava, na prática, um certo desprezo pelas coerções musicais do
compasso e pela métrica do poema escrito. O número de sílabas dos seus versos
seus pontos de acento podiam se alterar indefinidamente, desde que em função
das necessidades da expressão coloquial (TATIT, 2004, p. 152-153).
Na indústria fonográfica, não havia
espaço para o improviso, tampouco para os outros elementos que estavam
atrelados à constituição do samba. Antes de inserir-se no mercado, o samba
significava não apenas um gênero musical, mas toda uma configuração social da
qual ele fazia parte. A dança, por exemplo, é um elemento essencial no ritmo
sincopado do samba que, como se sabe, consiste na marcação do tempo fraco, que
o prolonga para o tempo forte. Sodré aponta que,
[...]
no samba, atua de modo especial a síncopa, incitando o ouvinte a preencher o
tempo vazio com a marcação corporal – palmas, meneios, balanços, dança. [...]
Sua força magnética, compulsiva mesmo, vem do impulso (provocado pelo vazio
rítmico) de se completar a ausência do tempo com a dinâmica do movimento do
espaço (1998, p.11).
Como o formato da indústria fonográfica
e do rádio não permite a integração desse elemento corporal, os sambistas se
utilizaram de uma estratégia sonora que nos remete, imediatamente, à imagem
corporal. Eles passaram a usar tanto a marcação rítmica quanto a letra para
trazer esse elemento, impossibilitado de estar presente. Podemos perceber um
exemplo importante dessa solução musical na canção de Ary Barroso, Morena boca de ouro, cujas subidas e
descidas, assim como a letra, que diz “[...] Roda morena/ vai não vai/ginga
morena/cai não cai [...]” (BARROSO, 1941 apud TATIT, 2004, p.156), remetem-nos
à imagem da morena sambando. Algo semelhante ocorre com um samba de Jackson,
composto por ele e por Sebastião Martins e Álvaro Castilho, gravado em 1964, no
LP Coisas nossas e intitulado Meu berimbau:
[...]
Ai morena
Arrasta a sandália
aí Que o samba tá bom E não pode parar Cuidado pra não cair
Que bonito o samba Que bom resultado Do meu berimbau E
do teu rebolado
A letra novamente nos remete à morena
que dança o samba, demonstrando que, com sua dança, ela é parte constituinte do
samba. Do ponto de vista rítmico, quando a letra alerta a morena “pra não
cair”, a música faz uma parada, como se estivesse ajudando a dançarina a
equilibrar-se. Estabelecendo uma relação contígua com o corpo da morena, o
intérprete estica as sílabas “la” e “do” da palavra rebolado e, com essa
sonoridade prolongada, remete-nos, imediatamente, ao movimento circular do
rebolado.
Adorno criticou essa relação da música
popular com o corpo ao analisar o jazz.
Ele apontava que a música estimuladora da dança parecia impedir um tipo de
escuta reflexiva12 que, segundo ele, só poderia ocorrer em um estado
de recolhimento quase ascético. Assim, a própria capacidade de escuta do
receptor seria atrofiada, na medida em que o modo como a sua apreciação era
feita não estava associado ao recolhimento. Tentando fechar o seu raciocínio
dialético, Adorno verificou a existência de um potencial de negação13
no jazz, que residiria na liberação
sexual expressa na dança. Entretanto essa energia despendida na dança aplacava
as tensões sociais e, consequentemente, desviava uma energia que poderia ser
direcionada para a transformação do homem.
Sevcenko refere que a presença do
corpo, na música do século XX, era necessária porquanto os ritmos frenéticos,
na modernidade, também se impunham como presença. O autor esclarece que
há
um consenso entre vários pesquisadores quanto ao fato de que foi a atmosfera
tensa, gerada pela Primeira Guerra Mundial que deu o impulso decisivo para a
dança baseada em ritmos frenéticos tornar-se uma das atividades simbólicas
preponderantes da vida social (SEVCENKO, 2010, p.594).
Nesse sentido, de fato, a dança aparece
no início do século XX como algo que vem atenuar o clima de tensão, o que não
implica, necessariamente, considerá-la como um movimento apaziguador, mas como
uma forma de se manifestar diante de determinada compreensão
de mundo. Sodré, por exemplo, enuncia que essa presença do corpo é fundamental
na tradição do negro no Brasil:
Nos quilombos, nos engenhos, nas plantações, nas cidades, havia samba
onde estava o negro, como uma inequívoca demonstração de resistência ao
imperativo social (escravagista) de redução do corpo negro a uma máquina
produtiva e como uma afirmação de continuidade do universo cultural africano
(1998, p.12).
