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domingo, 2 de abril de 2017

20 ANOS SEM O MAIS CARISMÁTICO DOS MANGUEBOYS

Por David Cavalcante



Era um final de tarde de domingo, em 02 de fevereiro de 1997, em pleno carnaval de Recife e Olinda, quando, todos recebem a trágica notícia da precoce morte de Francisco de Assis França Caldas Brandão, o Chico Science, com apenas 30 anos de idade, devido a um acidente de carro. A sua morte foi simbólica não somente porque ocorreu em período carnavalesco cujos ritmos pernambucanos inspiraram suas músicas, mas também numa das principais fronteiras geográficas formais entre Olinda e Recife, bem próximo do Manguezal do Espaço Ciência, posteriormente batizado de Manguezal Chico Science.

Naquele ano, o luto pairou sobre os festejos de momo, ante a perda do mais carismático dos mangueboys. Aquele jovem negro que circulava nos bairros de Rio Doce e de Peixinhos, periferias de Olinda, onde teve seus primeiros contatos com o hip-hop, o funk e o soul, em uma mistura com ritmos pernambucanos como o maracatu, o frevo e o coco. O mangueboy ganhou o Brasil e o mundo com a banda Nação Zumbi, em festivais de músicas e em vídeo clips cuja performance no palco não deixava o público parado nem por um minuto sequer com a batida das alfaias embebida pelo rock e a música eletrônica animando multidões.

O cientista dos ritmos foi um dos principais expoentes do movimento de contracultura chamado Manguebeat, um movimento cultural que surgiu em Recife e Olinda, no início dos anos 1990, cujas expressões musicais inspiraram o sincretismo rítmico dos batuques dos terreiros do candomblé, da magia cadenciada e frenética do “baque solto” do Maracatu Rural que originalmente sincroniza os exuberantes caboclos de lança e seus chocalhos gigantes. A batida do mangue incorporou também o imponente batimento das alfaias do “baque virado” do Maracatu Nação. Tudo permeado pelas guitarras envenenadas, os metais dos trompetes e trombones, os berimbaus e a música eletrônica, embalando um rock sincrético, originalmente pernambucano.

O Manguebeat não foi apenas um sincretismo rítmico, emergiu também da denúncia e da crítica social da histórica e estrutural situação de exclusão da maioria da população trabalhadora pernambucana, herdeira do escravismo colonial e da monocultura da cana, onde as vítimas são as maiorias negra e pobre, proletárias e oprimidas pelas seculares famílias oligárquicas, jamais reparadas social e economicamente na contemporaneidade.

A música do mangue, expressa em suas composições o tom da crítica irreverente, à mega e acelerada concentração populacional urbana da pobreza nos últimos 50 anos, na Região Metropolitana do Recife, que acentuou ainda mais suas extremidades sociais em face da ausência de políticas públicas universais principalmente às relacionada à habitação e saneamento. Daí que o símbolo social maior dos manguezais metropolitanos recifenses sejam as, ainda presentes e crescentes, palafitas, onde as famílias dos trabalhadores estão sujeitas às inumeráveis doenças relacionadas à falta de saneamento, ausência de água potável, coleta de lixo e inexistência de esgotos.

O caranguejo é o símbolo do Manguebeat, sintetiza a opressão e a resistência, pois como diz o título de uma das mais conhecidas músicas de Chico Science e título do seu primeiro CD (Da Lama ao Caos), nasce na lama do mangue e vai ao caos, enfrentar a grande cidade excludente e violenta: os Caranguejos com Cérebros, enfrentam a cidade caótica com arte, cultura e denúncia social.

O manguezal é um típico ecossistema do litoral do Nordeste caracteriza-se por ser úmido, salgado, lodoso, pobre em oxigênio, porém rico em nutrientes, daí a grande quantidade de matéria orgânica em decomposição, apresentando um forte odor – mais acentuado se houver poluição e sempre há – como é bem evidente no Recife. A matéria orgânica do mangue serve de alimento para uma extensa cadeia alimentar, a exemplo dos crustáceos e algumas espécies de peixes. O manguezal serve como habitat para diversas espécies, entre elas, os caranguejos.

O caranguejo, no entanto, nas pesquisas do sociólogo Josué de Castro, inspirador de Chico Science, é também representante de um ciclo cujo habitat faz parte o próprio homem das famílias pobres metropolitanas:

“Os mangues do Capibaribe são o paraíso do caranguejo. Se a terra foi feita pro homem, com tudo para bem servi-lo, também o mangue foi feito especialmente pro caranguejo. Tudo aí, é, foi ou está para ser caranguejo, inclusive o homem e a lama que vive nela. A lama misturada com urina, excremento e outros resíduos que a maré traz, quando ainda não é caranguejo, vai ser. O caranguejo nasce nela, vive nela. Cresce comendo lama, engordando com as porcarias dela, fazendo com lama a carninha branca de suas patas e a geléia esverdeada de suas vísceras pegajosas… o povo daí vive de pegar caranguejo, chupar-lhe as patas, comer e lamber os seus cascos até que fiquem limpos como um copo. E com a sua carne feita de lama fazer a carne do seu corpo e a carne do corpo de seus filhos. São cem mil indivíduos, cem mil cidadãos feitos de carne de caranguejo. O que o organismo rejeita, volta como detrito, para a lama do mangue, para virar caranguejo outra vez…”

O Manifesto do Movimento Manguebeat, Caranguejos com Cérebro, nos lembra: “…Manguetown, a cidade… do Recife… é cortada por seis rios. Após a expulsão dos holandeses, no século XVII, a (ex) cidade maurícia passou desordenadamente às custas do aterramento indiscriminado e da destruição de seus manguezais. Em contrapartida, o desvario irresistível de uma cínica noção de “progresso”, que elevou a cidade ao posto de “metrópole” do Nordeste, não tardou a revelar sua fragilidade. Bastaram pequenas mudanças nos ventos da história, para que os primeiros sinais de esclerose econômica se manifestassem, no início dos anos setenta. Nos últimos trinta anos, a síndrome da estagnação, aliada a permanência do mito da *metrópole* só tem levado ao agravamento acelerado do quadro de miséria e caos urbano”.

Chico Science & Nação Zumbi e demais mangueboys e manguegirls, entre tantos, inspiraram e foram inspirados, numa cena dos anos 1990 permeada pelas bandas como Mundo Livre S/A, Mestre Ambrósio, Comadre Fulozinha, Sheik Tosado, DJ Dolores, Jorge Cabeleira e o Dia em que Seremos Todos Inúteis, Eddie, Via Sat e Querosene Jacaré… contagiando a cena musical e artística brasileira com o que foi considerado o maior movimento cultural desde a Tropicália, nos anos 1960.

O disco Da Lama ao Caos está na 13ª posição da lista dos 100 melhores discos brasileiros de todos os tempos da revista especializada, Rolling Stone Brasil (outubro de 2007), escolhido entre 60 especialistas, e o Afrociberdelia, na 18ª posição.

O cenário cultural manguebeat, então em emergência, levou um pesado choque com a morte precoce do cientista dos ritmos que de uma forma trágica deixou o caos e voltou ao mangue, mas após segurar a bandeira dos caranguejos com cérebros e gritar para o mundo as injustiças sociais do Recife e Região Metropolitana marcou para sempre a história cultural de Pernambuco, do Nordeste e do Brasil.

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