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sábado, 5 de novembro de 2016

O DESENHO ORIGINAL DA MÚSICA DE NÁSSARA (20 ANOS DE SAUDADES)

Por Raphael Vidigal


Leite, leitura,
letras, literatura,
tudo o que passa,
tudo o que dura
tudo o que duramente passa
tudo o que passageiramente dura
tudo, tudo, tudo,
não passa de caricatura” (Paulo Leminski)


Antônio Nássara, ou simplesmente Nássara, nasceu na cidade do Rio de Janeiro no dia 11 de novembro de 1910 e faleceu no dia 11 de dezembro de 1996. Compositor e caricaturista, Nássara foi vizinho de Noel Rosa, e compôs com ele a marcha “Retiro da Saudade”, gravada por Francisco Alves e Carmen Miranda em 1934. Nássara completaria em 2010, 100 anos de vida, e foi o autor de sucessos como “Alá lá ô”, com Haroldo Lobo, “Mundo de Zinco” e “Balzaquiana” com Wilson Batista, “Formosa”, com J. Rui, “Periquitinho verde”, com Sá Róris, entre outros. Autor do primeiro jingle do rádio brasileiro, Nássara tinha como uma de suas marcas registradas parodiar e utilizar versos de outras músicas em suas composições. Além disso, foi ele o ilustrador da capa do LP “Polêmica”, que trazia caricaturas de Noel Rosa e Wilson Batista. Por sua irreverência afiada de traços melodiosos e firmes, Antônio Nássara será sempre lembrado como um dos grandes artistas brasileiros, tanto na música, como no desenho, e merece todas as homenagens nesse centenário do seu nascimento.


Formosa (marcha de carnaval, 1933) – Nássara e J. Rui



Nássara era um encantador de formas. Mesmo antes das notas e dos versos ele já trabalhava em suas linhas melódicas. Em 1928, chegou à Escola Nacional de Belas Artes e começou a desenvolver os pilares de sua paixão. Lá, formou um conjunto musical com Barata Ribeiro, Manuelito Xavier, Jaci Rosas, Luís Barbosa, e J. Rui, que se tornaria seu parceiro na canção “Formosa”. Lançada por Luís Barbosa e gravada no carnaval de 1933 pela dupla Francisco Alves e Mário Reis, a marcha foi a primeira música de Nássara a estourar na boca do povo. Sob confetes e serpentinas não havia quem não cantasse os irresistíveis versos: “Foi Deus quem te fez formosa, formosa, ô formosa, porém este mundo te tornou presunçosa, presunçosa…”


Periquitinho verde (marcha de carnaval, 1938) – Nássara e Sá Róris



“Periquitinho Verde” é um desses casos onde Nássara faz uso de sua verve cômica e sua conhecida habilidade em incorporar frases famosas de outras canções. Nessa marcha de 1938 ele costura com bom humor os enlaces matrimoniais sob o ponto de vista da mulher, que diz que não atura “mamãe eu quero mamar”. Amigo do ventríloquo Batista Júnior, pai das irmãs Batista, Nássara teve a oportunidade de ouvir a menina Dircinha Batista cantar e definir que ela lançasse a música, uma de suas parcerias com seu professor de desenho Sá Róris, também compositor.


Florisbela (marcha de carnaval, 1939) – Nássara e Frazão



A favorita para levar o concurso de carnaval do Rio de Janeiro em 1939 era “A Jardineira”, de Benedito Lacerda e Humberto Porto e lançada por Orlando Silva. Mas a vencedora foi “Florisbela”, de Nássara e Frazão, na voz do seresteiro Silvio Caldas. No mesmo ano, as duas músicas foram citadas na obra-prima de Ary Barroso “Camisa Amarela”, que também trazia em sua letra o tema carnavalesco. Apesar disso, Nássara reclamava que a composição sobre as paqueras de um casal fosse pouco regravada.


Meu consolo é você (samba, 1939) – Nássara e Roberto Martins



No mesmo 78 rotações em que cantava “A Jardineira”, Orlando Silva apresentava “Meu consolo é você”, de Nássara e Roberto Martins. Em virtude da primazia da composição, considerada uma das mais belas do cancioneiro brasileiro, o “Cantor das Multidões” conseguiu algo raro: fazer sucesso com os dois lados do disco. A música sagrou-se vencedora no concurso promovido pela prefeitura do Rio de Janeiro daquele ano, então Distrito Federal, categorizada como melhor samba. O pedido de perdão em forma musical recebeu os arranjos do maestro Radamés Gnatalli.


Nós queremos uma valsa (valsa / carnaval, 1941) – Nássara e Frazão



Frazão foi sem dúvida o parceiro mais imponente de Nássara. Tanto no sobrenome sonoro, precedido por um extravagante Eratóstenes, como no que diz respeito ao número de sucessos. Entre todos eles, “Nós queremos uma valsa”, possui história das mais interessantes. A idéia criativa de lançar a música em pleno carnaval de1941 foi de Frazão, e trouxe alívio supressor à Morais Cardoso. Tudo porque o jornalista do periódico “A Noite” era simplesmente o primeiro Rei Momo do carnaval brasileiro, e como tal, cumpria o figurino de porções vantajosas em seu corpo portuário de cervejas. Os desfiles em ritmo de samba e marchas alucinantes deixavam seus pés enormes ainda mais inchados. Por isso, a novidade foi instituída de imediato pelo Rei Momo e tornou-se sucesso na voz de outro Rei, o da Valsa, Carlos Galhardo, também gravada ao acordeom por Luiz Gonzaga. Toques de clarim anunciam a entrada triunfante da música que saúda os patinadores.