Diferentemente das interpretações
adornianas, Sodré reflete a presença do corpo como um caráter mais transgressor
do que afirmativo. No Brasil, essa presença do corpo na música do negro marcou
toda a produção da música popular brasileira. Percebemos isso claramente ao
pensar em diversos gêneros populares brasileiros, já que eles podem significar
não só um determinado ritmo, mas também uma forma de dançar, como é o caso do
coco, do forró, do samba, entre outros.
Assim, apoiando-nos na forma como Sodré
traz essa questão, podemos compreender a dança para além da ideia de submissão.
Entendemos, portanto, que as danças que os ritmos “jacksonianos” sugerem são um
prolongamento da voz que se quer fazer presença e que expande a sua capacidade
vocálica através do canto (ZUMTHOR, 2005). Então, se o canto é a expansão da
voz, a dança também o é. O corpo se movimenta, compactuando harmonicamente com
essa voz que reivindica – parafraseando Benjamim (1994) – o direito de ser ouvida.
Todas as alterações sofridas pelo
samba, ao se adequar às exigências das novas tecnologias, não podem ser
compreendidas apenas como uma forma de apropriação socialmente verticalizada de
cima para baixo, porque as próprias posições da elite brasileira não eram
homogêneas. Nesse sentido é que vários intelectuais, como o próprio Mário de
Andrade, questionavam esse espaço que o samba ia alcançando, pelo fato de a
música popular ser apenas uma fonte inspiradora de nacionalidade, portanto, não
podia ser a própria nacionalidade. Referindo-se a Mário de Andrade e a Villa
Lobos, Napolitano compactua com nossa reflexão e afirma que, “para eles, a
música popular era fonte inspiradora de nacionalidade, desde que ancorada no
passado da cultura popular oral, material rico e bruto a ser lapidado pelo
mundo erudito” (2007, p.41). Tatit constata que
Mário
de Andrade e Villa Lobos concebiam uma espécie de paternalismo folclorista,
necessário, segundo os autores, para administrar o caos sonoro que então
assolava o país. [...] Essa nova dinâmica sonora, com luz própria, só pôde ser
parcialmente apreciada pela elite pensante, uma vez que não cabia confortavelmente em seus projetos de integração e orientação
estética que deveriam refletir a aliança do povo com o Estado numa espécie de
concerto para o progresso (2004, p.38-39).
Ressaltamos que, à medida que o samba
conquistava seu espaço, o discurso da higienização ia crescendo e, respaldado
pelo governo Vargas – sobretudo no Estado Novo – estimulou-se um novo tipo de
samba, o samba cívico. Assim, a censura em torno das músicas populares ocorreu
antes mesmo do DIP, “pois era uma demanda de boa parte das elites letradas”
(NAPOLITANO, 2007, p. 49). Em outubro 1933, a comissão de censura da
Confederação Brasileira de Radiodifusão vetou a música Lenço no pescoço, de Wilson Batista. O próprio Jackson, apesar de
não ter tido nenhuma música censurada, estava habituado a entregar “aos
produtores da Copacabana uma quantidade de letras além do previsto para a
gravação agendada” (MOURA; VICENTE, 2001, p. 249-250), a fim de não ter grandes
problemas com o Serviço da Censura de Diversões Públicas. Essa preocupação que
se encontrava em torno das produções populares relaciona-se não apenas à
herança histórica brasileira de um Estado autoritário, mas também, segundo
Wisnik, a uma tradição ocidental que remonta Platão. Assim,
o poder atribuído à música tem seu eixo numa ambivalência consistente
na concepção de que ela pode carrear as forças sociais para o centro político,
conferindo ao Estado, através de suas celebrações, um efeito de imantação sobre
o corpo social, ou então, ao contrário, pode expelir essas forças para fora do
controle do Estado. [...] a música aparece como um elemento
agregador/desagregador por excelência, podendo promover o enlace da totalidade
social (quando o nó é pedagogicamente bem dado) ou preparando a sua
dissolvência (quando não). (WISNIK, 2001, p.139).
