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quarta-feira, 27 de junho de 2018

NA LEVADA DO PANDEIRO: A MÚSICA DE JACKSON DO PANDEIRO ENTRE 1953 E 1967 - PARTE 03

Por Manuela Fonsêca Ramos*



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RESUMO 

Esta pesquisa apresenta uma análise acerca de uma parte da obra de Jackson do Pandeiro, situada entre os anos de 1953 e 1967. Tal análise busca apontar essa obra como um exemplo importante do hibridismo cultural existente na música popular brasileira. Para compreender melhor tal hibridação, perpassa a nossa análise a formação da identidade nacional e da nordestina, que foram sendo construídas, sobretudo, a partir da década de 1920. Compreendemos esse período da obra jacksoniana como uma contribuição para o redimensionamento das ideias de nacionalidade brasileira e de “nordestinidade”, para que possamos perceber como essas formulações de identidade são, antes, parte de um processo histórico, e não, um dado congelado no tempo e em espaços imóveis. Nesse sentido, este estudo corresponde à linha de pesquisa de História Regional, visto que nos auxilia a compreender a construção de uma dada região, o Nordeste brasileiro, a partir da sua articulação com os agentes e os espaços nacionais e globais. Palavras-chave: Jackson do Pandeiro. Hibridismo. Música popular brasileira. Nacionalismo. Nordeste.


1.2  A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE MUSICAL NACIONAL

Ao mesmo tempo em que o modernista Mário de Andrade refletia sobre a música nacional e, consequentemente, sobre a música popular produzida no Brasil, a indústria fonográfica brasileira começava a trilhar a sua trajetória na história do Brasil.

Data de 1902 o primeiro disco gravado no país – pelo compositor e cantor Xisto Bahia   e em 07 de setembro de 1922, foi realizada, na comemoração do centenário da independência, a primeira transmissão radiofônica. Na ocasião, foi transmitido o discurso do então presidente da República, Epitácio Pessoa, assim como algumas óperas. Esses acontecimentos modificaram o sistema de comunicação no Brasil, inserindo-o na lógica da modernização ocidental. Assim, a implantação do rádio no país não estava distante das ideias de modernização, tão em voga no Brasil na década de 1920, encontradas, inclusive, na perspectiva de Andrade.

Apesar de Mário de Andrade ter percebido as Regiões Nordeste e Norte como as mais frutíferas, do ponto de vista da música popular brasileira – por estarem diretamente associadas ao “mundo rural” – e como a maior fonte de brasilidade, e de os modernistas terem influenciado diversos intelectuais na década de 1930, que se encontravam para além da Região do Sudeste, foi nessa região que primeiro se instalou todo o aparato fonográfico brasileiro, como também o mais significativo meio de comunicação do início do século XX, o rádio. Isso está associado ao fato de que todo o processo de modernização brasileira ocorrido nesse século foi extremamente concentrado nessa região que, ressalte-se, já vinha concentrando os lucros da riqueza nacional desde o século XVIII com a descoberta das minas. Com a intensificação do processo de modernização do país, na década de 1920, houve um aumento no processo migratório. Assim, além da concentração da riqueza e do domínio político nacional, o Sudeste passava a absorver, com a crescente urbanização e industrialização, um grande contingente populacional.

Do ponto de vista da música popular, foram as manifestações populares urbanas da capital nacional que tiveram mais acesso às novas tecnologias que ajudavam a difundir determinadas práticas culturais. Na música popular urbana, já na década de 1920, sobretudo na década de 1930, o gênero do samba passava a ser o seu representante máximo a ponto de tornar-se, em 1930, um elemento de brasilidade. Assim, “dada à influência cultural e econômica da capital do país, o samba deixou de ser apenas carioca, para se tornar „brasileiro‟, „ nossa parte na sinfonia musical‟” (NAPOLITANO, 2007, p. 31). Por isso o processo que levou o samba a angariar o status de nacionalidade, na década de 1930, não  pode aparecer dissociado das contingências históricas que fizeram com que os sambistas tivessem – do ponto de vista geográfico – um acesso relativamente fácil às novas tecnologias divulgadoras das suas músicas.

