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terça-feira, 26 de junho de 2018

NA LEVADA DO PANDEIRO: A MÚSICA DE JACKSON DO PANDEIRO ENTRE 1953 E 1967 - PARTE 02

Por Manuela Fonsêca Ramos*



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RESUMO 

Esta pesquisa apresenta uma análise acerca de uma parte da obra de Jackson do Pandeiro, situada entre os anos de 1953 e 1967. Tal análise busca apontar essa obra como um exemplo importante do hibridismo cultural existente na música popular brasileira. Para compreender melhor tal hibridação, perpassa a nossa análise a formação da identidade nacional e da nordestina, que foram sendo construídas, sobretudo, a partir da década de 1920. Compreendemos esse período da obra jacksoniana como uma contribuição para o redimensionamento das ideias de nacionalidade brasileira e de “nordestinidade”, para que possamos perceber como essas formulações de identidade são, antes, parte de um processo histórico, e não, um dado congelado no tempo e em espaços imóveis. Nesse sentido, este estudo corresponde à linha de pesquisa de História Regional, visto que nos auxilia a compreender a construção de uma dada região, o Nordeste brasileiro, a partir da sua articulação com os agentes e os espaços nacionais e globais. Palavras-chave: Jackson do Pandeiro. Hibridismo. Música popular brasileira. Nacionalismo. Nordeste.



CAPÍTULO 1

A CONSOLIDAÇÃO DA MÚSICA POPULAR NO BRASIL 

Neste capítulo, introduzimos uma discussão com as reflexões elaboradas por Mário de Andrade, no que se refere à música popular, tendo em vista o fato de que as concepções existentes acerca desse conceito são fundamentais para que possamos compreender as músicas do repertório jancksoniano. No segundo e terceiro tópicos, objetivamos compreender como as elucubrações marioandradinas foram importantes para as classificações da produção da música popular brasileira e dos seus consequentes significados simbólicos. Além disso, os últimos tópicos traçam a trajetória tanto do processo de consolidação da hegemonia do samba quanto da do baião, a fim de desembaraçar processos que aparecem hibridados na obra de Jackson do Pandeiro.


1.1 A MÚSICA POPULAR BRASILEIRA SEGUNDO A PERSPECTIVA DE MÁRIO DE ANDRADE 

A concepção de música popular de Mário de Andrade perpassa, necessariamente, a ideia de brasilidade. Ao pensar na construção da identidade brasileira e em sua relação com a música popular, não podemos deixar de analisar as concepções estéticas desse importante teórico.

O intelectual Mário de Andrade fazia parte de um setor da sociedade que almejava a independência cultural brasileira e, nesse sentido, não poderia ter ano melhor do que 1922, quando o Brasil comemorava o seu centenário da independência, para simbolizar o marco histórico dessa iniciativa. Assim, segundo Contier, Andrade reinterpretava a História do Brasil apontando o 7 de setembro de 1822 como o marco que representa a ruptura com a metrópole portuguesa, e o pós-1918, como “uma conjuntura favorável, capaz de propiciar a independência cultural do país frente aos principais pólos musicais europeus” (CONTIER, 2004, p.76). Em fins da década de 1920, no Ensaio sobre a Música Brasileira, Andrade apontava que a sua atualidade era o momento ideal para o afloramento musical brasileiro, já que a música brasileira – até meados do século XIX e do ponto de vista erudito – era considerada música transplantada, e as manifestações musicais populares eram inexistentes, pois o que havia era música ameríndia, africana ou lusa, e não, brasileira. 

Essa distinção entre a música brasileira e as músicas europeia, africana e ameríndia reflete uma maneira de pensar o que seria a autêntica música brasileira, associada à reflexão do que viria a ser o povo brasileiro. A identificação do povo, por sua vez, é imprescindível para a consolidação dos ideais republicanos. Não é à toa que, no início da República brasileira, como aponta José Murilo de Carvalho, alguns políticos constatavam a inexistência de um povo brasileiro. Tal constatação pressupõe a existência de uma busca por esse povo. Assim, José Murilo de Carvalho esclarece que não existia o povo se o pensássemos como um cidadão-modelo politicamente ativo, “[...] consciente dos seus direitos e deveres, capaz de organizar-se para agir em defesa dos seus interesses [...]” (CARVALHO, 1987, p.140-141). A falta de participação da população, no sistema político republicano, era não só em virtude das próprias restrições que esse lhe impunha – a não participação das mulheres, dos analfabetos, etc. – mas também pelo fato de que a corrupção eleitoral deixava a população politicamente ativa desacreditada dos seus direitos de cidadão.

