"Na unicidade que se faz ouvir como voz, é um existente encarnado - ou, preferindo-se, um 'ser-aí' na sua radical finitude - que se faz ouvir aqui e agora. A esfera do vocálico envolve o plano da ontologia e o vincula à existência de seres singulares que se invocam mutuamente em um dado contexto. Desde a cena materna, a voz manifesta o ser único de cada ser humano e o seu espontâneo comunicar-se segundo os ritmos de uma relação sonora. Nesse sentido, o horizonte descortinado pela voz, ou seja, aquilo que queremos chamar de ontologia vocálica da unicidade opõe-se peremptoriamente às várias ontologias dos entes fictícios que a tradição filosófica, ao logo de seu desenvolvimento histórico, nomeia a cada vez como 'homem', 'sujeito', 'indivíduo'", anota Adriana Cavarero em Vozes plurais - Filosofia da expressão vocal (2011, p. 202).
"A vida é somente um dom independente de quem / Seja capaz de gritar seu nome, alto e bom som / A vida seria um tom, uma altura a se atingir / Viver é saber subir, alcançar a nota lá / Lá no ponto de ferir, se preciso, até sangrar", canta Gilberto Gil ("Não tenho medo da vida", Fé na festa, 2010). Os versos de Gil exemplificam as palavras de Cavarero. Ou seja, independente do indivíduo, a vida existe, mas o indivíduo só existe na vida - só vive - quando se vocaliza, quando é "capaz de gritar seu nome, alto e bom som". De nada adianta o "dom da vida" se o indivíduo não souber usá-lo.
Aqui entra em jogo a complexa e sensível diferença entre Vida e Viver. Canta Gil: "Não tenho medo da vida, mas, sim, medo de viver / Eis a loucura assumida, você há de imaginar / É que a vida atou-se a mim desde o dia em que eu nasci / Viver tornou-se, outrossim, o modo de desatar / Viver tornou-se o dever de me desembaraçar". A vida independe da vontade, do desejo. Viver exige ação, intervenção - eis o medo do sujeito da canção.
"Quem já passou por essa vida e não viveu / Pode ser mais mas sabe menos do que eu / Porque a vida só se dá pra quem se deu / Pra quem amou, pra quem chorou, pra quem sofreu", canta Toquinho, fazendo eco às aflições do sujeito cantado por Gilberto Gil. Assim como o sábio jagunço Riobaldo: "Viver é perigoso, seu moço!". "A vida é simples, eu sei, mas viver traz tanta dor", canta Gil em tom que performatiza um sujeito cancional aparentemente cansado de lutar em ser "por mais distante, um errante navegante" na Terra.
É deste modo que "Não tenho medo da vida" é espelho de outra canção de Gil: "Não tenho medo da morte". Espelhamento que se reflete também na estrutura formal das duas canções: quatro quintetos, com 15 sílabas poéticas em cada verso, que vocalmente se subdividem para formar redondilhas (7 versos) espiralando no campo da melodia o pensamento do sujeito em ato de canção.
"Não tenho medo da morte / Mas sim medo de morrer / Qual seria a diferença / Você há de perguntar / É que a morte já é depois / Que eu deixar de respirar / Morrer ainda é aqui / Na vida, no sol, no ar". Em ambas, o que parece amedrontar o sujeito é a possibilidade de uma ação errada. Por entender-se interligado à engrenagem que condensa todos os outros viventes, o sujeito teme a dor implícita ao viver e ao morrer - verbos do círculo infinito, do eterno retorno.
A voz de Gilberto Gil é a dobradiça entre as duas instâncias do (não) existir. Gil cria a dobradiça ao compor as duas canções colocando os dois sujeitos diante do espelho, equalizando a responsabilidade do vivente diante da vida e da morte. Se em "Não tenho medo da morte", Gil canta "A morte já é depois / Já não haverá ninguém / Como eu aqui agora / pensando sobre o além / Já não haverá o além / O além já será então / Não terei pé nem cabeça / Nem fígado, nem pulmão / Como poderei ter medo / Se não terei coração?", em "Não tenho medo da vida" canta "A vida seria um tom, uma altura a se atingir / Viver é saber subir, alcançar a nota lá / Lá no ponto de ferir, se preciso, até sangrar".
Ou seja, não há como fugir da Vida e da Morte. Já para o viver e o morrer há o canto, a voz que sendo instante-já coloca o sujeito cantante sempre além, na busca permanente de alcançar a altura exata da nota. É na canção, na voz de alguém cantando, no fazer da vida uma obra de arte que o tom é conquistado. E vida e viver se ajustam. Assim como morte e morrer. Os sujeitos criados por Gil sugerem isso ao citar os elementos cabeça, pulmão, coração e tom, nota, ponto. Elementos presentes na mecânica cancional. Ao misturá-los e elegê-los como signos do viver e morrer, os sujeitos das canções recompõem destinos, pois interferem no modo tradicional de ser e estar no mundo. "O pensar quer estar fora do tempo, faz mil conexões de uma só vez e coloca seus objetos em um presente eterno. (...) Pelo contrário, o falar é sempre vinculado ao tempo: não sabe para onde vai e depende da imprevisibilidade do que irão dizer os interlocutores", anota Cavarero (p. 203).
