50 - Tenho saudades da Mangueira
Meu pai ia com frequência à Mangueira ao lado de Cartola, que lá morava. O morro também fazia parte de sua vivência. Nos primeiros tempos no Rio, havia morado no Morro do Pinto e no Morro de São Carlos. Cartola sempre foi muito tímido, um homem simples, com um natural talento para fazer lindas melodias e inspiradas letras. Ele não ia tanto à nossa casa, minhas lembranças dele com meu pai são na praça Tiradentes. Dessa convivência com Cartola e o Morro da Mangueira, Herivelto compôs vários sambas homenageando a Estação Primeira, em parceria com outros apaixonados por sua magia e envolvimento. Com Heitor dos Prazeres criou “Lá em Mangueira”; com Grande Otelo, “Adeus, Mangueira” e “Mangueira não”. Mas seu grande hino de amor ao morro, “Saudosa Mangueira”, ele escreveu sozinho:
Tenho saudades da Mangueira
Daquele tempo em que eu batucava por lá
Tenho saudades do terreiro da escola Sou do tempo do Cartola
Velha guarda, o que que há Eu sou do tempo
Em que o malandro não descia Mas a polícia no morro também não subia
Ah, Mangueira!
Minha saudosa Mangueira!
Depois que o progresso chegou
Tudo se transformou
E Mangueira mudou
Já não se samba mais
À luz do lampião
E a cabrocha não vai pro terreiro
De pé no chão
Não vai, não vai
Na época de convivência com Cartola, meu pai se encontrava também com Nelson Cavaquinho e Carlos Cachaça, sambistas dos mais autênticos do Rio de Janeiro, e eles formaram um grupo. Chamava Bloco dos Arengueiros, e nele o samba e o pagode rolavam. Sem querer, deram espaço para talentos que se tornaram muito importantes para a música brasileira. Mais tarde, o Bloco se transformaria na Mangueira, escola de samba que meu pai viu nascer, amou muito, cantou pelo resto da vida — e que jamais se lembrou de homenageá-lo na Sapucaí. O maior sonho de Herivelto era desfilar na avenida como enredo da sua amada Mangueira, em cima de um carro. No Carnaval, ficava muito magoado ao ver a escola homenagear figuras públicas que nada tinham a ver com suas raízes, com sua história, nem demonstraram amor tão especial a ela, como Chico Recarey e Tom Jobim. Numa crise de lucidez, ao encerrar seu desfile como homenageado, Jobim inclusive re-clamava não saber o que estava fazendo ali. Em 1986, já com idade avançada, sentindo ter pouco tempo para ficar esperando ser lembrado pela sua Mangueira, meu pai aceitou emocionado o convite para ser o enredo de uma escola que acabara de subir para o grupo especial, a Unidos da Ponte. Deles recebeu muito carinho e atenção. No dia do desfile, ele estava muito emocionado, nervoso mesmo. Havia me convidado para ir ao seu lado, no alto de um carro. Seus filhos Hélio e Yaçanã e os netos Paula, Alexandre e May ara também desfilaram na escola. Bily não pôde ir, acho que estava morando na Itália. Na hora H, na maior ansiedade, meu pai, que agora bebia moderadamente, apelou e me pediu para arrumar alguma bebida “pra dar coragem”. Consegui uma daquelas garrafas de bolso com uísque. Bem nervoso, ele tomou meia garrafa de um só gole, umas duas doses. Assim, mais relaxado, pôde “enfrentar” a alegria da homenagem . Emocionado, curtiu o desfile e o aplauso do público lá do alto. Não conseguiu resistir às lágrimas. Também não consegui. Ninguém consegue, é irreprimível. A emoção de ver meu pai, o grande sambista Herivelto Martins, em pleno Sambódromo, ovacionado pelos amantes do samba, é indescritível. É uma grande consagração! Naquele momento, pouco importava a origem da homenagem . Como pessoa realmente privilegiada por Deus, no ano seguinte, 1987, novamente pude subir ao alto de um carro daqueles e ouvir a avenida saudar a mim e a Bily numa homenagem da Imperatriz Leopoldinense a nossa mãe. A diferença era que não pude ver nos olhos verdes de Dalva o brilho que vi nos olhos azuis de meu pai, no alto do carro. Acredito que, com o passar do tempo, a Mangueira percebeu ter ficado em falta com Herivelto. E, num derradeiro gesto, tentou minorar esse sentimento. Numa iniciativa do produtor cultural e amigo de meu pai, Hermínio Bello de Carvalho, na manhã do 80º aniversário de Herivelto, a bateria mirim da Mangueira acordou meu pai ao som dos tamborins em frente de sua casa na Urca, levando 200 integrantes para homenageá-lo. Infelizmente, não assisti a esse bonito espetáculo. Ninguém me avisou da homenagem e só cheguei de São Paulo à tarde, para abraçá-lo. Emocionado e confuso em seus sentimentos, meu pai me contou a surpresa. É claro que a emoção foi grande. O espetáculo inesquecível parou a Urca. Levou-o às lágrimas. Lágrimas com uma pitada de frustração. Não dava para apagar o sonho de desfilar num carro da Mangueira, visto pelo mundo inteiro, orgulhoso de ter contribuído, junto com seus companheiros, para o engrandecimento da escola e de ter enaltecido, em tantos sambas, o amor pelo morro e pelo Carnaval. Na festa dos 80 anos, oferecida pelo grande amigo Ricardo Cravo Albin em seu lindo apartamento na Urca, todos comentavam o desfile. Quando conversei com o Ricardo sobre a festa, ele me lembrou que foi nesta noite a última apresentação pública do Trio de Ouro, comigo substituindo Raul Sampaio. Foi uma apresentação comovente, aplaudida por 120 personalidades cariocas, no largo da Mãe do Bispo, hoje sede do Instituto Cultural Cravo Albin. O affair Herivelto versus Mangueira era o grande ti-ti-ti da noite, na qual estiveram presentes Elizeth Cardoso, Braguinha, Beth Carvalho, Zezé Motta, Sérgio Cabral, Miúcha, Boni, José Maria Monteiro e Paulo Henrique Cardoso, para citar alguns, além da diretoria e a Velha Guarda da Mangueira. Diante de tantos comentários sobre o ab-surdo da situação, alguns integrantes da diretoria da Mangueira, presentes à festa, se comprometeram a colocar o caso em discussão na Liga. Pelo regulamento da Liga das Escolas de Samba do Rio de Janeiro, as escolas não po-dem repetir os homenageados. Assim, a chance de meu pai ser homenageado pela sua Mangueira exigia a mudança desse regulamento. Herivelto jamais conseguiu en-tender essa falta de reconhecimento e morreu sem saber como foi possível nunca ter sido escolhido para tema da Mangueira, sua maior paixão.
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