Não queremos negar os embates sociais que ocorreram nesse processo, mas apenas deixar claro que o gesto que possibilitou a ascensão de setores populares do Rio de Janeiro advém de uma série de acontecimentos importantes na configuração histórica brasileira. Em nossa investigação, é importante atentar para isso, já que a música popular produzida no Nordeste brasileiro – aqui analisada a partir das obras de Jackson do Pandeiro – estabeleceu um importante diálogo com as produções nacionais. Esse diálogo se deu, portanto, pelo fato de que, a partir da década de 1930, as músicas urbanas passaram a ser veiculadas pelo rádio, tornando-as assim, “um fato social cada vez mais relevante” (SANDRONI, 2004, p.27).

Mais do que as gravações realizadas no gramofone, instrumento a que a música popular urbana tinha acesso, o rádio foi um elemento de transformações da realidade brasileira. Na década de 1930, desenvolveu-se de modo mais sólido. O governo Vargas foi perspicaz em perceber as contribuições que esse meio de comunicação teria na aplicação dos preceitos nacionalistas. Assim, sobretudo no Estado Novo, o rádio teve um importante papel na política getulista, não só na divulgação da música urbana como também na integração da nação. Capelato afirma que “muito se insistia no fato de que o rádio devia estar voltado para o homem do interior, contribuindo para o seu desenvolvimento e integração na coletividade nacional” (1999, p.177). Então, apesar de as políticas para o rádio, no Estado Novo, não terem exercido um controle tão forte, se comparado ao fascismo alemão e ao italiano, não se pode menosprezar a importância de sua propaganda política.

Nesse sentido, verifica-se que o rádio fez com que a música popular urbana – representada, sobretudo, pelo gênero do samba produzido no distrito federal – invadisse o cotidiano da população nacional e colaborasse para que houvesse uma mudança efetiva na concepção da música popular brasileira da época. Napolitano aponta que, a partir de 1930, “o samba deixou de ser apenas um evento da cultura popular afro-brasileira ou um gênero musical entre outros e passou a significar a própria idéia de brasilidade” (2007, p.23). O governo de Vargas, especialmente no Estado Novo, teve uma importância salutar nesse processo, na medida em que incorporou “uma maneira de pensar o gênero samba como música brasileira que grassava entre parte considerável dos intelectuais, jornalistas e mesmo sambistas comunitários desde o início da década” (NAPOLITANO, 2007, p.40).

Do ponto de vista musical, o rádio alterava a maneira de se apreciar a música, porquanto modificava a forma de escuta, já que abarcava um maior número de ouvintes, fazendo com que as pessoas, cada vez mais individualizadas de acordo com os preceitos modernos, ficassem coletivamente sintonizadas. Sevcenko descreve assim esse processo dialético trazido pelos meios de comunicação de massa:

[...] é fenômeno [...] notável como essas pessoas que não conseguem ou não toleram estabelecer comunicação entre si, se entregam uma a uma embevecidas, se o fluxo da comunicação vier, por exemplo, por meio do rádio. Partindo cada um do seu isolamento real, se encontrarem todos nesse território etéreo, nessa dimensão eletromagnética, nessa voz sem corpo que sussurra suave, vinda de um aparato elétrico de um recanto mais íntimo do lar, repousando sobre uma toalhinha de renda caprichosamente bordada e ecoado no fundo da alma dos ouvintes, milhares, milhões, por toda parte e todos anônimos (2010, p. 584-585).

Fruto das descobertas científicas do início do século XX, o rádio acentuou, na “sociedade dos indivíduos”, a preocupação com aquilo que poderia agradar um público cada vez maior. Do ponto de vista musical, ao mesmo tempo em que o número de ouvintes aumentava, crescia também o número de produtores. Assim, os novos elementos tecnológicos modificam tanto as formas de apreciação quanto as de produção.

