Por Cecília Emiliana
A cantora e compositora carioca diz que se tornou mártir em vida e pede: 'Por favor, não me canonizem' (foto: Alexandre Moreira/Divulgação)
“Oi, meu amor! Espera só um minutinho, que eu engasguei aqui, preciso de um chazinho. Me liga de novo em cinco minutos?”. Ditas por telefone ao Estado de Minas, as palavras carregadas de diminutivos e delicadezas pertencem a uma mulher de voz grave e robusta, cuja personalidade nunca primou pela candura: era Angela Ro Ro do outro lado da linha.
Oito anos depois de Escândalo – seu último álbum de inéditas –, a cantora está de disco novo. Lançado pela gravadora Biscoito Fino, Selvagem já está disponível nas plataformas digitais e chegou em outubro às prateleiras das lojas.
O título do CD de 11 faixas define com clareza a jovem de timbre rouco que estourou em 1979 com a canção Amor, meu grande amor, parceria com a compositora Ana Terra. Mas até que ponto “selvagem” ainda é adjetivo que faz jus ao perfil da senhora que, em 5 de dezembro, completará 68 anos? A inesperada meiguice com que inicialmente atendeu à reportagem seria indício de que a idade amansou a fera?
A resposta é não. Bastam cinco minutos ininterruptos de diálogo com Angela para perceber que, se ela tem um papel de senhorinha afável a desempenhar, possivelmente ficou para a próxima encarnação. Trata-se, na verdade, de alguém que expressa com a fluidez e a imprevisibilidade do caos. A carioca que inicia um tópico qualquer com “meu amor” pra cá, “querida” pra lá, três minutos depois já mudou o tom da conversa, podendo assumir a gravidade de um discurso inflamado, a leveza de uma gargalhada gratuita e sabe-se lá mais o quê. No fim do papo, é claro que as ideias já estão tão emboladas, que ninguém mais consegue recuperar o rumo da prosa e seus rodopios.
Um giro pelo tracklist de Selvagem, no entanto, pode ser ainda mais interessante que um bate-papo com a diva do vozeirão. Nas composições 100% autorais do disco, o jeitão desgovernado de Angela Ro Ro faz muito mais sentido. Blues, jazz, rock, xaxado, samba e balada se misturam no trabalho, que se encerra com o baião Parte com o capeta. “Sai da frente/ eu não tenho freio!”, dizem osversos da canção. Apropriados, sem dúvida, para sintetizar o clima da entrevista a seguir.
Nasce um disco
Dessa vez não eu não convidei músicos pra tocar comigo. Selvagem é um trabalho só meu e do meu amigo, parceiro de trabalho de 30 anos, Ricardo Mac Cord. Ele fez o som de todos os instrumentos que aparecem nas canções no teclado, com suas mãos talentosas. Isso de maneira nenhuma diminui a qualidade do trabalho, ninguém aqui “apertou um botão” e deixou tocar arranjos prontos dos outros. É tudo “artesanal”. Ricardo criou as harmonias e tudo mais, só que usando um teclado, com programações de timbres de instrumentos. Optei por esse formato por dois motivos: primeiro, porque tinha certa urgência do disco. Queria oferecê-lo logo à Biscoito Fino, apresentar um projeto mais acabado para a gravadora. Gravar com meus amigos músicos é maravilhoso, mas toma um tempo maior. E depois, porque me apetecia essa coisa tecnológica de criar com um instrumento só. Claro, o Ricardo não é Jimmy Hendrix, mas é um músico foda. Não é a toa que está há tanto tempo na estrada comigo.
Rebeldia mineira
Cheguei na terceira idade, né? Posso dizer que sou uma senhorinha dócil (risos). Mas Selvagem ainda é o meu espírito, todo mundo sabe que eu sempre fui assim. Aliás, não podia ser diferente. Vocês são de Minas, me lembrei de que uma das minhas avós é aí de Cataguases (Zona da Mata Mineira). Ela foi miss da cidade, casou-se com o homem mais pobre da região e, um tempo depois, rasgou a faixa, as fotos, todas as lembranças do concurso de beleza. Ficou esclerosada e enchia o saco dela que ficassem lembrando que um dia ela foi muito bonita. É isso. Quem sai aos seus não degenera! (risos). O disco se chama Selvagem porque é isso que eu sou. Como diz a música (que dá nome ao álbum e abre o disco): Sou selvagem e não adianta/ tentar me cortar a garganta”.
Portal do amor
Nem todas as canções foram feitas exatamente para esse CD. Portal do amor, por exemplo, tem uma história de 40 anos, que começou em 1973. Eu tinha 23 anos naquela época e fui morar na Inglaterra. Enfrentei pela primeira vez bons perrengues para sobreviver, tipo faxinar banheiro, limpar hospital. Logo eu que nunca tinha trabalhado, era filha única de classe média. Mas foi lascada desse jeito que compus uma música que é Split up song number one, que, até então, só tinha melodia. Em 1979, voltei para o Rio e fui apresentada a Ana Terra, que veio pra mim com um poema dela, que era o Amor, meu grande amor. A letra casou direitinho com a melodia meio blues que eu tinha feito no exterior, a Split up song. Foi assim que nasceu Amor, meu grande amor, um dos meus grandes sucessos. Mas só usei duas, das quatro partes da harmonia original. As outras duas ficaram sobrando e guardei na cabeça. No verão deste ano, quando eu e Ricardo resolvemos tocar o projeto desse disco, desenterrei esse lance do fundo baú e botei letra. Pronto: nasceu Portal do Amor.
É simples assim...
É simples assim… também está ligada a uma história bem antiga. Fiz para a Lidoka, das Frenéticas, que morreu de câncer em julho de 2016. No fim da vida, lutava pela liberação de um remédio que não cura a doença, mas dava mais vigor, um barato mesmo no paciente. Isso me inspirou a compor para ela uma marchinha de carnaval, que depois acabei transformando em jazz. É simples assim…, portanto, é isso, uma coisa que nasceu inspirada na minha querida amiga Lidoka.
Cura gay
É patético isso, né? Deveriam se preocupar em tornar o acompanhamento psicológico acessível a quem precisa, como usuários de drogas pesadas, por exemplo. Sinceramente, a gente precisa de tanta coisa. De ar sem poluição, faculdade, postos de saúde, delegacias decentes, polícia honesta, rodovias, ensino de qualidade. Acho que esse papo de cura gay veio para tentar distrair a gente, tirar o foco das coisas sérias e urgentes que precisamos discutir.
Saindo do armário
(e fugindo da pergunta)
Ah, dessa parte, especificamente, não tenho lembranças. Da minha juventude, o que ficou foram outras coisas. Sou a menina que descobriu o acordeon e o piano clássico aos 15 anos, que gostava de pegar jacaré na praia. Lembro-me de quando eu descobri o inglês, das muitas vezes em que vi o sol nascer e se pôr, do quanto era fã da minha mãe. Sou a pessoa que, muito novinha, caiu na besteira de experimentar álcool e me vi refém dele depois. Além disso, sou linda, gostosa e polêmica. E isso fez com que eu me tornasse uma das figuras mais usadas pela mídia. Apanhei de tudo quanto é lado, acusada do que fiz e do que não fiz. Acho que sou mártir em vida mesmo! (risos). Mas, por favor, não me canonizem.! Não me canonizem, por que eu acho é pouco. De onde eu estiver, morta ou viva, vou sentir desprezo por quem fizer isso comigo! (risos).
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