Não podemos ver essa relação que o
Estado passou a estabelecer com o samba como algo unilateral. Os próprios
sambistas traçaram um caminho que perpassava a busca por uma ampla legitimação
social. Sobre esse aspecto, Napolitano assevera:
É preciso reconhecer que o nacionalismo na música popular,
principalmente a partir de uma parte do samba e do Carnaval, não era produto
apenas do controle e da instrumentalização do Estado Novo, materializado
através da ação do DIP (Departamento
de Imprensa e Propaganda, nome que o Departamento Nacional de Propaganda ganhou
a partir de meados de 1939). Também correspondia a uma estratégia de buscar reconhecimento do samba como paradigma
de música popular de “bom gosto”, símbolo e síntese da brasilidade musical,
desenvolvida tanto por jornalistas entusiastas do Carnaval e da música popular
como pelos próprios sambistas,
principalmente aqueles ligados às escolas (2007, p.38).
Essa legitimação do samba ocorreu à
proporção que ele foi adquirindo caráter nacional. Esse caráter, por sua vez,
foi consolidado com a sua exportação, que veio ajudar a construir a imagem de
uma nação do samba. Assim, em 1941, o samba chega às telas hollywoodianas, também, como forma de concretização da
“política da boa vizinhança”.
Apesar da exportação do samba na década
de 1940, em 1950, esse gênero passou a sofrer com a concorrência de outros
gêneros internacionais. Então, ao mesmo tempo em que houve uma facilitação da
entrada de produtos estrangeiros no país – sobretudo no governo de Juscelino
Kubstichek –, houve uma assimilação de aspectos da cultura dos Estados Unidos,
principalmente. Tatit refere que essa influência recaiu até mesmo na adoção de nomes
artísticos, como é o caso de Dick Farney e Jonny Alf. O próprio Jackson também
pode ser considerado como um resultado dessa influência, apesar de a palavra
Pandeiro trazer uma conotação mais nacional, o que demonstrava que o hibridismo
jacksoniano já estava presente em sua alcunha. Esse nome começou a ser gestado
na década de 1920, a partir do contato que ele teve com os filmes de faroeste.
Jackson – ainda José Gomes Filho – ao assistir àqueles filmes, imitava o ator
Jack Perrin, o que fez com que ganhasse o apelido de Zé Jack. Em Campina
Grande, foi eliminando o “Zé” e ganhando o “Pandeiro” e, em João Pessoa, foi
chamado de José Jackson. Em Recife, passou a ser conhecido como Jackson do
Pandeiro, atribuindo o acréscimo da terminação “son” ao nome Jack a Ernani
Séve, locutor-chefe da rádio Jornal do Commercio.
Houve, entretanto, uma reação a essa
entrada da música estrangeira no país. Os chamados por Napolitano de
“folcloristas urbanos” passaram a trajar o samba com uma aura de nacionalidade,
a fim de angariar os ouvidos ávidos pelas novidades do mercado. Tais
folcloristas tinham um espírito muito semelhante ao de Mário de Andrade, já que
também se baseavam na perspectiva da autenticidade nacional. No entanto, esses
“folcloristas” buscavam tanto em alguns sujeitos que produziam a música popular
quanto na música popular urbana os elementos que garantissem a autenticidade de
uma música nacional.
Isso significa que, apesar de as
manifestações urbanas não terem sido privilegiadas nas reflexões
marioandradinas, o processo de nacionalização do samba teve como base a ideia
de autenticidade nacional, tão cara ao “considerado patrono dos estudos
históricos brasileiros” (NAPOLITANO, 2005, p. 60). Dessa maneira, consolida-se
e naturaliza-se a existência do ritmo nacional, com os vários símbolos que tal
ritmo, no final da década de 1940 e na década de 1950, passa a engendrar, tais
como: a “era de ouro”, a “velha guarda” e a mitificação do músico Noel Rosa.
Assim, a partir de 1950, passou a
preponderar a ideia de que a música popular não estaria mais associada ao rural
e, sim, ao urbano. Ora, nessa década, já se podiam sentir os resultados de uma
política modernizadora, iniciada com Getúlio Vargas na década de 1930.