No Brasil, a década de 1930 foi marcada justamente por uma mudança na articulação da produção musical popular urbana, com a massa de ouvintes. Com o rádio, antes de buscar apenas o aval das elites, essas produções se direcionavam, sobretudo, para os anônimos ouvidos, que possibilitavam um lucro cada vez maior e mais fácil para o rádio. Isso não quer dizer que os embates e acordos realizados com as elites não estivessem mais presentes na época de Noel Rosa. Até porque “ainda não era possível reconhecer uma indústria cultural, racionalizada e padronizada, naquele momento da história brasileira” (NAPOLITANO, 2007, p. 26).

Entretanto os sambistas vinham conseguindo, desde a década de 1920, sobretudo na década de 1930, adequar-se às exigências da indústria fonográfica. Essa relação que os sambistas passaram a estabelecer com essa massa de ouvintes está estritamente relacionada à legislação brasileira que, em 1932, autorizou, oficialmente, a veiculação de anúncios no rádio, seguindo o modelo estadunidense. O rádio deixou de ser utilizado apenas para fins educativos e passou a entrar na lógica comercial ainda no início do governo nacionalista de Vargas. O fato é que isso deu aos sambistas uma relativa liberdade frente a uma elite que se dividia entre aceitar um samba – desde que higienizado e disciplinado – ou não, já que, “para o bem e para o mal, o rádio estava mais para uma cacofonia musical, através do lucro fácil de que para um coro domesticado” (NAPOLITANO, 2007, p.45).

A adequação dos sambistas às exigências comerciais ocorreu de tal forma que modificou a própria estrutura melódica das suas músicas. Tatit aponta que

o pacto dos representantes da casa de Tia Ciata com os representantes da Casa Edison, e de outras gravadoras que chegariam ao Rio de Janeiro logo em seguida, nunca mais se desfez se considerarmos que o estilo de canção praticado naqueles fundos foi progredindo e se adaptando cada vez mais às condições básicas de um bom registro sonoro para o mercado. Nesse sentido, era notória a tendência de transformação da mentalidade do improviso para a concepção do produto acabado e destinado à veiculação comercial (2004, p.151-152).

Ainda segundo Tatit, o improviso musical brasileiro – advento de uma tradição oral – foi saindo de cena, e a produção popular urbana foi transferindo o seu caráter de improvisação para outra tradição da música popular brasileira, cuja principal característica é a composição das letras musicais com uma linguagem coloquial. O discurso coloquial existente na música popular, uma vez vestido com o traje da tradição, contribuiu para que essa peculiaridade musical popular brasileira se desenvolvesse mais, já que propiciou o aprimoramento de

[...] uma técnica que rapidamente traduzisse idéias “faladas” em soluções “cantadas”. Isto significava, na prática, um certo desprezo pelas coerções musicais do compasso e pela métrica do poema escrito. O número de sílabas dos seus versos seus pontos de acento podiam se alterar indefinidamente, desde que em função das necessidades da expressão coloquial (TATIT, 2004, p. 152-153).

Na indústria fonográfica, não havia espaço para o improviso, tampouco para os outros elementos que estavam atrelados à constituição do samba. Antes de inserir-se no mercado, o samba significava não apenas um gênero musical, mas toda uma configuração social da qual ele fazia parte. A dança, por exemplo, é um elemento essencial no ritmo sincopado do samba que, como se sabe, consiste na marcação do tempo fraco, que o prolonga para o tempo forte. Sodré aponta que,

[...] no samba, atua de modo especial a síncopa, incitando o ouvinte a preencher o tempo vazio com a marcação corporal – palmas, meneios, balanços, dança. [...] Sua força magnética, compulsiva mesmo, vem do impulso (provocado pelo vazio rítmico) de se completar a ausência do tempo com a dinâmica do movimento do espaço (1998, p.11).