Alá lá ô (marcha de carnaval, 1941) – Nássara e Haroldo Lobo



O folião Haroldo Lobo, apelidado de clarinete por sua voz agudíssima, era segundo o amigo Antônio Nássara: fabuloso. E tinha razão de ser. Criador de inúmeras marchinhas que se tornaram parte integrante da memória carnavalesca, ele pediu para o caricaturista completar uma despretensiosa composição do ano anterior. Como não podia deixar de ser, a música era em ritmo de festa e euforia e destacava versos que falavam de sol e caravan. Para isso, Nássara unificou uma divindade a um conhecido cartão postal africano, o deserto do Saara. Pronto, dali para Haroldo arrematar com o refrão entusiasmado foi um pulo: “Alá lá ôôô, mas que calor, ôôô…”. Faltava agora os arranjos e a orquestração, definidos com maestria e alta categoria por ninguém menos que Pixinguinha. Nas palavras de Nássara: “Pixinguinha tinha dividido a melodia em compassos marcantes, saltitantes, brejeiros, originais, vestindo-a com roupagem da alma popular. E eu tive uma sorte danada porque “Alá lá ô” ficou sendo uma das músicas mais tocadas no carnaval. Das que fiz, foi a única que me rendeu alguma coisa”. A música gravada por Carlos Galhardo em novembro de 1940 foi lançada no carnaval de 1941. Virou sucesso permanente.


Balzaquiana (marcha de carnaval, 1950) – Nássara e Wilson Batista



A gíria criada por Nássara para denominar as “mulheres depois dos trinta anos” foi tirada de um conhecido romance de Honoré de Balzac. Fazendo uso de sua conhecida perspicácia, Nássara percebeu ponto aberto para brincar com divertida preferência amorosa. Seminal grão da celebrada parceria entre ele e Wilson Batista, a marcha ecoou na voz do iniciante Jorge Goulart em 1950, e garantiu ao cantor seu primeiro sucesso. Dali em diante, Jorge se tornaria especialista em canções do gênero e gravaria novos sucessos da recém-formada dupla. A música alcançou tal proporção que foi traduzida pelo radialista e adido cultural da embaixada francesa no Brasil, Michel Simon. No país de origem do autor que dá nome ao título, a canção pôde ser ouvida em comemoração ao centenário do seu nascimento. Hoje, a versão francesa encontra-se na “Casa de Balzac”, museu que guarda as memórias do escritor francês.


Sereia de Copacabana (marcha de carnaval, 1951) – Nássara e Wilson Batista



Filho de libaneses, o carioquíssimo Nássara iniciou sua carreira de compositor vencendo concursos em que participavam Lamartine Babo, Ary Barroso e seu vizinho de Vila Isabel, Noel Rosa. Consagrado através das marchas, Nássara proporciona animada disputa, dessa vez entre mulheres de vários países, mas seu coração acaba se decidindo pela sereia brasileira, em parceria sua com Wilson Batista. “Sereia de Copacabana” foi recebida pelo público através da voz encorpada de Jorge Goulart, no carnaval de 1951.


Mundo de zinco (samba de carnaval, 1952) – Nássara e Wilson Batista 



Crescido em ambiente carnavalesco, Nássara ajudou a organizar em 1932 o primeiro concurso de escolas de samba do Rio de Janeiro. Frequentador do “Ponto de Cém Reis” e do “Café Nice”, locais de encontro da boêmia, em 1952 ele compôs ao lado de Wilson Batista, um samba para Mangueira, escola que contava com sua torcida. Visualizando a história do morro, os versos finais da música são em tom de despedida e deixam clara a intenção dos compositores de exaltarem o que admiram: a glória do samba, o céu de Mangueira, os malandros e as cabrochas. Interpretada por Jorge Goulart, foi premiada como samba mais bonito do carnaval carioca daquele ano. De acordo com o jornal “Última Hora” da época, possuidora de “letra inspirada, bonita e ao mesmo tempo fácil de ser apanhada pelo povo; sua música é melódica, mesmo nas estridências necessárias do apito de trem, harmonizando-se em ritmo essencialmente vivo e vibrátil.”


Chico Viola (samba, 1953) – Nássara e Wilson Batista 



A morte de Francisco Alves, aclamado como o Rei da Voz, em acidente de carro em 1952, comoveu o Brasil inteiro. Não apenas as escolas de samba choraram, mas todos que eram fãs e parceiros do cantor, e por isso Wilson Batista e Nássara escreveram uma das mais tocantes músicas para se despedir do amigo. Conhecido no meio musical por Chico Viola, o apelido serviu para expressar a dor que os compositores sentiam pela falta daquele que reinou absoluto nas primeiras décadas de ouro do rádio brasileiro, com direito à menção honrosa ao poeta Noel. Cantada na voz emocionada de Linda Batista, foi gravada em 1953, e acabou se transformando na última canção de expressividade de Nássara. Desiludido com a maneira como passou a ser comercializada a festa que tanto adorou, só voltaria a compor em 1968, lançando a marcha “O craque do tamborim”, com Luís Reis. O caricaturista que começou fazendo fado para o anúncio de uma padaria no “Programa Casé”, abandonou a arquitetura e acabou desenhado como a cara de um carnaval engraçado e alegre.

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