Nos anos de 1920, com o crescimento da industrialização brasileira, o aceleramento da urbanização, a maior “[...] projeção da burguesia e o crescimento das camadas médias urbanas e populares [...]” (BRUM, 1999, p.181), iniciou-se uma busca por uma reorganização política no Brasil. A construção de uma nova república encontrava-se também relacionada com os movimentos nacionalistas advindos da Primeira Guerra Mundial, já que o impacto que ela causou auxiliou

[...] o Brasil a descobrir-se como país periférico, dependente.
Houve uma tomada de consciência do nosso atraso e da nossa vulnerabilidade.
Concomitantemente, ocorreu o renascimento do nacionalismo
mais maduro e mais comprometido com a transformação da realidade
do que o nacionalismo romântico do século XIX (BRUM, 1999, p.183). 

Os modernistas da semana de 1922 surgiram, portanto, no bojo das buscas por mudanças no sistema político vigente. Apesar de ter tido inspiração nas vanguardas europeias, como afirma Contier, o movimento modernista fez parte daquilo que Brum chamou de “nacionalismo literário-artístico-cultural” (1999, p. 183). 

As reflexões nacionalistas do modernista Mário de Andrade, realizadas no final da década de 1920, sistematizam os critérios de elaboração de uma música brasileira, que aparece intrinsecamente relacionada à identificação do povo brasileiro. Assim, se essa identificação do povo brasileiro era fundamental para o estabelecimento da nacionalidade, a música brasileira, para sê-lo, deveria procurar seguir aquilo que a música popular entoava. 


Por isso, concordamos com a ideia de Sandroni, no que diz respeito à música popular, quando refere: 

Parte da constatação de que a ideia de “música popular” tem um pressuposto
comum à de república: trata-se, é claro, da ideia de “povo”.
Quem pensa em música popular brasileira tem
em mente alguma concepção de “povo brasileiro”,
tanto quanto quem adere a ideais republicanos (2004, p.25). 

Assim, as coisas populares só passam a existir, do ponto de vista formal, quando se começa a pensar em algumas manifestações da sociedade nesses termos. É em consonância com isso que Andrade, no Ensaio da Música Brasileira, em 1928, aconselha os compositores brasileiros a se inspirarem na música popular para produzir música nacional, já que 

o critério de música brasileira pra atualidade deve de existir em
relação à atualidade. A atualidade brasileira se aplica aferradamente
a nacionalisar a nossa manifestação [...] O critério histórico atual
da Música Brasileira é o da manifestação musical que sendo feita
por brasileiro ou individuo nacionalisado,
reflete as características musicais da raça (1972, p.20). 

Em seguida, Andrade pergunta, e ele mesmo responde: “Onde que estas estão? Na música popular” (1972, p.20). 

A música popular era uma produção não apenas nacional, mas também étnica, pois o autor considerava que, somente no final do século XIX e, sobretudo, no século XX, o povo brasileiro surge como entidade racial. Considerando que a nação brasileira era “anterior a nossa raça”, somente nesse período é que a mistura étnica havia se incrustado no modo de ser dessa nação, o que possibilitou a formação de uma cultura nacional. Para que não reste dúvida quanto à miscigenação ocorrida no Brasil, desde o desembarque dos europeus nessa terra, Andrade diferenciava povo misturado de povo amalgamado. Este último passava a surgir, segundo ele, em um determinado período - no final do século XIX e início do XX. Assim, o critério étnico também é fundamental para a sua compreensão do que seria o povo brasileiro, tendo como intuito melhor perceber quais as características que compunham as suas manifestações populares. 