Como o formato da indústria fonográfica e do rádio não permite a integração desse elemento corporal, os sambistas se utilizaram de uma estratégia sonora que nos remete, imediatamente, à imagem corporal. Eles passaram a usar tanto a marcação rítmica quanto a letra para trazer esse elemento, impossibilitado de estar presente. Podemos perceber um exemplo importante dessa solução musical na canção de Ary Barroso, Morena boca de ouro, cujas subidas e descidas, assim como a letra, que diz “[...] Roda morena/ vai não vai/ginga morena/cai não cai [...]” (BARROSO, 1941 apud TATIT, 2004, p.156), remetem-nos à imagem da morena sambando. Algo semelhante ocorre com um samba de Jackson, composto por ele e por Sebastião Martins e Álvaro Castilho, gravado em 1964, no LP Coisas nossas e intitulado Meu berimbau:

[...]
Ai morena
Arrasta a sandália aí Que o samba tá bom E não pode parar Cuidado pra não cair

Que bonito o samba Que bom resultado Do meu berimbau E do teu rebolado

A letra novamente nos remete à morena que dança o samba, demonstrando que, com sua dança, ela é parte constituinte do samba. Do ponto de vista rítmico, quando a letra alerta a morena “pra não cair”, a música faz uma parada, como se estivesse ajudando a dançarina a equilibrar-se. Estabelecendo uma relação contígua com o corpo da morena, o intérprete estica as sílabas “la” e “do” da palavra rebolado e, com essa sonoridade prolongada, remete-nos, imediatamente, ao movimento circular do rebolado.

Adorno criticou essa relação da música popular com o corpo ao analisar o jazz. Ele apontava que a música estimuladora da dança parecia impedir um tipo de escuta reflexiva12 que, segundo ele, só poderia ocorrer em um estado de recolhimento quase ascético. Assim, a própria capacidade de escuta do receptor seria atrofiada, na medida em que o modo como a sua apreciação era feita não estava associado ao recolhimento. Tentando fechar o seu raciocínio dialético, Adorno verificou a existência de um potencial de negação13 no jazz, que residiria na liberação sexual expressa na dança. Entretanto essa energia despendida na dança aplacava as tensões sociais e, consequentemente, desviava uma energia que poderia ser direcionada para a transformação do homem.

Sevcenko refere que a presença do corpo, na música do século XX, era necessária porquanto os ritmos frenéticos, na modernidade, também se impunham como presença. O autor esclarece que

há um consenso entre vários pesquisadores quanto ao fato de que foi a atmosfera tensa, gerada pela Primeira Guerra Mundial que deu o impulso decisivo para a dança baseada em ritmos frenéticos tornar-se uma das atividades simbólicas preponderantes da vida social (SEVCENKO, 2010, p.594).

Nesse sentido, de fato, a dança aparece no início do século XX como algo que vem atenuar o clima de tensão, o que não implica, necessariamente, considerá-la como um movimento apaziguador, mas como uma forma de se manifestar diante de determinada compreensão de mundo. Sodré, por exemplo, enuncia que essa presença do corpo é fundamental na tradição do negro no Brasil:


Nos quilombos, nos engenhos, nas plantações, nas cidades, havia samba onde estava o negro, como uma inequívoca demonstração de resistência ao imperativo social (escravagista) de redução do corpo negro a uma máquina produtiva e como uma afirmação de continuidade do universo cultural africano (1998, p.12).

Diferentemente das interpretações adornianas, Sodré reflete a presença do corpo como um caráter mais transgressor do que afirmativo. No Brasil, essa presença do corpo na música do negro marcou toda a produção da música popular brasileira. Percebemos isso claramente ao pensar em diversos gêneros populares brasileiros, já que eles podem significar não só um determinado ritmo, mas também uma forma de dançar, como é o caso do coco, do forró, do samba, entre outros.

