Por Carlos Mauro
Certa vez, recebi para jantar em minha casa um casal de amigos. Eles ficaram impressionados com a quantidade de discos que possuo e foram fazendo pedidos para que eu colocasse para tocar gêneros musicais específicos, todos eles relacionados com a música pop internacional. A noite foi passando e fomos descambando para universos musicais mais específicos como o blues e a música cubana. A tantas horas da noite, o marido disse que tinha ficado com uma enorme vontade de ter uma coleção de CDs como a minha. Só que não queria ter o trabalho ou despender tempo em selecionar o que comprar. Preferiria que alguém como eu, "de sua confiança", reunisse uma quantidade de bons discos com uma variedade, qualidade e representatividade tais que o satisfizesse e surpreendesse, uma coleção feita sob encomenda para ele e que seria comprada com seu dinheiro com muito gosto.
Na hora em que meu amigo disse isto, estranhei muito. Afinal de contas, até então eu achava que toda a graça de colecionar discos estava na nossa escolha pessoal na hora de comprá-los. Considerava como estapafúrdia a ideia de alguém desejar adquirir de supetão algo que, para mim, representava o resultado de um processo de envolvimento intenso, de uma relação próxima com a música.
Com o passar dos anos, fui compreendendo a necessidade manifestada por meu amigo naquela noite. Nem todos que amamos a música temos disponibilidade para dedicação a esta arte tão exigente de nós, necessitada de porções consideráveis de nosso tempo e nossa atenção para ser desfrutada. Temos que nos dedicar às nossas profissões e aos nossos outros interesses. E o dia só tem 24 horas; e, a cada dia, as horas parecem mais curtas. Mesmo eu, que me envolvi intensamente com a música e com ela despendi bastante tempo de minha vida, não escolhi, de fato, todos os discos que possuo.
Descontando aqueles que ganhei de presente e os que gravei como artista ou produtor, boa parte dos meus discos foram adquiridos de uma forma muito semelhante àquela desejada pelo meu amigo. Não foram, em verdade, escolhidos por mim mas comprados como parte de coleções. E, ao contrário do que possa parecer, este modo de aquisição de CDs não dispensou meu envolvimento com a música. Muito pelo contrário, todo um universo cultural se abria para mim a cada coleção e a minha curiosidade natural alimentada pela dinâmica da oferta de novas informações através das coleções fez com que eu ficasse cada vez mais envolvido com a música.
As gravadoras ocasionalmente lançam no mercado coleções de discos. Algumas reúnem obras de um mesmo autor ou intérprete, outras traçam panoramas de gêneros e estilos musicais ou versam sobre música de épocas determinadas. Podem ter seus itens oferecidos à venda em separado ou em conjunto sob a forma de boxes. No entanto, muito mais surpreendentes são as coleções colocadas à venda nas bancas de jornais. Representam, quase sempre, uma porta de acesso para fonogramas esquecidos e informações diversas que nos revelam universos musicais surpreendentes e enriquecedores. Sim, isto acontece porque grande parte daquilo que adquirimos numa coleção é constituída de coisas que ainda não conhecíamos – em muitos casos, sequer tínhamos notícia de sua existência.
A regra número um do colecionador é não perder nenhum item da coleção. Quando começamos a colecionar discos vendidos em bancas de jornais, nossa motivação é poder pagar um bom preço por uma seleção contextualizada de fonogramas reunidos em torno de um artista, gênero, estilo ou movimento musical que já apreciamos. Esta contextualização é garantida graças a uma outra característica fundamental deste tipo de coleção. A legislação que regula os produtos distribuídos para venda em bancas de jornais proíbe a comercialização de produtos fonográficos avulsos mas permite que CDs e DVDs venham encartados em fascículos, revistas ou libretos impressos – considerados como produtos editoriais. Este jeitinho de driblar a lei faz com que seja produzido farto e interessante material histórico, crítico e analítico sobre os fonogramas, de modo a fazer com que se revelem para nós outros aspectos sobre os artistas e composições que já conhecíamos. E o mais importante: esse material contextualizador faz com que recebamos com tapete vermelho autores e intérpretes até então desconhecidos por nós, cuja música talvez não despertasse, por si só, nossa atenção se não fosse um item da coleção.
Toda coleção musical de boa qualidade tem como característica o trabalho de um curador. É ele quem seleciona os fonogramas ou álbuns integrais atendendo aos critérios de qualidade, representatividade e diversidade com o objetivo de garantir que cada item contribua decisivamente para o sucesso da coleção. Em grande parte dos casos, o curador também é responsável pela redação ou pela organização dos textos e de todo o material de referência dos fascículos que vem junto com os discos. E quando falo de sucesso da coleção, não me refiro apenas ao fenômeno comercial. Estou me referindo ao efeito que vai causar na vida de seus colecionadores.
Algumas coleções que comprei em bancas de jornais marcaram, sem dúvida, a minha carreira musical, primeiramente como público e depois como artista e produtor. A mais importante delas foi “Os Grandes Sambas da História”( acesse aqui ), que teve a curadoria de Arley Pereira e o projeto editorial de Elifas Andreato. Através desta coleção, conheci algumas obras e gravações que me inspiraram, juntamente com a excelente biografia de Noel Rosaescrita por Carlos Didier e João Máximo, a idealizar uma “orquestra típica de samba” que resultaria no surgimento do Tio Samba.
Em tempos virtuais e também de crise econômica, as novas gerações buscam tudo o que querem ouvir na internet com acesso gratuito. Isto é ótimo! É o tipo de acesso democrático sonhado desde sempre por todos nós! Mas as coleções musicais organizadas por curadores com conhecimento, experiência e sensibilidade, comercializadas em bancas de jornais, lojas virtuais ou produzidas com apoio de fundações e organizações não governamentais, são insubstituíveis na iniciação à arte de ouvir música.
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