O povo brasileiro, desde o século XIX, era entendido na perspectiva da miscigenação. Todavia, Ortiz afirma que a atenuação do caráter negativo dado à miscigenação brasileira foi somente realizada por Freyre na década de 1930, com a substituição do conceito de raça pelo conceito de cultura. A democracia racial, ao mesmo tempo em que apaziguava certas tensões sociais, formava uma cultura nacional única. Assim, Ortiz afirma: 

O mito das três raças torna-se então plausível e pode-se atualizar como ritual. A ideologia da mestiçagem, que estava aprisionada nas ambiguidades das teorias racistas, ao ser reelaborada pode difundir-se socialmente e se tornar senso comum, ritualmente celebrado nas relações do cotidiano, ou nos grandes eventos como o carnaval e o futebol. O que era mestiço torna-se nacional (2006, p.41). 

A questão étnica posta nas reflexões marioandradinas se assemelha à percepção de Brasil que Freyre propagava. Aquela é, entretanto, posterior a essa, visto que, no início da década de 1920, Freyre já discutia a sua ideia de mestiçagem. 

Os ingredientes formadores da música popular brasileira provêm, segundo Andrade, das três diferentes etnias formadoras do Brasil, a saber: a ameríndia, a africana e a europeia (portuguesa e espanhola). Em seu livro, Pequena história da música – escrito em 1929, com o nome Compêndio da Música Brasileira, e republicado com esse novo título em 1942 –, ao narrar a formação da música popular brasileira, do ponto de vista das suas heranças históricas, ele descreve os elementos que herdamos de cada influência étnica que tivemos. 

Dos ameríndios, absorvemos instrumentos como o chocalho, o som nasal – característico, principalmente, da Região Nordeste – e a forma fraseológica de cantar, que liberta a música do compasso e exige apenas poucas palavras como refrão, que estão, muitas vezes, associadas à fauna local. A influência europeia é basicamente dividida em portuguesa e espanhola. A portuguesa é considerada a maior de todas, da qual herdamos a quadratura estrófica, as formas lírico-poéticas e alguns aspectos do cantochão. Também algumas danças de origem europeia fizeram-se presentes em algumas manifestações musicais, como a dança de roda, algumas danças dramáticas e as danças iberas, a exemplo do Fandango. Já como influência espanhola, o autor considera o violão e as danças hispano-africanas da América – como a habanera e o tango. Vários instrumentos, como o cavaquinho, a flauta, entre outros,

também foram herdados da música europeia. O ingrediente étnico-negro nos teria emprestado a variedade rítmica, algumas flexões linguísticas e o jeito sensual de dançar.
Apesar de existirem, para o autor, influências outras das mais variadas, elas não fogem desse congraçamento existente na tríade étnico-brasileira. Aliás, é justamente esse congraçamento que delimita o que é a música popular brasileira do que é apenas música ameríndia, africana ou lusa. Andrade, em 1928, faz uma crítica ferrenha aos europeus, que acreditam que, para a nossa música ser considerada como nacional, precisávamos buscar nos elementos indígenas a nossa inspiração e esbraveja contra os que assim pensam: “Isso é uma puerilidade que inclui ignorância dos problemas sociológicos, étnicos, psicológicos e estéticos” (ANDRADE, 1972, p. 15). Mais na frente, Andrade arremata:

Se fosse nacional só o que é ameríndio, também os italianos não podiam empregar o orgão que é egípcio, o violino que é árabe, o cantochão que é gregoebraico, a polifonia que é nórdica, anglosaxonia flamenga e o diabo.  Os franceses não podiam usar a ópera que é italiana e muito menos a forma- de-sonata que é alemã. E como todos os povos da Europa são produto de migrações preistoricas se conclui que não existe arte européia... (1972, p. 16).

Essa unilateralidade na forma de perceber a música brasileira, segundo o autor, é antinacional e está pautada na busca por algo excessivamente característico. Tal busca é perigosa por tender a virar uma regra, o que é bastante problemático, uma vez que o autor compreende a miscigenação como fator fundamental na formação da cultura brasileira. Andrade aconselhava, em Ensaio da Música Brasileira, que “a reação contra o que é estrangeiro deve ser feita espertalhonamente pela deformação e adaptação” (ANDRADE, 1972, p.26), a fim de que não caiamos em um exotismo tamanho, fazendo com que nem os próprios brasileiros se reconheçam. A unilateralidade também, na maioria dos casos, tende a desconsiderar a influência europeia, mas Andrade nos alerta para a importância dessa música, uma vez que é ela que possibilita as nossas incursões na cultura europeia e o que nos daria aquilo que ele tanto preza: o caráter universal.