Assim, apoiando-nos na forma como Sodré traz essa questão, podemos compreender a dança para além da ideia de submissão. Entendemos, portanto, que as danças que os ritmos “jacksonianos” sugerem são um prolongamento da voz que se quer fazer presença e que expande a sua capacidade vocálica através do canto (ZUMTHOR, 2005). Então, se o canto é a expansão da voz, a dança também o é. O corpo se movimenta, compactuando harmonicamente com essa voz que reivindica – parafraseando Benjamim (1994) – o direito de ser ouvida.

Todas as alterações sofridas pelo samba, ao se adequar às exigências das novas tecnologias, não podem ser compreendidas apenas como uma forma de apropriação socialmente verticalizada de cima para baixo, porque as próprias posições da elite brasileira não eram homogêneas. Nesse sentido é que vários intelectuais, como o próprio Mário de Andrade, questionavam esse espaço que o samba ia alcançando, pelo fato de a música popular ser apenas uma fonte inspiradora de nacionalidade, portanto, não podia ser a própria nacionalidade. Referindo-se a Mário de Andrade e a Villa Lobos, Napolitano compactua com nossa reflexão e afirma que, “para eles, a música popular era fonte inspiradora de nacionalidade, desde que ancorada no passado da cultura popular oral, material rico e bruto a ser lapidado pelo mundo erudito” (2007, p.41). Tatit constata que

Mário de Andrade e Villa Lobos concebiam uma espécie de paternalismo folclorista, necessário, segundo os autores, para administrar o caos sonoro que então assolava o país. [...] Essa nova dinâmica sonora, com luz própria, só pôde ser parcialmente apreciada pela elite pensante, uma vez que não cabia confortavelmente em seus projetos de integração e orientação estética que deveriam refletir a aliança do povo com o Estado numa espécie de concerto para o progresso (2004, p.38-39).

Ressaltamos que, à medida que o samba conquistava seu espaço, o discurso da higienização ia crescendo e, respaldado pelo governo Vargas – sobretudo no Estado Novo – estimulou-se um novo tipo de samba, o samba cívico. Assim, a censura em torno das músicas populares ocorreu antes mesmo do DIP, “pois era uma demanda de boa parte das elites letradas” (NAPOLITANO, 2007, p. 49). Em outubro 1933, a comissão de censura da Confederação Brasileira de Radiodifusão vetou a música Lenço no pescoço, de Wilson Batista. O próprio Jackson, apesar de não ter tido nenhuma música censurada, estava habituado a entregar “aos produtores da Copacabana uma quantidade de letras além do previsto para a gravação agendada” (MOURA; VICENTE, 2001, p. 249-250), a fim de não ter grandes problemas com o Serviço da Censura de Diversões Públicas. Essa preocupação que se encontrava em torno das produções populares relaciona-se não apenas à herança histórica brasileira de um Estado autoritário, mas também, segundo Wisnik, a uma tradição ocidental que remonta Platão. Assim,

o poder atribuído à música tem seu eixo numa ambivalência consistente na concepção de que ela pode carrear as forças sociais para o centro político, conferindo ao Estado, através de suas celebrações, um efeito de imantação sobre o corpo social, ou então, ao contrário, pode expelir essas forças para fora do controle do Estado. [...] a música aparece como um elemento agregador/desagregador por excelência, podendo promover o enlace da totalidade social (quando o nó é pedagogicamente bem dado) ou preparando a sua dissolvência (quando não). (WISNIK, 2001, p.139).

Não podemos ver essa relação que o Estado passou a estabelecer com o samba como algo unilateral. Os próprios sambistas traçaram um caminho que perpassava a busca por uma ampla legitimação social. Sobre esse aspecto, Napolitano assevera:

É preciso reconhecer que o nacionalismo na música popular, principalmente a partir de uma parte do samba e do Carnaval, não era produto apenas do controle e da instrumentalização do Estado Novo, materializado através da ação do DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda, nome que o Departamento Nacional de Propaganda ganhou a partir de meados de 1939). Também correspondia a uma estratégia de buscar reconhecimento do samba como paradigma de música popular de “bom gosto”, símbolo e síntese da brasilidade musical, desenvolvida tanto por jornalistas entusiastas do Carnaval e da música popular como pelos próprios  sambistas, principalmente aqueles ligados às escolas (2007, p.38).

