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segunda-feira, 24 de abril de 2017

MINHAS DUAS ESTRELAS (PERY RIBEIRO E ANA DUARTE)*



13 - Segredo é para quatro paredes

A casa na ilha do governador era um lugar amado por todos nós. A Ilha era um oásis de tranquilidade e representava uma pausa na correria do dia a dia de meus pais. Bily e eu ficávamos em êxtase quando íamos para lá, pois teríamos os dois só para nós. Os amigos mais íntimos, como Otelo, também tinham paixão pela casa da Ilha. Ele e meu pai pescavam com frequência. Levavam tudo o que seria necessário para a pescaria que haviam anunciado para minha mãe. E ficavam pela rua até de madrugada… mas nem sempre pescando. Às vezes, pegavam a barca para o Rio. De volta da farra, passavam na praça Quinze, compravam alguns peixes e, chegando em casa, jogavam “a pesca” no tanque, para ser limpa para o almoço. Essa pescaria da madrugada funcionou muito tempo, até que um dia minha mãe, ao recolher pessoalmente os peixes no tanque, reparou que havia um carimbo de inspeção. Ficou louca! Armou-se uma briga tremenda e, é claro, a pescaria da dupla acabou. Como contei, Herivelto dominava completamente o trabalho do Trio de Ouro, inclusive na questão financeira. Era ele quem fazia os contratos e recebia os cachês. Muito correto, assim que recebia os pagamentos entregava a Nilo sua parte, mas nunca entregava nada para Dalva. Dizia que cuidava do dinheiro dos dois. Minha mãe não gostava muito disso, não. Às vezes, quando recebia do cassino, Herivelto agarrava Otelo, atravessava a rua e ia para o salão de jogos tentar a sorte. Algumas vezes, deixou ali o dinheiro de uma quinzena. Rolla, dono do cassino, não gostava de ver funcionário jogando e lhe dava umas broncas. Nesse tempo, já estava entrando algum dinheiro das gravadoras e editoras musicais, pois suas músicas começavam a ser cantadas pelo povão e os discos, a vender bem. Ele não dependia somente do cassino para viver e achava que podia se dar ao luxo de deixar algum nas roletas. Minha mãe não gostava de jogo e ficava brava com ele. Mas não se pode falar nada contra meu pai como provedor da casa. A geladeira e a despensa viviam abarrotadas. Minha mãe tinha a roupa que quisesse, com a costureira que escolhesse. Roupa de trabalho, então, tinha de ser o que de melhor existisse! Fartura, muita fartura era do que ele gostava. Neste ponto, era mão-aberta mesmo. Acho que era uma forma de compensar a pobreza de seu começo de vida. Meu pai era considerado também um bom filho. Sustentava sozinho a vó Lolota (Carlota), atendendo-a em tudo de que necessitasse. Nas coisas básicas, como roupas,  pai não permitia jamais que faltasse qualquer coisa a sua família. Quanto a nossa educação, como homem de pouco estudo (mal completou o primário), achava importante nos dar escola, mas sem a preocupação de conseguir um bom colégio, onde pudéssemos ter um ambiente melhor para nossa formação. Não foi tão romântica, porém, aos olhos meus e de meu irmão Bily, a relação entre nosso pai e nossa mãe. Donos de personalidade fortíssima, eram o que poderíamos chamar de dois vulcões. As brigas, pouco a pouco, se tornavam mais frequentes. Com mais dinheiro entrando, meu pai começou a buscar outras mulheres. De frequentes, as brigas passaram a violentas. Não foram poucas as vezes em que, ao voltar do colégio, ficava sabendo que minha mãe estava no pronto-socorro — meu pai batera nela. Ou, então, procurava meu pai e diziam que ele estava no hospital — minha mãe arrebentara a cabeça dele com um cinzeiro de bronze. Já morando na rua General Galvão, em 1941, numa casa com uma escadaria grande, a vida um pouco melhor, minha mãe engravidou pela terceira vez. O que foi uma surpresa. No nascimento de Bily, em 1940, ela havia feito ligamento das trompas. Ao que parece, não muito benfeito. As brigas se tornaram cada vez mais agressivas. Um dia, no auge de um ataque de raiva, ele agarrou minha mãe pelos cabelos, deu socos e pontapés. No meio desse acesso, o inevitável: minha mãe rolou pela escada e  perdeu o nenê, num aborto forçado. Foi tanta dor, tanta mágoa que durante muito tempo minha mãe guardou o feto num vidro com álcool. Ficava exposto no banheiro. E a quem perguntasse sobre aquilo ou sugerisse jogar fora, dizia: “Isso tem de ficar aí, pois serve para o Herivelto ver e não esquecer o que aconteceu”. Graças a Deus, com o tempo “aquilo” desapareceu de nosso banheiro. Impressiona, nesse caso, sua atitude mórbida, sádica até, com meu pai. Mas, ao mesmo tempo, sem força alguma para acabar com aquela guerra. Ou para mudar a vida deles. Vejo-a como prisioneira de um casamento pessoal e profissional, apaixonada por meu pai, estrela do Trio de Ouro, mas sem voz ativa para nada. Apenas podia cantar. Ou brigar. Minha mãe não imaginava quanta saudade ainda teria de tudo o que havia sido destruído. Pondo de lado as desavenças, os maus-tratos e um relacionamento extremamente dolorido, ela e meu pai foram muito felizes juntos. Compartilharam a fase mais importante de suas vidas. As lembranças das coisas boas, dos momentos em que tudo se encaixava seriam muito fortes para ela. Mesmo quando tudo estava por um fio para se transformar em guerra… Minha tia Lila lembra que, com o passar do tempo, ao terem mais posses e morando melhor, Herivelto era muito generoso com Dalva. E até carinhoso, quando as brigas não aconteciam. Brigas quase sempre provocadas por seu comportamento. Encerrada a luta entre esses dois seres geniosos e temperamentais, o amor falava mais alto do que a mágoa. Ficavam emburrados um tempo e a comunicação era feita por intermédio das outras pessoas da casa. Era engraçado! Meu pai chamava uma de minhas tias, Lila ou Margarida, e pedia para elas contarem que havia comprado uma joia para minha mãe. Quando ela chegava perto para dar o recado (estavam todos na mesma sala!), Dalva dizia: “Já ouvi. Diz pra ele que também achei uma camisa bonita e comprei de presente ”. E assim se reconciliavam. Viviam um tempo de bonança, saindo juntos, indo a festas, restaurantes, recebendo os amigos na Urca. Ali, os amigos e a alegria contagiante eram a moldura que traduzia a especial alquimia que vivenciavam no trabalho e na vida. Nos aniversários de um dos dois, então, era uma loucura! Suas festas eram abertas a todos os artistas. A felicidade realmente reinava na casa. Até que meu pai fizesse alguma bobagem.



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