Portanto, na década de 1950, o urbano já parecia superar o rural, ao menos em
termos de importância ideológica. O urbano era símbolo de progresso, de
modernidade, enquanto que o rural representava o atraso. Do ponto de vista
musical, passou-se a associar o rural ao folclórico. Segundo Sandroni (2004),
em um congresso de folclore nos anos de 1950, Alvarenga já propunha tal
divisão.
Sandroni afirma ainda que, em 1960, a
música popular já se encontrava totalmente atrelada à música urbana, assim como
também a uma defesa do nacional e, por que não dizer, do “verdadeiro” nacional.
Essa separação entre o rural e o urbano terminou por afetar as classificações
realizadas em torno das produções musicais brasileiras, e o urbano foi
adentrando o conceito de popular, na medida em que a busca do nacional recaía
sobre o urbano. Do ponto de vista musical, o urbano, no Brasil da época,
associava-se à Região Sudeste, mais especificamente, o eixo Rio de Janeiro/São
Paulo. Portanto o nacional estava, necessariamente, articulado às produções
realizadas nesse eixo.
Esse processo de construção da
identidade nacional – iniciado na década de 1920 e consolidado, ao menos do
ponto de vista musical, na década de 1940, com a consagração do samba como
ritmo nacional – pode ser considerado como fruto de um movimento contra- hegemônico
da cultura popular, já que ele representava a voz das camadas populares
urbanas. Contudo, se considerarmos que o próprio processo de legitimação de uma
identidade nacional é um movimento histórico hegemônico ocorrido não só no
Brasil, mas também no mundo ocidental como um todo, o samba também se torna um
símbolo de hegemonia e representará a homogeneização de uma cultura musical, já
que o nacionalismo também o faz.
Não obstante a ideia de autenticidade
marioandradina ter, indiretamente, contribuído para a consolidação da música
popular carioca como música nacional, acreditamos que as reflexões de Mário de
Andrade também legitimaram a produção da música popular realizada no Nordeste
brasileiro. Isso ocorreu devido ao fato de que, como esse intelectual centrou
grande parte dos seus estudos nas regiões Norte e Nordeste, suas análises foram
fundamentais para que as expressões musicais nordestinas tivessem acesso à
mídia nacional, a partir da década de 1940. Nesse sentido, Napolitano afirma:
“No final dessa década, o Baião de Luiz Gonzaga se nacionalizou, via rádio,
consagrando definitivamente a música nordestina nos meios de comunicação e no
mercado do disco do „sul maravilha‟” (2005, p. 39).
A incursão do baião e de “outros
gêneros „regionais‟ (embolada, coco, moda de viola) também foi ganhando espaço
na rádio, tornando-se referência para além das suas regiões de origem”
(NAPOLITANO, 2005, p. 57). Foi nesse quadro que Jackson surgiu, talvez como uma
tentativa da gravadora Copacabana – concorrente da RCA de Luiz Gonzaga – de
encontrar algum artista que tivesse uma popularidade compatível com a de
Gonzaga, que abarcasse, sobretudo, o mercado nordestino.
Não há como negar que os gêneros
musicais nordestinos adquiriram um caráter nacional. Contudo, a música popular
dita nordestina não teve força para desbancar a concorrência das produções
efetuadas na Região Sudeste, principalmente a do samba que, a essa altura – na
década de 1950 – já havia conquistado esse status de ritmo nacional, porque,
apesar de a defesa do nacional “autêntico” pelos “folcloristas urbanos”
objetivar, principalmente, desbancar a música estrangeira, terminou por relegar
a um segundo plano a música popular advinda de outras regiões brasileiras.
Soma-se a isso o fato de que a música popular produzida no Nordeste conquistou
o seu espaço nacional a partir de uma perspectiva regional, fazendo com que
fosse compreendida apenas como parte das
manifestações nacionais.
O espaço regional-nacional obtido por essa música popular encontra-se atrelado à própria ideia de Região Nordeste, que suscita uma série de significados que devemos analisar, a fim de compreender melhor como e porque a música popular produzida no Nordeste brasileiro traz determinadas marcas simbólicas que auxiliam no processo de afirmação identitária dessa região.
* Dissertação apresentada ao Programa de Pósgraduação em História do Centro de Ciências Humanas Letras e Artes da Universidade Federal da Paraíba – UFPB, em cumprimentos as exigências para obtenção do título de Mestre em História, Área de Concentração em História e Cultura Histórica.
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