Essa legitimação do samba ocorreu à proporção que ele foi adquirindo caráter nacional. Esse caráter, por sua vez, foi consolidado com a sua exportação, que veio ajudar a construir a imagem de uma nação do samba. Assim, em 1941, o samba chega às telas hollywoodianas, também, como forma de concretização da “política da boa vizinhança”.

Apesar da exportação do samba na década de 1940, em 1950, esse gênero passou a sofrer com a concorrência de outros gêneros internacionais. Então, ao mesmo tempo em que houve uma facilitação da entrada de produtos estrangeiros no país – sobretudo no governo de Juscelino Kubstichek –, houve uma assimilação de aspectos da cultura dos Estados Unidos, principalmente. Tatit refere que essa influência recaiu até mesmo na adoção de nomes artísticos, como é o caso de Dick Farney e Jonny Alf. O próprio Jackson também pode ser considerado como um resultado dessa influência, apesar de a palavra Pandeiro trazer uma conotação mais nacional, o que demonstrava que o hibridismo jacksoniano já estava presente em sua alcunha. Esse nome começou a ser gestado na década de 1920, a partir do contato que ele teve com os filmes de faroeste. Jackson – ainda José Gomes Filho – ao assistir àqueles filmes, imitava o ator Jack Perrin, o que fez com que ganhasse o apelido de Zé Jack. Em Campina Grande, foi eliminando o “Zé” e ganhando o “Pandeiro” e, em João Pessoa, foi chamado de José Jackson. Em Recife, passou a ser conhecido como Jackson do Pandeiro, atribuindo o acréscimo da terminação “son” ao nome Jack a Ernani Séve, locutor-chefe da rádio Jornal do Commercio.

Houve, entretanto, uma reação a essa entrada da música estrangeira no país. Os chamados por Napolitano de “folcloristas urbanos” passaram a trajar o samba com uma aura de nacionalidade, a fim de angariar os ouvidos ávidos pelas novidades do mercado. Tais folcloristas tinham um espírito muito semelhante ao de Mário de Andrade, já que também se baseavam na perspectiva da autenticidade nacional. No entanto, esses “folcloristas” buscavam tanto em alguns sujeitos que produziam a música popular quanto na música popular urbana os elementos que garantissem a autenticidade de uma música nacional.

Isso significa que, apesar de as manifestações urbanas não terem sido privilegiadas nas reflexões marioandradinas, o processo de nacionalização do samba teve como base a ideia de autenticidade nacional, tão cara ao “considerado patrono dos estudos históricos brasileiros” (NAPOLITANO, 2005, p. 60). Dessa maneira, consolida-se e naturaliza-se a existência do ritmo nacional, com os vários símbolos que tal ritmo, no final da década de 1940 e na década de 1950, passa a engendrar, tais como: a “era de ouro”, a “velha guarda” e a mitificação do músico Noel Rosa.

Assim, a partir de 1950, passou a preponderar a ideia de que a música popular não estaria mais associada ao rural e, sim, ao urbano. Ora, nessa década, já se podiam sentir os resultados de uma política modernizadora, iniciada com Getúlio Vargas na década de 1930. Portanto, na década de 1950, o urbano já parecia superar o rural, ao menos em termos de importância ideológica. O urbano era símbolo de progresso, de modernidade, enquanto que o rural representava o atraso. Do ponto de vista musical, passou-se a associar o rural ao folclórico. Segundo Sandroni (2004), em um congresso de folclore nos anos de 1950, Alvarenga já propunha tal divisão.