Para Cavarero, "o primeiro passo para liberar a voz de seu gendarme noético, o primeiro gesto contra os cânones desvocalizantes da filosofia, passa por uma tematização privilegiada do falar" (idem, p. 203). Ora, é exatamente isso que o sujeito da canção faz ao destacar que "A vida seria um tom, uma altura a se atingir / Viver é saber subir, alcançar a nota lá / Lá no ponto de ferir, se preciso, até sangrar". As duas perspectivas se unem à de Oswald de Andrade quando escreve: "Só podemos atender ao mundo orecular", no "Manifesto antropófago".
Em "retiro espiritual", os sujeitos da canção "Não tenho medo da vida" e o da canção "Não tenho medo da morte" estão em plena ação de atendimento deste "mundo orecular", condensador do auricular e do oracular. "A dor na carne e na alma, a calma a se propagar / A durar dia após dia, a varar noite, a dormir / A ver o amor a vir a ser, a ter e a tornar / A amanhecer de novo e de novo um novo dia / Isso às vezes me agonia, às vezes me faz chorar", canta.
Gilberto Gil sugere um "pensar com os pulmões", pois observa que o modo tradicional de pensar não dá conta das angústias que atravessam os sujeitos das canções. "O pensador, incluído o Sócrates platônico, conhece antecipadamente os próprios pensamentos. (...) Pelo contrário, o falar é sempre vinculado ao tempo: não sabe para onde vai e depende da imprevisibilidade do que irão dizer os interlocutores" (CAVARERO, idem). O medo de não saber para onde vai é o motor das canções. E é cantando que os sujeitos cancionais vivenciam que "ao contrário do que pensa Platão, inspirador da metáfora sobre a voz da alma, o falar não é um pensar que se exprime em voz alta, ou seja, um pensamento vocalizado, um sucedâneo acústico do pensar. A fenomenologia do falar possui um estatuto autônomo no qual a relacionalidade de bocas e ouvidos ocupa o primeiro plano" (idem, p. 204).
Ao ser ouvido, o sujeito da canção se transmuta em sujeito cancional fazendo com que emissor e ouvinte se encham de vida, de sopro vital vindo dos pulmões daquele. "Cantar, é mover o dom / do fundo de uma paixão / Seduzir, as pedras, catedrais, coração / Amar, é perder o tom / nas comas da ilusão / Revelar, todo o sentido", canta Djavan. Cantar, amar, dom, tom, seduzir, revelar, ilusão, sentido, elementos que se agrupam na canção, na voz de alguém cantando, trazendo a vida aqui, na voz, no auxílio mútuo e luxuoso entre vida e arte cantado pelos sujeitos de Gilberto Gil.
E assim, "a função despersonalizante do pronome eu (...) é anulada pela unicidade inconfundível da voz. O som vence a generalidade do pronome" (CAVARERO, p. 205). Posto que "a voz pertence ao vivente, comunica a presença de um existente em carne e osso, assinala uma garganta, um corpo particular" (idem, p. 207). E só ele, ou melhor, só eu - o ser vivente, este "eu" que se anuncia e presentifica - posso "chorar quando estou triste (...) eu falo e ouço, eu penso e posso".
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Não tenho medo da vida
(Gilberto Gil)
Não tenho medo da vida, mas, sim, medo de viver
Eis a loucura assumida, você há de imaginar
É que a vida atou-se a mim desde o dia em que eu nasci
Viver tornou-se, outrossim, o modo de desatar
Viver tornou-se o dever de me desembaraçar
A vida é somente um dom independente de quem
Seja capaz de gritar seu nome, alto e bom som
A vida seria um tom, uma altura a se atingir
Viver é saber subir, alcançar a nota lá
Lá no ponto de ferir, se preciso, até sangrar
Não tenho medo da vida, mas medo de viver, sim
A vida é um dado em si, mas viver é que é o nó
Toda vez que vejo um nó, sempre me assalta o temor
Saberei como afrouxá-lo, desatá-lo eu saberei?
A vida é simples, eu sei, mas viver traz tanta dor
A dor na carne e na alma, a calma a se propagar
A durar dia após dia, a varar noite, a dormir
A ver o amor a vir a ser, a ter e a tornar
A amanhecer de novo e de novo um novo dia
Isso às vezes me agonia, às vezes me faz chorar
* Pesquisador de canção, ensaísta, especialista e mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e doutor em Literatura Comparada, Leonardo também é autor do livro "Canção: a musa híbrida de Caetano Veloso" e está presente nos livros "Caetano e a filosofia", assim como também na coletânea "Muitos: outras leituras de Caetano Veloso". Além desses atributos é titular dos blogs "Lendo a canção", "Mirar e Ver", "365 Canções".
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