Para Andrade, esse modo antropofágico de pensar a música brasileira resulta, na verdade, de um diagnóstico feito da própria música popular, que traduziu as suas múltiplas influências na capacidade de dar à música uma liberdade, seja no ritmo seja no cantar, que pode alterar o compasso, formando um novo ritmo. Era justamente isso que Jackson fazia no momento em que ele, segundo Chico César, em entrevista ao programa De lá pra cá, “brincava” com o tempo da música, ora atrasando ora avançando o seu canto.
Na percepção marioandradina, apesar de a miscigenação ter lançado mão de diferentes articulações musicais, que resultaram em uma música popular brasileira, deveria haver limites para essa articulação naquele momento. Ele deixa claro que um músico brasileiro, cuja obra remete a assuntos estrangeiros e a escreve, também, em língua estrangeira, não pode considerar a sua obra como nacional, ela é antinacional.
As reflexões nacionalistas de Mário de Andrade se encontram em consonância com as produções dos intelectuais brasileiros e com o despertar de diversas sociedades para a consciência nacional, já que, depois da Primeira Guerra Mundial, intensificou-se a busca por identidades culturais, tomando como base o nacionalismo. O próprio Andrade afirmou, em 1942, que, nesse período,

se deu mesmo uma nova exacerbação nacionalista que para muitos países não tinha razão de ser, foi patriotada pura, foi política armamentista [...] A pesquisa de caráter nacional só é justificável nos países novos, que-nem o nosso, ainda não possuindo a tradição de séculos, de feitos, de heróis, uma consciência psicológica inata (1977, p. 195).

Uma questão nos é posta por essa reflexão de Mário de Andrade: é possível a existência de um nacionalismo exacerbado, que não tem razão de sê-lo por se basear em razões “puramente” patrióticas e políticas? Ora, não é a consciência nacional uma invenção histórica que delimita as nações também politicamente e não só culturalmente? Se não, como explicar a propaganda ideológica que o Estado-Novo promoveu do samba como gênero nacional e a sua consequente exportação para as telas de Hollywood9? A delimitação de uma nação é também fruto de ações políticas, mas isso não significa, necessariamente, que os aspectos socioculturais atribuídos a determinados povos são apenas construções políticas que não se estruturavam em certos valores circundantes. No que se refere à nacionalização do samba, “a propaganda oficial tinha como base certos valores que já circulavam na própria sociedade, por isso mesmo era bem eficaz” (NAPOLITANO, 2007, p.41). Não há um aspecto determinante nessa construção nacionalista, mas constantes relações entre os mais diversos fatores.

A questão nacionalista, apesar de, em certos momentos, tomar um viés um tanto quanto doutrinário, não era enxergada por Andrade desse modo. Ao contrário disso, Moraes aponta que em O Artista e o Artesão – texto apresentado na aula inaugural do Curso de História e Filosofia da Arte, da Universidade do Distrito Federal, no Rio de Janeiro, e publicado em 1943 – Andrade criticava a arte que é subjugada a uma ideologia, como ocorria na época com os comunistas ou com os integralistas. Assim, ele denunciava que o artista que se rende a uma ideologia, a ponto de fazer da sua arte uma arma de combate, está tendo uma atitude individualista, por mais que os seus ideais sejam em prol de uma causa nobre. A arte, para sê-la em sua plenitude, deveria se desprender de todo e qualquer interesse, e o artista ser capaz de executar uma arte desinteressada. Acreditamos que a arte desinteressada almejada por Andrade seria, portanto, aquela desprovida de todo e qualquer autointeresse, seja ele advindo de um particularismo ideológico, como aponta Moraes, ou até mesmo ritualístico, como nos faz crer Wisnik10. Ao contrário da atitude interessada, “Mário de Andrade vislumbrou na atitude desinteressada a via que poderia conduzir à superação da perspectiva individualista moderna” (MORAES, 1999, p.18).
O nacionalismo era uma forma de combater tanto o formalismo estético quanto um  dos aspectos do romantismo, o individualismo. Para tanto, ele se pautava na ideia de que a arte era, acima de tudo, social, era algo que tinha o mesmo valor social que a religião, já que,
em contraste ao que ocorre na vida ordinária, em que os membros do grupo voltam-se para os seus afazeres individuais, as cerimônias religiosas constituem uma oportunidade de congraçamento e de afirmação de uma identidade coletiva. Também a arte, concebida como derivação da experiência religiosa, desempenha esse mesmo papel (MORAES, 1999, p.107).

