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segunda-feira, 25 de setembro de 2017

MINHAS DUAS ESTRELAS (PERY RIBEIRO E ANA DUARTE)*




34 - México

Em 1965, recebi o convite para participar de um show que marcaria minha carreira, o Gemini 5, ao lado de Leny Andrade e do Bossa Três (no piano Luís Carlos Vinhas, no baixo Otávio Bailly Jr. e na bateria Ronie Mesquita). Sob a direção da dupla de ouro, Luís Carlos Mièle e Ronaldo Bôscoli, ficamos mais de um ano em cartaz na Boate Porão 73 e no Teatro Princesa Isabel. Com um estrondoso sucesso de público, o show virou disco ao vivo pela Odeon e recebeu da crítica especializada o título de melhor pocket-show do cenário carioca. Na esteira do sucesso, em 1966 fomos convidados para trabalhar no México por três meses. Outro sucesso. Renovamos por mais três meses. Depois, o grupo se desfez, e continuei sozinho por mais um ano, até receber, em 1967, o convite do Sérgio Mendes (estouradíssimo com o grupo Sérgio Mendes 66) para montar com Gracinha Leporace (que anos depois se tornaria sua mulher) o grupo Bossa Rio nos Estados Unidos. Na Cidade do México, nos apresentávamos no mais importante nightclub, o El Señorial, uma casa muito chique com três espaços para shows. Quando renovamos o contrato, o Natal se aproximava e resolvi convidar minha mãe para passá-lo comigo e também conhecer o México, país com o qual sempre sonhou. Por uma linda coincidência, no dia seguinte à sua chegada, minha mãe viu encantada a neve cair na cidade, o que não acontecia havia mais de quinze anos. Ela foi tomada de uma emoção infantil; me abraçava, beijava, brincava com a neve e dizia que aquilo era coisa divina, um presente que estava recebendo de Deus. Nessa época, eu morava porta a porta com Luís Carlos Vinhas. Sua mulher, Sílvia, também havia acabado de chegar do Brasil. Minha mãe adorava cozinhar e os convidávamos sempre para curtir seu tempero. A Silvinha conta que saía sempre com ela pela cidade. Faziam compras, supermercado, passeavam ou faziam companhia uma à outra quando Vinhas e eu saíamos para trabalhar. Recuperado hoje e totalmente abstêmio, Vinhas conta que ele e minha mãe tinham um truque para enganar a mim e a Sílvia. Quando ela ia para a cozinha fazer uma comidinha qualquer, batia na porta deles pedindo um pouco de conhaque para o tem - pero. Era a “deixa”. Aí Vinhas chamava a mulher, dizia que Dalva estava precisando de alguma coisa, como cebola ou cheiro-verde, e pedia a ela para descer e comprar. Enquanto Sílvia estava na rua, ele e minha mãe colocavam um pouco de conhaque na comida e bebiam o resto escondido de nós, porque nem eu nem a mulher dele queríamos ver os dois bebendo. Imaginem só: México, inverno, o frio, tudo era uma boa desculpa para um drinque. Só que eles não sabiam ficar em poucos drinques. Quando percebíamos, estavam já enrolando a língua. Era um porre a cada jantar. Nessa altura de sua vida, minha mãe estava bebendo muito e entrara num pro-cesso impressionante de autodestruição. No México, desfrutávamos da vida noturna da capital — restaurantes, shows, passeios pela cidade, casa dos amigos. No El Señorial, ela ficou toda orgulhosa de meu trabalho e do sucesso que fazíamos. Mas, com o tempo, foi se tornando impossível levá-la comigo: tinha controle sobre ela somente enquanto estávamos juntos. Quando eu subia no palco para cantar, ela se embriagava. No estágio de alcoolismo em que se encontrava, bastavam alguns drinques para isso acontecer. Várias vezes a levei para casa completamente bêbada. Deixei de levá-la comigo. Se eu não podia controlar minha mãe, também não podia expô-la e a mim nos lugares em que trabalhava. Era muito triste. Podem imaginar como me sentia vendo-a naquele processo terrível, se destruindo, sem que eu pudesse fazer nada, a não ser tentar ficar a seu lado, conversando e curando os seus porres. Foi um período em que conversávamos muito quando ela estava sóbria. Era uma pessoa muito doce, carinhosa e imensamente frágil. Mas eu sentia que dentro dela alguma coisa terminava. Um romper com os sonhos. Um desligamento da vida. A doença no fígado e a contínua insistência na bebida já haviam tomado conta de sua profunda solidão. Para Silvinha, minha mãe não se abriu muito, mas falava da solidão que sentia em sua vida, principalmente na carreira. Silvinha sentia que o interesse inicial dela pelo México já não era tão forte. Forte era a vontade de ficar ao meu lado. Falava para to-dos do prazer de estar comigo. E, principal-mente, estava orgulhosa porque mandei para ela a passagem e proporcionei o prazer de conhecer um país com o qual tanto sonhou. Dalva passou a sair comigo somente quando eu não tinha de subir no palco. Procurava distraí-la durante as folgas, levando-a para a casa de amigos, aos shows e passeios pela bela capital mexicana. Quando fomos a Acapulco, andamos por todos os lugares e ela ficou maravilhada. Estava na cidade que conhecia dos filmes e recordava seus ídolos — Agustin Lara, Maria Félix, Pedro Vargas. Fizemos um passeio a La Quebrada, local turístico conhecido no mundo inteiro, onde as pessoas mergulham de um penhasco altíssimo no mar azul. Quando voltei lá com meu pai, em 1974, minha mãe já havia falecido. Lembrei, emocionado, a sua alegria quase infantil naquele dia. Ela estava feliz. E ao mesmo tempo triste. Muito triste. Sentia falta de cantar, mas as circunstâncias não a favoreciam. Ainda tentei com um amigo, o Cardini, dono de um restaurante finíssimo, que ela se apresentasse na casa. Uma noite, ele nos convidou para jantar, e minha mãe resolveu dar uma canja. Foi uma ideia infeliz. Já estava alta e não conseguiu fazer a voz obedecer. Seu rosto era só aflição. Suas mãos se apertavam nos agudos, não conseguia se equilibrar direito. Tirei-a rápido do palco, nos abraçamos e choramos juntos. Choramos muito. Não me importou que ninguém estivesse entendendo nada. Eu sabia o que es-tava terminando ali: a vida de minha mãe. Depois disso, ela recebeu um telefonema do Chacrinha pedindo que voltasse, porque a marcha “Máscara negra”, que havia gravado para o Carnaval antes de ir ao México, estava estourando nas rádios. Com essa notícia, o rosto de minha mãe se iluminou. Ainda tentei segurá-la um pouco, para que se valorizasse mais, mas não houve jeito. O Chacrinha ligava insistentemente. Como filho, queria cuidar dela e insistia para que não voltasse ao Brasil. Mas, como artista, eu a entendia. O sucesso e a evidência acenavam para ela como um milagre, numa ressurreição maravilhosa.



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