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segunda-feira, 18 de setembro de 2017

MINHAS DUAS ESTRELAS (PERY RIBEIRO E ANA DUARTE)*




33 - O relacionamento com minha mãe


Para fazer o casarão de seus sonhos, minha mãe praticamente demoliu a casa em Jacarepaguá. A primeira reforma já havia ter-minado e estávamos por lá sempre que podíamos, para usufruir de seu carinho e atenção. Mas, no auge do sucesso, ela não parava em casa. Nos primeiros anos de casamento com Tito, eles viajavam muito pelo Brasil, Europa, América do Sul. Nossa convivência, porém, não era tão calma como poderia parecer. A vida transcorria cheia de muitos altos e muitos baixos. O sucesso e o temperamento obrigavam minha mãe a estar sempre cercada por muita gente: amigos, família, compositores, gente das mais diferentes qualidades. Era muita festa. A casa da rua Albano vivia à espera de alegria, vozes, risos, música. E, claro, muito conhaque. Hoje, sinto que minha mãe fazia questão desse barulho em volta dela. Não sei se isso fazia parte de sua essência ou se era um hábito adquirido com os anos de casamento com meu pai. Havia sido assim antes e continuava assim com Tito, por mais que ele tentasse botar certo freio nela. Era como se o silêncio que precede a chegada de todos a incomodasse e fizesse mal, abrindo um buraco negro na lembrança e na solidão. Umas poucas vezes, senti nitidamente que ela trocaria toda aquela zoeira por um pouco de paz, por um ambiente mais calmo ao lado de quem realmente amava. Minha mãe não era do tipo que precisava “ter” para se sentir mais Dalva. Era do tipo que precisava “ser” para se sentir Vicentina. Uma mulher simples. E delicada. Ela se entregava horas e horas sozinha, muitas vezes no escuro, a ouvir música romântica. Tinha uma preferência especial pela “Rapsody in Blue”, de Gershwin. Lembro que fiquei muitas vezes ao seu lado, enquanto ouvia músicas desse estilo, com sua pequena mão apertando a minha. Hoje, vejo que esses momentos que passamos só nós dois juntos, em total comunhão e mantendo um silêncio pleno de respeito pelo que ela sentia, serviram para nos aproximar muito. Ela fazia questão de que falássemos pouco, nos comunicando apenas por gestos. E viajava em seus pensamentos. Quase nunca deixava saber em que estava pensando. Era somente o deleite de estar só. Sonhava, suspirava, e algumas vezes eu via lágrimas nos seus olhos — dizia que tinha saudade de “não sei bem o quê…”. Eu gostava muito disso, tínhamos uma verdadeira intimidade. Era um bálsamo para as nossas almas. Nesses momentos, ela tinha mania de me chamar de “meu velho”. Com o tempo, passamos a ter uma sintonia diferente — ia muito além do relacionamento amoroso de mãe e filho. Penso que, com minha atitude particular em relação aos dramas que vivia, evitando condená-la e sempre procurando entendê-la (às vezes até acompanhando-a nos porres, só para estar junto), desenvolvemos uma cumplicidade e uma amizade maior. Era minha forma de me aproximar mais dela. Quando qualquer argumentação ou atitude minha não conseguia impedi-la de se entregar à bebida, eu bebia junto, a protegia do assédio negativo das pessoas. E procurava encontrar nessa situação um canal maior de comunicação com ela. Diante desse meu comportamento, ela passou a sentir em mim, além do filho amado, um amigo muito especial, e assim começou a me tratar. Analisando hoje, acredito que esse pro-cesso tenha começado quando ela esteve comigo no México. Talvez porque tenha sido lá que percebi realmente quanto a bebida havia tomado conta dela. Talvez também porque foi lá que a tive só para mim . Sei que esse período comigo foi a primeira vez em que ela se deu um tempo. Para minha mãe, significou um momento de hibernação, e de interiorização também. A partir daí, além de “meu filho”, também passou a me chamar de “meu amigo” quando estávamos juntos. E quando estava embriagada, completamente carente, se dirigia a mim como “meu velho”. Cheguei a lhe perguntar, nesses momentos de intimidade, por que suportara por tanto tempo o mundo complicado da sua vida com meu pai. Por que não se separou antes, já que havia razões e mais razões para que saísse de perto dele? Ela jamais soube explicar de verdade. Dizia que era uma mistura de coisas, que ia aos poucos se fortalecendo, criando raízes. Com o passar do tempo, e com tanta história vivida, não se poderia romper tão facilmente. Esse “meu velho” vinha do fundo do seu ser fragilizado. Em seu grande cansaço interior, ela percebia que eu era um cúmplice muito antigo do seu sofrimento, porque tinha estado desde o começo perto de tudo o que ela vivenciara. Era como se tivéssemos envelhecido juntos em uma longa jornada. Também sinto que esses momentos mágicos renovavam o sentimento totalmente interiorizado que ela transmitia pela música. Minha mãe cantava com a soltura e liberdade de estar consigo mesma, sem medo ou vergonha de demonstrar sua emoção. A forma minimalista e quase fria de cantar que aos poucos ia nascendo com os novos intérpretes, principalmente da Bossa Nova, era repudiada por ela com todas as forças. Cantar era a plenitude da liberação da emoção. Saísse como saísse. 




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