A música não teria, pois, apenas a função de acompanhar a cerimônia religiosa, mas “constitui a base emocional sobre a qual a experiência religiosa se alicerça” (MORAES, 1999, p.109). Essa compreensão da arte como algo que liga sentimentalmente um povo foi muito importante no romantismo e no modernismo brasileiro. Esse vínculo sentimental tem, em ambos, o nacionalismo como expressão máxima. Assim, se, ao mesmo tempo, Andrade critica os românticos por causa do seu individualismo burguês, ele se aproxima deles ao buscar o nacionalismo como solução.

As reflexões nacionalistas de Mário de Andrade são uma fórmula complicada de se entender, pois se ele abomina toda e qualquer submissão da arte a uma ideologia, como compreender o seu nacionalismo se não ideologicamente? Segundo Moraes, a saída que a reflexão de Andrade aponta perpassa a ideia de que essa imposição nacionalista externa e, portanto, individualista, corresponde a uma necessidade temporária, já que o Brasil encontrava-se em um momento ainda primitivo de percepção dessa coletividade. Andrade anuncia que chegaríamos, assim, a um estágio tal que esse traço nacional já não apareceria como algo externo e teríamos, então, uma música nacional.

Não obstante o nacionalismo parecer particularista e, muitas vezes, exprimir uma arte interessada – sobretudo nos seus escritos do final da década de 1920 – ele não é individualista, por não ter como meta o particularismo e, sim, o universalismo. E se a música nacional estivesse naturalizada e consolidada, ela poderia, por fim, ser considerada música desinteressada, e esse traço, consequentemente, garantiria sua universalização e o reencontro da arte com o seu intrínseco valor social.

Mário de Andrade espelhava os anseios de uma atualidade brasileira que “enfrentava o desafio de entrar no concerto das nações cultas” (MORAES, 1999, p. 114). A saída estética que ele aponta e que estava de acordo com os ideais modernistas é a busca do nacional, por acreditar que era através dele que o universal poderia ser alcançado. É por isso que ele critica o xenofobismo exagerado como também a aversão que determinados artistas têm à herança portuguesa. Ora, no Ensaio sobre a Música Brasileira, ele esclarece que é justamente a influência europeia que permitirá a incursão da música brasileira não só na cultura europeia, mas também nos paradigmas estéticos universais. Moraes nos aponta que

as intuições de Mário de Andrade presentes nos escritos do final dos anos 30 até a sua morte, em 1945, resultam de um esforço de tratar de forma cada vez mais articulada o propósito universalista e o tema da identidade nacional (1999, p.120).

A música popular, portanto, é tida como um meio para se alcançar uma estética própria, um ethos brasileiro que nos abriria as portas para a universalização e ela não seria, sozinha, responsável pela formação dessa cultura nacional. Andrade alertava os artistas brasileiros para buscarem nas coisas populares os elementos necessários para a construção daquilo que ele intitula como música artística nacional. Assim, dois agentes ajudariam a compor essa música, e as manifestações populares é um deles. Somado a esse, temos aquele que daria a essas manifestações o caráter nacional: o músico de formação erudita. A esse último agente – que não está inserido na cultura popular, caso contrário, o autor não precisaria alertá-lo para tal busca – cabia o papel de traduzir as manifestações populares em música artística nacional e de transformá-la em música desinteressada.
Se pensarmos nas produções musicais de Jackson, na perspectiva de Andrade, elas seriam consideradas música popular brasileira, pelo fato de esse artista representar, do ponto de vista étnico, o povo brasileiro. As indicações trazidas por Moura e Vicente atestam isso já, que o pai de Jackson “[...] era paraibano (provavelmente de Alagoa Grande), filho de negro com índia (ou índio com negra). Já Flora, ao que tudo indica, seria a segunda geração de descendentes diretos de brasileiro com portuguesa (ou brasileira com português)” (2001, p.33). Todavia, sua música era uma fonte de pesquisa e inspiração e não podia ser considerada música artística brasileira, já que o artista em questão não tinha uma formação erudita.

