Em 'Bem vinda', rapper paulistana reage ao baixo-astral e à cultura do ódio com delicada homenagem à filha recém-nascida
Por Ângela Faria
Lurdez da Luz luta pelo espaço das mulheres no hip-hop brasileiro (foto: Studio Gruhn/divulgação)
“Cancelem o Apocalipse”, convoca Lurdez da Luz na letra de Bem vinda, faixa-título do EP lançado na tumultuada semana em que Dilma Rousseff foi deposta, Michel Temer assumiu o comando do país, sob protestos, e a cultura da intolerância e do ódio contaminou ainda mais as ruas e as redes sociais.
Outrora inspirado na urgência frenética das implacáveis metrópoles e atento às mazelas do Brasil, o canto falado da compositora e rapper paulistana surge como um bálsamo. Aposta na delicadeza e celebra a esperança para saudar Pérola Rosa, a caçula nascida em junho.
A compositora mantém a verve dos discos anteriores, Lurdez da Luz (2010) e Gana pelo bang (2014). Porém, não se rende à deprê que se alastra por aí. Sem oba-oba, prega o amor (Love) e resiste ao baixo-astral (Good vibes). Assume, sem neuras, o plus size das formas generosas da maternidade. “Da Luz” se curva, com alegria, à potência da natureza.
Bem vinda expressa a revolução interna fruto da maturidade, da conexão profunda com a emoção e o desapego ao ego, conta Lurdez, de 36 anos. Se a primeira gravidez (o primogênito Rogê tem 10 anos) foi revelação, a segunda representa “o renascimento como mãe”, diz. O EP começou a ser gravado na sala de casa, quando ela estava grávida de quatro meses. Disco, versos, batidas e bebê foram gerados praticamente juntos.
Aliás, justiça seja feita. A ideia desse projeto tão feminino veio dos homens: os parceiros e produtores Bruno Esteves e Heder Vicente – a dupla PParalelo. Os dois levaram para a casa de Lurdez um microfone poderoso, capaz de registrar apenas a voz, eliminando latidos de cachorro, canos de descarga e buzinas. Na faixa-título, o artista plástico Tubarão, marido dela, recita versos à sua menina, prestes a nascer.
“Meu rap doméstico.” É assim que Lurdez define o novo trabalho. Porém, o disco feito em casa não se contrapõe aos 16 anos da carreira dedicada à “parada da rua”, como ela diz. “Nós, mulheres, somos cíclicas, não temos aquela linearidade dos homens”, observa, referindo-se à complexidade feminina, que se desdobra entre o “ninho” e o mundo. “Esse EP traz uma mulher em sua viagem interior, praticando a esperança”, resume.
Artista independente, Lurdez fez shows até os oito meses de gravidez, toda orgulhosa de exibir o barrigão no palco. Logo depois do nascimento de Pérola, voltou a trabalhar, conciliando mamadas e microfones. A turnê deve engatilhar em novembro, mas a agenda já está rolando. Nos próximos dias, ela vai se apresentar em Taguatinga, em Brasília.
NANÁ E DU PEIXE
Na batalha desde os anos 2000, Lurdez é uma das mulheres mais talentosas do rap brasileiro, embora confiná-la na “prateleira” do hip-hop seja pouco. Haja estrada: a MC integrou o grupo Mamelo Sound System, pioneiro do chamado afrofuturismo nacional; participou do coletivo eletrônico-percussivo Ekundayo ao lado do mestre Naná Vasconcelos; é parceira do mangue-beat Jorge du Peixe; trabalha com Russo Passapusso e Kiko Dinucci, expoentes da MPB contemporânea; e tem se apresentado com a banda Aláfia, sensação indie. Ganhou o respeito da velha escola do rap – KL Jay e Edi Rock, do Racionais, a citam como talento da nova geração. Já abriu shows para Mano Brown e cia., Jurassic 5 e De La Soul, ícones do hi-hop norte-americano. Confira o clipe de Andei, um dos sucessos da artista, lançado em 2010:
Beats, timbres e rimas criativos, além da abertura a sonoridades que podem soar estranhas a fãs ortodoxos do rap, marcam o estilo Lurdez da Luz. Du Peixe já disse que ela “dá samba”; os companheiros do PParalelo, que trabalharam com Gaby Amarantos e Thiaguinho, são craques em forró e pagode. A paulistana gosta do pop de Rihanna e Drake; adora as músicas jamaicana e africana; elogia “produções bem legais da Anitta”. E avisa: dá para dialogar com tudo isso sem perder a essência do rap. “Penso em cantar mais. Quando vier algo no formato de canção, vou confiar”, admite. A turnê de Bem vinda pode ter versões de canções de Gilberto Gil.
MULHERES
Embora as mulheres venham conquistando espaço no hip-hop brasileiro, o avanço ainda é relativo, afirma a pragmática Lurdez da Luz. Só muito recentemente a curitibana Karol Conka tem virado o jogo no universo dominado por Racionais, D2, Emicida, Projota, Rashid, Criolo e Filipe Ret. “Karol é superimportante, o único grande nome na cena”, constata a colega.
Para ela, ainda é preciso lutar muito para que as rappers e MCs ganhem a visibilidade merecida, lançando discos, fazendo shows, aparecendo no rádio, TV, festivais e projetos culturais. Lurdez diz que a história das brasileiras no rap ainda é mal registrada, subestimada. Porém, está convicta de que as pessoas querem ouvir as vozes femininas.
Lurdez destaca talentos da nova geração como Bárbara Sweet, que mora em BH. A mineira, feminista e batalhadora, destaca-se nos duelos de MC, tem participado de projetos importantes em São Paulo. “Ela escreve muito bem, é poeta, canta pra caramba”, elogia. “Cadê o disco da Sweet, cadê o disco da Flora (Matos)? É preciso fazer acontecer”, defende Da Luz.
Apesar de boa parte das brasileiras ainda sucumbir à autoestima em baixa e a relacionamentos abusivos, Lurdez acha que a nova onda feminista vai desaguar na cena hip-hop. “A cabeça das minas está mudando. A nova geração é ligeira, informada, já chega com o pé na porta”, conclui.
BEM VINDA
. EP
. De Lurdez da Luz e PParalelo
. Informações: www.facebook.com/lurdezluz/
. Site para ouvir as músicas do EP:
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