Sandroni afirma ainda que, em 1960, a música popular já se encontrava totalmente atrelada à música urbana, assim como também a uma defesa do nacional e, por que não dizer, do “verdadeiro” nacional. Essa separação entre o rural e o urbano terminou por afetar as classificações realizadas em torno das produções musicais brasileiras, e o urbano foi adentrando o conceito de popular, na medida em que a busca do nacional recaía sobre o urbano. Do ponto de vista musical, o urbano, no Brasil da época, associava-se à Região Sudeste, mais especificamente, o eixo Rio de Janeiro/São Paulo. Portanto o nacional estava, necessariamente, articulado às produções realizadas nesse eixo.

Esse processo de construção da identidade nacional – iniciado na década de 1920 e consolidado, ao menos do ponto de vista musical, na década de 1940, com a consagração do samba como ritmo nacional – pode ser considerado como fruto de um movimento contra- hegemônico da cultura popular, já que ele representava a voz das camadas populares urbanas. Contudo, se considerarmos que o próprio processo de legitimação de uma identidade nacional é um movimento histórico hegemônico ocorrido não só no Brasil, mas também no mundo ocidental como um todo, o samba também se torna um símbolo de hegemonia e representará a homogeneização de uma cultura musical, já que o nacionalismo também o faz.

Não obstante a ideia de autenticidade marioandradina ter, indiretamente, contribuído para a consolidação da música popular carioca como música nacional, acreditamos que as reflexões de Mário de Andrade também legitimaram a produção da música popular realizada no Nordeste brasileiro. Isso ocorreu devido ao fato de que, como esse intelectual centrou grande parte dos seus estudos nas regiões Norte e Nordeste, suas análises foram fundamentais para que as expressões musicais nordestinas tivessem acesso à mídia nacional, a partir da década de 1940. Nesse sentido, Napolitano afirma: “No final dessa década, o Baião de Luiz Gonzaga se nacionalizou, via rádio, consagrando definitivamente a música nordestina nos meios de comunicação e no mercado do disco do „sul maravilha‟” (2005, p. 39).

A incursão do baião e de “outros gêneros „regionais‟ (embolada, coco, moda de viola) também foi ganhando espaço na rádio, tornando-se referência para além das suas regiões de origem” (NAPOLITANO, 2005, p. 57). Foi nesse quadro que Jackson surgiu, talvez como uma tentativa da gravadora Copacabana – concorrente da RCA de Luiz Gonzaga – de encontrar algum artista que tivesse uma popularidade compatível com a de Gonzaga, que abarcasse, sobretudo, o mercado nordestino.

Não há como negar que os gêneros musicais nordestinos adquiriram um caráter nacional. Contudo, a música popular dita nordestina não teve força para desbancar a concorrência das produções efetuadas na Região Sudeste, principalmente a do samba que, a essa altura – na década de 1950 – já havia conquistado esse status de ritmo nacional, porque, apesar de a defesa do nacional “autêntico” pelos “folcloristas urbanos” objetivar, principalmente, desbancar a música estrangeira, terminou por relegar a um segundo plano a música popular advinda de outras regiões brasileiras. Soma-se a isso o fato de que a música popular produzida no Nordeste conquistou o seu espaço nacional a partir de uma perspectiva regional, fazendo com que fosse compreendida apenas como parte das manifestações nacionais.

O espaço regional-nacional obtido por essa música popular encontra-se atrelado à própria ideia de Região Nordeste, que suscita uma série de significados que devemos analisar, a fim de compreender melhor como e porque a música popular produzida no Nordeste brasileiro traz determinadas marcas simbólicas que auxiliam no processo de afirmação identitária dessa região.






* Dissertação apresentada ao Programa de Pósgraduação em História do Centro de Ciências Humanas Letras e Artes da Universidade Federal da Paraíba – UFPB, em cumprimentos as exigências para obtenção do título de Mestre em História, Área de Concentração em História e Cultura Histórica.

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