Com o intuito de estabelecer as concepções de brasilidade, imprescindíveis para a formação do Estado Moderno brasileiro, Andrade direcionou os músicos brasileiros para executarem músicas “eminentemente” nacionais. Ele enaltecia e buscava preservar/resgatar romanticamente a cultura brasileira, em nome do engrandecimento do artista nacional e da nação, para demonstrar que fazia um claro aceno à tentativa de modernizar o Brasil através da construção de uma identidade nacional. Todavia, e como demonstra Wisnik (2001), para além dessa preocupação com a formação da cultura nacional, também fica claro, em suas reflexões, a tentativa de estabelecer o lugar social do intelectual brasileiro, que era fundamental nessa caçada por uma identidade nacional. Apesar de, na cultura popular, residir esse importante elo nacional, caberia aos intelectuais discernir aquilo que era, de fato, representativo do povo brasileiro. Assim, é possível verificar, nas concepções de música popular de Mário de Andrade, como uma só perspectiva tanto pode valorizar romanticamente a cultura popular quanto depreciá-la, articulando as duas percepções preponderantes ao se interpretar a cultura popular. Isso ocorre na medida em que os produtores da cultura popular necessitam do aval dos intelectuais, para que as suas manifestações adquiram a importância de ser um elemento positivo e de unidade nacional.

Direcionando os artistas brasileiros para distinguir aquilo que podia ser considerado como elemento de nacionalidade, Andrade delimitou, em 1936, alguns traços importantes que fazem a música ser “popular”. Andrade considerava-a como aquela que apresenta caracteres de origem rural. Em seu texto, intitulado A música e a canção populares no Brasil, escrito em 1936 e publicado no mesmo ano na Revista do Arquivo Municipal, ele considerava como música popular apenas as manifestações musicais populares urbanas, que não apresentassem “[...] a influência deletéria do urbanismo [...]” (ANDRADE, 1972, p. 166). A esse respeito Sandroni afirma que,

embora Mário também empregasse a palavra “folclore” para se referir a seu assunto predileto, e tenha empregado, pelo menos uma vez, o qualificativo “popular” para falar de música urbana, o mais comum era que empregasse a expressão “música popular” quando o assunto era rural, e “popularesca”, quando urbano. Percebe-se a forte carga pejorativa dessa última expressão (2004, p. 27).

Alvarenga colocou, em 1954, que as obras A Música e a Canção Populares no Brasil, de Mário de Andrade, representam uma “verdadeira revolução das principais bases teóricas em que se fundava o estudo do Folclore” (ALVARENGA, 1972, p.159), porque, segundo Alvarenga, Andrade apontava para a “necessidade de rever-se o conceito de tradição e a impossibilidade de considerar-se as manifestações folclóricas como fenômenos essencial e exclusivamente rurais” (1972, p.159-160). Entretanto há que se considerar que a leitura de Alvarenga data de um período que o próprio Andrade não vivenciou, cuja marca importante é a superação ideológica do mundo rural pelo urbano. Assim, em 1936, Andrade colocou que as manifestações urbanas devem ser consideradas populares se preservam o espírito rural. Sandroni esclarece que

Mário apreciava aspectos da música popular urbana. É o autor do que talvez seja o primeiro ensaio dedicado, no Brasil, à música dos discos (“A pronúncia cantada e problema do nasal brasileiro través dos discos”, escrito em 1937, em que elogia, entre outros, Moreira da Silva e O Bando da Lua). Mas não pode haver dúvidas sobre o predomínio do mundo rural em sua caracterização do popular. Tanto as pesquisas feitas nas viagens de 1927- 1929, quanto as que orientou, como as da Missão de Pesquisas folclóricas de 1938, voltaram-se para a música tradicional do Nordeste. Se, em alguns casos, suas investigações aconteceram nas capitais, elas sempre se debruçaram sob manifestações culturais de origem rural (2004, p.27).

Essa análise de Andrade é bastante problemática, se pensarmos que a música popular urbana já demonstrava a sua força sociocultural, posto que vinha “caindo no gosto” de alguns intelectuais da época e que se aliava à indústria fonográfica nascente. Assim, no que diz respeito ao Rio de Janeiro, Maria Alice de Rezende Carvalho nos alerta para o fato de que, “[...] se havia algo que distinguia a capital federal de outras cidades brasileiras, eram a precoce afirmação dos intelectuais populares e a atração que exerciam sobre as elites locais” (2004, p. 40). Wisnik (2001) aponta que, apesar de alguns músicos modernistas como Villa Lobos terem mantido um contato com essa cultura urbana a ponto dela fazer parte das suas referências musicais, a prerrogativa da música popular incidia sobre o rural.

A reflexão de Andrade realizada em 1936 acerca da música popular como sendo, sobretudo, de caráter rural, mostra-se ainda um tanto quanto conservadora se pensarmos que, justamente no início do século XX, as massas urbanas começaram a se organizar, a exemplo da Greve Geral de 1917. Essa organização fica ainda mais nítida quando atentamos para o  fato de que a implantação da política trabalhista de Getúlio Vargas além de ter sido uma ação vista como necessária para a modernização do país foi uma forma de atender às  reivindicações desses movimentos sociais. Todavia essa política trabalhista foi bastante reformista, já que ela não modificou as estruturas sociopolíticas do campo e, ao mesmo tempo em que atendia, controlava as reivindicações do trabalhador urbano. No Brasil, o movimento trabalhista rural só se organizaria na década de 1950, quando os trabalhadores rurais percebessem que, assim como os operários urbanos, eles também poderiam adquirir direitos jurídicos.

Assim, na época em que Mário de Andrade começou a escrever sobre  cultura brasileira – entre as décadas de 1920 e 1940 – as relações sociais no campo pouco haviam se modificado com o processo de modernização do país, e isso fez com que o autor buscasse, nos aspectos rurais, a autêntica e tradicional música popular. O popular por sua vez, tanto para ele quanto para os compositores nacionalistas, a exemplo de Villa-Lobos, corresponde a um “povo bom-rústico-ingênuo do folclore [que difere] das massas urbanas, cuja presença democrático-anárquica no espaço da cidade [...]” (WISNIK, 2001, p. 131) provoca estranheza. Essa perspectiva da música popular como advinda das manifestações rurais termina entrando em consonância com “o mito, construído, principalmente, pelos grandes proprietários de terra, de que o Brasil tinha uma vocação indiscutível para a agricultura” (DIDIER; REZENDE, 2005, p.496). Assim, apesar de a Semana de Arte Moderna ter traduzido esteticamente a necessidade de mudanças sociais, as reflexões do modernista Mário de Andrade não deixam de trazer algumas características das formas anteriores de compreensão do Brasil. A respeito de uma atitude como essa, aparentemente contraditória, Certeau esclarece:

Contradição? De modo algum. A toda vontade construtiva (e todos os grupos a pressupõe), são necessários sinais de reconhecimento e acordos tácitos acerca das condições de possibilidade para que lhe seja aberto um espaço onde se desenvolva. Os pontos de referência organizam iniciativas. Um mapa permite viagens. Representações aceitas inauguram uma nova credibilidade, ao mesmo tempo em que a exprimem (2005, p. 34).

Ao considerar música popular aquela que tem o caráter rural, o estudo de Andrade parece com o que Certeau (1995) intitula de A beleza do morto. Com isso, não pretendemos dizer que as manifestações de caráter mais rural do que urbano não mais existiam no Brasil da época. Todavia essas manifestações não apresentavam uma ameaça direta às reflexões que vinham sendo traçadas por Andrade. Elas não punham em risco a lógica nacionalista desse autor, na qual a cultura popular não poderia, por si só, ser construtora de uma música nacional, seja porque, nessas manifestações, o nacionalismo ainda não havia se consolidado como algo socialmente importante, seja porque elas se encontravam geograficamente distantes do eixo Rio de Janeiro - São Paulo, de onde ele falava.

Contrariando a perspectiva da música artística nacional de Andrade, os sambistas cariocas foram adquirindo notoriedade no cenário musical nacional. Desde 1917, com a gravação do primeiro samba - Pelo telefone -feita por Donga, a música popular vinha, em sua configuração urbana, conquistando um espaço não só de agente inspirador da elaboração de uma música nacional, mas também de agente ativo.




* Dissertação apresentada ao Programa de Pós graduação em História do Centro de Ciências Humanas Letras e Artes da Universidade Federal da Paraíba – UFPB, em cumprimentos as exigências para obtenção do título de Mestre em História, Área de Concentração em História e Cultura Histórica.

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